quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O que queremos dizer quando falamos em cânone musical?

Publico aqui alguns extractos do meu livro Música e Poder (no prelo) com o objectivo de dar a conhecer algumas posições sobre a formação história do cânone musical. A sua presença na vida musical é quotidiana. Mas o conhecimento do seu carácter de "construção histórica", como tal, passível de transformações, acrescentos, desaparecimentos e até do seu fim como forma reguladora da vida musical não é tão corrente.

1.

Segundo Richard Taruskin, “um sentido de herança, de obrigação em relação a ilustres antepassados e às suas grandes obras tornou-se no século XIX uma força na história da música maior do que alguma vez anteriormente. As razões, como sempre, são muitas, mas uma das mais importantes é o sentido crescente de um cânone, de um corpo acumulativo de permanentes obras- primas que nunca saem do estilo mas formam o fundamento de um repertório eterno e imutável que só por si pode validar os compositores contemporâneos com a sua autoridade” (Taruskin, 2005b: 637-638). Segundo o autor, “as razões para a emergência deste cânone têm a ver com as mesmas novas condições económicas na quais Mozart e Haydn trabalharam no fim das suas vidas. O local principal da performance musical tornou-se o concerto público por subscrição em vez do salão aristocrático. Não eram as necessidades de um patrono mas o julgamento de um público (arbitrado por uma nova classe de críticos públicos) que agora definiam os valores” Para Taruskin “estes valores foram definidos de acordo com um novo conceito de obra-prima artística” e “graças a esse novo conceito a arte musical agora possuía artefactos de valor permanente [...] e, tal como as pinturas, guardadas cada vez mais em museus públicos, as obras-primas musicais eram agora reverenciadas em templos públicos da arte – ou seja, nas modernas salas de concertos, que foram tendo cada vez mais o aspecto de museus” (ibid.: 639).


2.

Outros autores descrevem este processo de forma idêntica. William Weber afirma que “os historiadores da música [...] assumiram que um cânone emergiu primeiro na Alemanha e na Áustria sob a influência do movimento romântico” (1999: 140). Jim Samson sugere ainda que “em meados do século XIX já tinha sido estabelecido muito do repertório central do cânone moderno, atribuindo-se raízes culturais, tradições ’inventadas’ e criando um fetichismo da grande obra que está connosco ainda hoje. Pode ser dito que as razões (principalmente alemãs) da identidade nacional que estiveram presentes no início da formação do cânone musical deram lugar, durante o processo histórico que se seguiu, ao seu carácter universal e ao fetichismo das grandes obras” (Samson, 2000). Para Don Randel “o Cânone ou o Repertório” podem querer dizer “as obras preservadas e transmitidas por instituições da alta cultura, tais como, salas de concertos e teatros de ópera” (Randel, 1992: 11).

3.

Samson acrescenta factores importantes na sua formação: este processo foi ajudado por instituições criadoras de gosto como revistas e casas editoras. A história da Revue et Gazette Musicale é indicadora, tal como a série de um conjunto de edições de casa Breitkopf & Härtel nos finais do século XIX. Estas edições ilustram a ligação integral entre a formação do cânone e a construção das identidades nacionais. Para o autor “foi acima de tudo na Alemanha que [a ascensão do cânone] ficou associada com uma cultura nacional dominante, compreendida tanto como especificamente alemã e, ao mesmo tempo, como representativa de valores universais” (ibid.). Aliás, constituíram elementos fundamentais da formação do cânone a edição de partituras, o estabelecimento “crítico” de partituras dos compositores que inicialmente constituíram o cânone – Bach, Haydn, Mozart e Beethoven – iniciado do século XIX e prolongado durante o século XX – tal como o progressivo aparecimento de biografias, sendo a de Bach da autoria de J. N. Forkel a primeira a surgir em 1802. Do ponto de vista das execuções públicas, segundo Phillip Bohlman, “durante o século XVIII o papel da música na sociedade europeia tornou-se muito mais historicista e usar a música do passado – recuperando-a e colocando-a em diferentes contextos – tornou-se cada vez mais lugar co-mum”. (Bohlman, 1992: 199).

4.

A musicologia teve uma importância particularmente decisiva na formação canónica. Para Bohlman, “o desenvolvimento da musicologia como disciplina foi coevo da necessidade cada vez maior de tomar decisões acerca dos cânones adequados e de arbitrar os gostos para a recepção desses cânones” (ibid.: 199). Igualmente Randel aponta o papel da musicologia como agente activo de formação canónica, mas sublinha em especial os limites das suas metodologias e o seu carácter produtor de exclusões: “Mas o que dizer do quadro teórico da musicologia que fez tantos assuntos resistentes a ele? [that has made so many subjects resistant to it?] Para Randel, “a resistência à teoria de tanta música deu demasiadas vezes a impressão de ser culpa da própria música. Pelo contrário, talvez devêssemos pensar acerca das limitações da nossa própria teoria” (Randel, 1992: 11). Pouco adiante, o autor concretiza a sua suspeita: “É muito fácil pensar em repertórios que poderiam ser descritos como resistentes à teoria. Mesmo a melhor art music de França e Itália, para não dizer nada de Inglaterra e de Espanha, pode muito bem mostrar resistência a métodos analíticos que foram desenvolvidos com vista a demonstrar a coerência tonal das obras-primas de certos compositores alemães”. Para ele “isto só é infeliz se essa resistência se traduzir na crença de que essa música não merece a atenção mais séria que nós, como scholars, podemos dar” (ibid.: 13).


terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Uma formação discursiva recorrente e uma possível interpretação

O conceito de formação discursiva foi proposto por Michel Foucault e desempenhou um papel crucial no alargamento das análises do discurso. Uma formação discursiva é algo que num dado momento histórico adquire condições de possibilidade - pode ser dito em determinados lugares e tempos historicamente específicos - e nesse quadro de relações saber/poder assume uma função particular porque, ao contrário da ideia corrente de que o poder é simplesmente repressivo, "incita", "suscita", "produz", como afirma Deleuze no seu livro Foucault. Foi deste pondo de vista que, na minha investigação sobre a ausência da música portuguesa no contexto europeu, a análise dos discursos se revelou muito rica como procedimento capaz de desvendar o outro lado de discursos que circulam na sociedade em geral - e no campo musical em particular - e tentar mostrar o seu carácter "produtor".
Esta pequena introdução justifica-se face ao que segue. Pude ler hoje no Público um texto de Diana Ferreira (que, aliás, foi minha aluna nos anos 90 na ESML na disciplina de História da Música do século XX) e que, nos últimos anos, escreve com alguma regularidade nesse jornal sobre concertos que têm lugar na Casa da Música e no norte do país. Referindo a excelência do Quarteto de Cordas de Matosinhos - opinião que partilho inteiramente, diga-se - escreve a certa altura: "Aliás, não fosse Portugal um pequeno país isolado num canto da Europa, o QCM teria já um belo contrato com uma empresa discográfica que o trataria de promover em todos os cantos do mundo". Qual é a importância deste fragmento?
À partida nada parece suscitar algum comentário particular. Mas este pequeno excerto permite-me trazer aqui alguns exemplos similares do mesmo tipo de formação discursiva que pude abordar na minha investigação sobre a ausência da música portuguesa no contexto europeu. Trata-se neste caso não de música portuguesa, de compositores portugueses, mas de intérpretes portugueses. O problema tem efectivamente muitos aspectos em comum.
Os exemplos que aqui trago pertencem ao capítulo X - Discursos e histórias de uma não história no ponto 2.1. desse capítulo A fatalidade do lugar de enunciação.

Escrevo a certa altura:

"Procura-se encontrar nestes discursos manifestações explícitas ou implícitas da interiorização da subalternidade. Há declarações dispersas que são por vezes mais eloquentes sobre os valores interiorizados e correntes do que textos mais articulados destinados a publicação. De algum modo é este o caso das declarações de Rui Vieira Nery ao Diário de Noticias em 2006 sobre Francisco António de Almeida, a propósito da sua ópera La Guiditta. Na peça escreve Bernardo Mariano: “Diz o Prof. Nery, por fim, que “se ele não tivesse sido obrigado, como bolseiro do rei que era, a regressar a Portugal, não seria de espantar que tivesse permanecido em Roma e aí tivesse feito uma carreira internacional mais destacada”.[1] Rui Nery assume com total naturalidade, sendo na altura director-adjunto do Serviço de Música da Gulbenkian e tendo sido Secretário de Estado da Cultura, que “regressar”, estar “cá dentro”, impede “uma carreira internacional”. Implicitamente, assume a fatalidade e a inferioridade."

Mais adiante acrescento o segundo exemplo:

"Num programa da RTP2, Câmara Clara, apresentado em 2008, Alexandre Delgado, a propósito do seu livro Luís de Freitas Branco afirmou que o compositor, se não fosse português, seria tocado em todo o mundo. O que está em causa nestes dois comentários – aliás, muito correntes no campo musical – respectivamente de 2006 e 2008, é que o discurso sobre a exclusão dos portugueses é tomado não apenas como um facto mas como uma fatalidade."

É obvio que o texto acima referido não está incluído nos exemplos da minha investigação. Foi publicado hoje, dia 21-12-2010. Mas a sua relação estreita com os que refiro na tese é patente.

Mas devemos ir mais além na análise. O que significa a recorrência deste tópico discursivo?

Em primeiro lugar, traduz a constatação da subalternidade e as consequentes dificuldades e a menorização daí decorrentes para os artistas.
Mas, em segundo lugar, deve-se acrescentar uma outra interpretação possível por incomoda que seja para nós. Constatada a evidência deve seguir-se a pergunta: quais são as consequências da recorrência deste discurso, frequente na pena de autores, compositores ou críticos que, amiúde, praticam noutros textos a celebração dos cânones musicais provenientes dos países centrais dominantes, os cânones do passado e do presente ? Quais são as consequências deste "lamento" - à primeira vista correcto - se não for problematizada, ao mesmo tempo, a subalternidade referida como resultado simétrico de uma hegemonia?

O problema é que esta hegemonia (que produz directamente a subalternidade) passa quase sempre, senão mesmo sempre, como "natural", como "eterna", como "carismática" - "os grandes artistas internacionais" - sem se compreender essa ideologia que é apenas o outro lado da moeda? Para haver subalternidade tem de haver o seu correlativo hegemónico e quer um, quer outro, são indiscutivelmente históricos, funcionam num dado tempo e num dado espaço, mas como produto histórico de uma dada relação de forças de poder vigente num dado momento. Este é um funcionamento estrutural dos campos de produção cultural e que os agentes tenham ou não consciência disso não muda nada.

Assim, na minha opinião, o todo é constituído pela dominação de dispositivos de poder bem localizados nos países centrais, que tendem para desqualificar os periféricos (por ignorância, desconhecimento, incapacidade de compreender ou desinteresse) enquanto celebram ou idolatram, nas publicações que disseminam, e, finalmente, exportam retirando daí os respectivos dividendos simbólicos e propriamente económicos (contratar um grande artista e mais ainda uma grande orquestra custa caro).

Uma coisa é certa. Depois do meu trabalho de investigação para a tese, depois da leitura dos textos e dos dados munido do procedimento próprio da análise dos discursos e dos seus tópicos habituais, jamais voltarei a ser capaz de ler uma frase do tipo citado inicialmente sem imediatamente reconhecer a "formação discursiva" dominante e lhe detectar os perigos semi-ocultos. Nem quando o autor da frase sou eu próprio, como se poderá ver quando o livro for publicado em 2011. Sendo agente activo, não há milagre que me possa por a salvo do funcionamento estrutural próprio dos campos culturais, nem qualquer possibilidade de me poder erigir em grande juiz - seria totalmente ridículo - de uma campo do qual faço parte. Mas não me está vedada a possibilidade da análise nem da auto-análise.

António Pinho Vargas, 21 de Dezembro de 2010

[1] in Diário de Notícias de 16 de Julho de 2006.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Sobre a aceleração em curso; para um tempo humano

Duas coincidências levam-me a escrever esta pequena nota. Primeiro, o compositor holandês Jan van De Putte, de quem sou amigo há mais de 20 anos (e teve uma peça tocada na CdM na semana que acaba) esteve em minha casa uns dias e trouxe-me uma prenda: o livro Accélération: une critique sociale du temps do sociólogo alemão Hartmut Rosa. Em segundo lugar uma conversa com outro grande mas mais recente amigo, José Manuel Pureza levou-nos ao mesmo assunto: a aceleração brutal que se verificou no mundo este ano.

Uma das ideias mais geniais do judeu alemão Walter Benjamin, nas Teses sobre a Filosofia da História, prende-se com a sobreposição de vários tempos históricos no mesmo momento real. Outra sua ideia da mesma estirpe é a que diz que cada documento de cultura é sempre e também um documento de barbárie. Demorei a perceber esta ideia uns largos anos mas julgo ter conseguido aproximar-me, pelo menos, de uma interpretação dela. Mas não é disso que agora falarei.

O livro de Harmut Rosa de 2005 (no original alemão, de que só li ainda algumas partes e devagar) parece-me ser extremamente importante para perceber o questão da aceleração que todos, de uma forma ou de outra, sentimos agora. Mas foi escrito antes de 2008, ou seja, antes da crise do "subprime" e de tudo o que se desencadeou posteriormente. Contém uma ideia que me estimula uma compreensão parcial do que se passa.

Todos sentimos cada vez mais falta de tempo para viver "o que interessa viver" diz. Quer isto dizer, julgo, que somos obrigados a viverdepressa demais coisas que não interessam verdadeiramente na vida, mas que se tornaram a razão de ser daquilo que nos é dito ser necessário fazer para "viver a vida".

Perante a ideia (optimista) de que "a acção individual, cultural e política poderia adaptar-se progressivamente às velocidades da mudança da modernidade avançada, desenvolvendo novas formas de percepção e de controlo, neste caso, graças à introdução de novas tecnologias genéticas ou de implantes informáticos."

A sua resposta vem cortante:

"Considero, pela minha parte, estas esperanças irrealistas na medida em que não se vê como estas reformas poderiam resolver o problema da dessincronização entre a política democrática e a evolução económica e técnica e de que forma elas poderiam ser postas em acção politicamente, uma vez que a possibilidade de uma governação [governance] política com os meios actualmente disponíveis é cada vez menos provável.

Acrescenta que, "mesmo que isto fosse possível, as novas formas que surgissem não seriam capazes de resistir muito tempo às novas forças acelerativas".

Que retiro daqui? Principalmente a dessincronização entre a política e a economia.

Que a maior rapidez e eficácia da economia e da técnica face a uma comparativamente muito mais lenta capacidade de acção política (com os seus procedimentos institucionais, eleições, debates, acção legislativa, aplicação prática posterior das decisões, etc.) está no centro da tremenda sensação de turbilhão em que nos sentimos.

Usando o jargão oficial de que tomamos conhecimento com maior intensidade nos últimos tempos "os mercados" agem em tempo real: um comunicado de uma agência de rating ou do FMI, provoca resultados e consequências no próprio dia em que é emitido. Qualquer acção ou reacção política, seja uma declaração de um ministro ou uma iniciativa legislativa, ou, de outro modo, uma manifestação de protesto violenta, reclama, precisa necessariamente , para ter consequências comparáveis, de muito mais tempo.

Por isso, como ajustar a política, no sentido de Jacques Rancière - a acção daqueles que habitualmente não têm poder, nem "o poder", nem nada - a esta aceleração brutal dos mecanismos que parece transformarem toda a realidade, a vida no seu todo, numa espécie de sala de uma bolsa de valores do tamanho do mundo onde écrans espalhados por todo o lado nos mostram, em tempo real, as subidas e descidas das acções?

Como fazer reduzir esta aceleração a um tempo propriamente humano e não ao tempo do dinheiro das bolsas?

Será pela via de Walter Benjamin, do súbito e inesperado salto do tigre a céu aberto, do tempo fora dos eixos de Shakespeare - the time is out of joint - em última análise, de uma revolução (que ninguém é capaz de imaginar nem como, nem quando) que seja capaz de lançar uma diferente turbulência dos tempos, uma turbulência contra a turbulência actual, da qual pelo menos sabemos onde está a origem? Creio que ninguém sabe responder.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Comentários publicados no facebook sobre A questão oculta. 1

Continuo a apreciar estes seus desabafos e as incursões recorrentes que faz à história e à filosofia a fim de tentar explicar a evolução dos tempos... Concordo que a arte não é incompatível com as massas e concordo que a educação das massas é possível. Concordo ainda que há muito elitismo bacoco no mundo das artes... porque precisamente e muitas das vezes passa-se a mensagem de que a arte está associada à ininteligibilidade... Parabéns...uma vez mais e obrigada por nos fazer pensar...
Quem pensa em Adorno hoje em dia? depois de Bourdieu, Adorno ficou irremediavelmente condenado. No entanto penso que a Arte, num processo de racionalização crescente, se auto-isolou. Aliás como os nucleos duros das ciências, que ostentam linguagens de mutuas incompreensões (Steiner)
António, completamente de acordo!
Obrigado a todos pelos agradecimentos. Cara Helena, tudo indicaria que devia ser como dizes: depois de Bourdieu (ou de Antoine Hennion ou R. Taruskin) devia estar "condenado" como visão das artes. Mas, acredita, não está! Três exemplos:
1. Há pouco tempo houve uma tentativa de criar uma associação de compositores. Depois de um período de discussão interna entre aí umas 8 ou 10 pessoas deu-se uma cisão entre os que pensam como Adorno que só os "verdadeiros" compositores de música erudita é que podiam ser membros e a outra visão que tentava alargar a associação a eventuais interessados provenientes de outras músicas. Hoje só a primeira é que existe. Este foi o facto.
2. Há ainda que considerar a ideia de Albrecht Wellmer - membro da segunda geração da Escola de Frankfurt (Habermas, etc) - que escreveu que as ideias de Adorno se sedimentaram no espírito dos artistas apesar de não ter tido grande destino na Universidade. Isto, escrito nos inícios de 90, até já não corresponde à verdade no que respeita à Universidade. Na minha arguição tive de me defender da crítica de MVC de não ter usado suficientemente Adorno, explicando como pude que a sua teoria não me servia para a tese, excepto como passível de análise enquanto elemento activo da Escola de Darmstadt onde fez conferências até à morte e, durante muitos anos, caução filosófica de base dessa corrente.
3. A divisão - que pode ter a designação alta/baixa cultura - está plenamente operativa na sociedade. Abre um jornal: cada corrente musical tem o seu crítico especializado; jazz é jazz, rock é rock; m. contemporânea (e clássica) pertencem a outra tribo. Há dezenas de tribos actualmente. Esta dicotomia nem sequer é tão oculta como isso. Simplesmente não é desse modo que vejo e avalio os produtos culturais.

…gostei (já fiz o “like”!), mas fiquei intrigado (curioso) com a última frase.
Esta questão aqui levantada é algo que me intriga, eu que sou um ignorante na matéria, mas um ignorante interessado em perceber. Porquê no século XX esta grande divisão e, sobretudo, se há, ou se é preciso que haja, solução? Haverá convergência ou aproximação ou estamos “condenados” à divergência em absoluto? Ou a períodos alternados entre a “angústia da contaminação” e a “curiosidade mútua” que se fecundem mutuamente?
‎@josécésar
Não sabemos, nem eu nem ninguém. Parece que se irá pela via da fecundidade mútua mas "estamos no meio das coisas" e nada está escrito sobre o futuro. Teremos de ser todos a fazê-lo. O que aumenta a responsabilidade individual.
Adorei o seu texto; ainda no outro dia estava a discutir esta questão, com outras palavras, a propósito da resistência que alguns intelectuais têm em sequer divulgar as suas iniciativas com medo da tal "contaminação". Acho profundamente irritante, nessa atitude há resquícios daquela atitude salazarista de "as coisas boas não precisam de publicidade"...é ignorar o paradigma da comunicação livre e intensa, o prazer partilhado da descoberta e da aprendizagem...
‎@carlabaptista
Tenho de concordar com essa hipotese de receio de contaminacao. Por outro lado, confiro a muitos intelectuais uma outra hipotese: uma que resume seus comportamentos e/ou atitudes a uma variante assente num tipo de (passo o termo) ausencia por disciplina e nao por crença ou mesmo outras. Admito portanto a reuniao de fes, crencas, e tantos outros dilemas como APV anuncia em cima.
Atenta e respeitosamente
CFC

Sem querer tomar partido, penso que a Great Divide pode também manifestar uma escolha e uma identificação (e não um receio de contaminação): "Escolho fazer arte erudita e não uma arte popular". Porque o meio da arte 'pop' tem os seus vícios e códigos de funcionamento, assim como o meio da arte erudita. Ambos o meios (ou tribos) têm virtudes e defeitos.
Como compositor reflicto bastante sobre este tema. E tento reger-me pela minha vontade e autenticidade nas propostas musicais que produzo. Sinto, no entanto uma espécie de fogo-cruzado oculto! Ou dissimulado...

@gonçalo. Exacto. Cada um escolhe o seu, ou os seus, lugares. Até porque como qualquer outra dicotomia, esta reduz a diversidade real. Não há só preto e branco. Aliás Adorno foi um grande criador de dicotomias rígidas. Os 2 capítulos da Filosofia da Nova Música intitulam-se Schoenberg e o progresso e Stravinsky e a restauração. Justamente ver a preto e branco algo que definitivamente é a cores: o mundo. Agora começas mal o teu texto: "sem querer tomar partido". Quer queiras quer não serás obrigado a tomar partido, nem que seja o partido dos anti-partido. Mas tens razão numa coisa: nenhum dos lados existe sem convenções, problemas, oportunistas, fundamentalistas de pequeníssimas tribos, etc. Identificar uma problema não implica necessariamente repetir o erro de Adorno: dividir o mundo entre os bons e os maus. Que lugar arranjávamos para os maus que são bons e os bons que são maus? E para todos os outros que não se revêem sequer na dicotomia e inventam terceiros espaços de criatividade? Há que distinguir, na minha opinião, mais do que os pressupostos de partida os reais resultados das coisas feitas. isto não significa inversamente meter a cabeça na areia face a qualquer coisa que se mete pelos nossos olhos dentro: a existência de uma quadro de leitura do mundo dominante que nos restringe a clarividência. A questão é, como é óbvio, muito complexa. A busca da autenticidade é um bom caminho individual, mas não deve impedir a lucidez sobre em que mundo vivemos. Abraço.

No outro dia falava com um amigo e um taxista (foi uma viagem interessante) sobre a natureza do Homem: por um lado sempre guerreou (as várias guerras ao longo da história), por outro sempre se humanizou (as várias obras e avanços intelectuais). Actualmente e sempre, o Homem é o mesmo e padece dos mesmos problemas arquetípicos. Nomeadamente, nem o humanismo resolve a guerra, nem a guerra resolve o humanismo...
Quanto a tomar partido, às vezes lembro o que se dizia a respeito de Vinícius de Moraes: "Era um personagem múltiplo. Senão ter-se-ia chamado Vinício de Moral". Penso que todos temos um pouco desta vontade de multiplicidade. Pessoa constitui, nesse sentido, simultaneamente um modernista e um pós-modernista, porventura um futuro clássico. Criador de grande alcançe no seio da cultura portuguesa e mundial. Por um lado, é fragmentado em heterónimos, por outro a sua obra é una, na sua multiplicidade. É certo é que Pessoa não foi vítima do fogo cruzado, pois a sua obra só atingiu a notoriedade postumamente...
Talvez seja bom acabar este 'post' do seguinte modo: Ser Pessoa é perigoso.

Cito um escritor português não tão lido como isso Ruben A.:
"É essa luta de pessoas dentro da própria pessoa, somos dois em cada um de nós, este drama nunca se esclarece" (p. 101 de Silêncio para 4). Do que ele fala sei eu muito bem, como é sabido.

Tenho a impressão de que damos demasiada importância ao Adorno pelas razoes erradas. Parece por vezes que atribuímos ao seu pensamento o poder de ter influenciado comportamentos individuais e corporativos, políticas académicas e culturais. Já foi citado Bourdieu, logo posso introduzir o termo dominação. Essa vulgata e as suas variantes apenas escondem as desigualdades da nossa sociedade e o desejo mal disfarçado de que elas se perpetuem. (hoje mascarei-me de Robin Hood e posso escrever estas coisas.) Convém não ignorar a força do pensamento adorniano no contexto em que surgiu, do conceito de "indústria cultural" (apesar, ou incluindo a crítica de Huyssen) e, paradoxalmente na perspectiva da tertúlia, daquilo que escreveu sobre a personalidade autoritária...
O Adorno possui várias características que certos musicólogos apreciam muito: escreve mal, complicado e abstruso, as ideias são, no fundo, superficiais em muitos casos, mas disfarçadas de intelectualismo por causa da linguagem utilizada, a roçar o esotérico, e tem um pensamento maniqueísta fácil de usar para instaurar, como diz Kundera, processos. Processos históricos, nomeadamente. Logo na Filosofia da Nova Música dá a escolher entre Stravinsky ou Schoenberg, entre dodecafonismo e neoclacissismo, com calara inclinação pessoal para um dos dois. Mas porque raio teremos nós de escolher entre um e outro, ou recusar um para apreciar o outro, se ambas as correntes, ou técnicas, ou estéticas, são completamente diferentes uma da outra, e ambas trouxeram à música objectos maravilhosos, como o Concerto para Violino de Alban Berg e a Sinfonia de Salmos de Stravinsky? Por vezes creio que a História da Música real é uma outra completamente diferente daquela que nos dão a ler nos livros, uma história da música que ignora este filosofar vazio e se limita, e muito bem, a produzir obras musicais. os musicólogos e filósofos são como os abutres: vêm sempre depois, e deliciam-se com cadáveres.
Sergio Azevedo Compositor Sem desprimor para alguns musicólogos, como a Teresa, que se deliciam també com coisas vivas, como o Lopes-Graça que ela muito bem estudou. Mas em geral, parece que é uma actividade necrófoga.

António Pinho Vargas
Há uma aspecto em que a Teresa tem razão. A vulgata adorniana só por si não seria suficiente... A ideia avançada pelo Wellmer já há uns anos talves explique melhor a sua persistência ( "as suas ideias como que se interiorizaram no espirito dos artistas"). Sabemos para dar um exemplo muito conhecido (e canónico) que a leitura de Schopenhauer foi muito importante para Wagner. Mas é evidente que o resto faz parte da própria dinâmica das coisas do mundo, das forças em presença e da estrutura dos campos artísticos e das suas lutas inerentes.

Quem têm medo de perder algo (a posição no "campo" sobretudo quando o entorno é muito conservador, ou seja, reconhecimento, contactos e honorários) receia o que está vivo, retomando a expressão do Sérgio, e é, portanto, imprevisível. A tal contaminação de que nos falava o António também passa por aí. Nunca li nada do Albrecht Wellmer (espero estar ainda a tempo!), pelo que apenas posso acreditar no que o António diz. Atrevo-me a acrescentar que essa "dinâmica das coisas do mundo", no que se refere à nossa conversa, tem mesmo a ver com o pavor sentido da parte dos intelectuais perante as "massas", estamos a falar de uma reacção específica a esse fenómeno, cuja origem já está, obviamente, no século XIX. Agora, por causa das comemorações, estou a ler algumas coisas sobre o Mahler e já o outro dia me lembrei das críticas às citações "popularuchas" das suas sinfonias...

Sergio Azevedo Compositor
Essas "citações popularuchas" estão entre o que de mais delicioso Mahler escreveu. É engraçado, mas ainda hoje parece que a música "erudita" nunca teve nada que ver com a música popular, componesa ou urbana ou seja qual for. Comprei aqui há uns tempos um livro interessante, sobre as raízes populares da música erudita, e realmente, como já pressentia, há interacção entre ambas desde sempre, nem que fosse por ouvir dizer. Será que Mozart alguma vez ouviu a tal música turca de que se falava tanto com os turcos à porta de Viena? Provavelmente escreveu a versão dele dessa música por ouvir dizer umas coisas, ou terá ouvido apenas algumas pálidas imitações. Mas quantos mais não contactaram directamente com fontes populares de vários tipos? Desde sempre! Josquin, Bach, Haydn, you name it!

Sergio Azevedo Compositor Felizmente quer a Teresa quer o Mário Vieira de Carvalho pegaram a tempo no Lopes-Graça, e outros têm pegado em dois ou três mais, mas em geral, os compositores enquanto estão vivos, e a não ser que sejam aqueles de topo, tipo o Ligeti ou o Boulez, não merecem a atenção musicológica. E não me digam que é por os outros não serem tão importantes, porque depois de mortos até compositores de 4ª categoria atraem as moscas.

E havia outra coisa no Mahler, também "impura" para a cristianíssima Viena imperial: era judeu. Logo, esses elementos musicais "impuros" só podiam ser o resultado do seu judaísmo contaminante, uma das razões porque o snazis mais tarde proscreveram não só o dodecafonismo de Schoenberg mas também o jazz e até o clássico Mendelssohn. O êxito de Mahler deveu-se (ainda que polemicamente) a ser um grande maestro e director da Ópera, como criador era menosprezado, e em parte isso deveu-se ao seu judaísmo. Parece exagerado, mas não é. Aqui há tempos encontrei um artigo sobre alguns compositores da época, um artigo (norte-americano, note-se) do início dos anos 30 (se não estou em erro agora, não o tenho aqui presente), que, entre outros mimos exegéticos, afirma que Mahler não é exactamente um compositor, um criador, porque toda a gente sabe que a chama criadora não é uma característica judaica... os judeus roubam, apropriam-se das ideias dos outros, mas não criam realmente nada. Há habilidade, treino, alusões roubadas e disfarçadas a outros debaixo de uma máscara brilhante, mas não verdadeiro génio criador. E as alusões a música de caserna faz parte da mente doentia da raça, da sua degeneração. Isto parece conversa de Goebbels, mas é de um musicólogo norte-americano, e não é único. A ideia de contaminação, de pureza, que se mantém na música, e que na altura estava ainda mais presente do que hoje (felizmente), é uma ideia que deriva das ideias de eugenia muito em voga na época, e não só na Alemanha de Hitler. Pureza de raça, pureza musical. Exceptuando as alusões a verdadeira música folclórica (dado que o "povo" é exaltado pelos totalitarismos), o jazz, a música de circo, de caserna, de entretenimento, ou seja, a "lumpen-musik", eram consideradas uma degeneração da música pura, "ariana", digamos, e misturar as duas era, aos olhos de muita gente na época, o mesmo que um operário andar de primeira classe num transporte, um camponês casar com uma senhora de sociedade, ou ainda um negro casar com uma branca. Penso que, mais do que uma questão artística, esta é uma questão muito mais complexa e que toca em várias áreas: sociologia, história, filosofia, etc. O que diz o António é extremamente interessante e pertinente ainda hoje em dia, embora creia que as coisas estão a mudar para melhor. Ou não?

Há esse facto, claro, que é importante na biografia do Mahler, mas no caso das críticas (ou pelo menos, no caso dalgumas, nas quais foram condenadas as tais citações "popularuchas") a sua origem judaica não é mencionada. Os autores estavam preocupados era por manter a "regra" da academia.

Tens razão Teresa, há uma mistura das duas coisas, mas, curiosamente (não sou especialista em Mahler deste ponto de vista), as menções ao seu judaísmo datam de depois da morte dele, em vida, pelos vistos, não se era tão aberto a acusá-lo disso, ou por temerem o peso do seu prestígio, que era muito como director da ópera (e é certo que chegou a esse posto mesmo sendo judeu), porque os judeus nessa altura estavam relativamente bem assimilados, e até nem era de bom tom, em certas faixas da sociedade, falar nesse facto, embora se murmurasse por portas travessas. Mas depois, nos anos 20 e principalmente 30, já encontrei várias menções ao seu judaísmo, e várias misturavam as duas coisas, a mistura de estilos e músicas como resultado do judaísmo não criativo e a disposição judaica para a decadência e a miscigenação através da mistura de elementos da alta e da baixa cultura, como se chamava na altura. E, como disse, não era só nos países germãnicos que isso acontecia. Os EUA foram um dos países que primeiro se interessaram pela eugenia, devido ao racismo que grassava, e não por acaso havia bastantes apoiantes de Hitler nos EUA antes da guerra e até durante esta, tal como na própria Inglaterra... não é por acaso que o uso de música "baixa" (jazz, circo, etc) em Berg (Wozzeck) ou Stravinsky ("Renard", "História do Soldado" não produziu um décimo das reacções de desagrado que as mesmas técnicas produziram nas obras de Mahler e Schoenberg. Mas, admito, neste campo não sou especialista, posso estar enganado.

‎@teresa@sérgio (mudou de sítio)
O que é importantes na reacção vienense a Mahler aos elementos "populares" por isso, impuros, contaminados pela cultura outra (de massas, popular urbana, ou mesmo rural olhada de cima para baixo, da alta para a baixas culturas) é que perdur...ou longo tempo. Só a persistência de L. Bernstein, associada ao uso por Berio na Sinfonia (1968) e ao filme do Visconti acabaram por resultar na entrada tardia de Mahler nos compositores canónicos. Pude ouvir num júri de um concurso de composição de que fiz parte em 1991 um compositor da geração anterior à minha dizer "ainda hoje me custa ouvir certas coisas de Mahler". O que lhe custava (ou custa) ouvir é o sujo, o baixo, o "ligeiro", o sem requinte, o foleiro, o próprio dos gostos do "whisling man" da rua (expressão de Babbitt). Estou certo de que estes valores aristocráticos (na verdade em não-aristocratas) continuam plenos de vigor nas mentes dos que se olham a si próprios como superiores. Não porque façam melhor música. Mas porque À PARTIDA, sendo música séria, erudita, "clássica", Art music, musique serieuse, etc. É SUPERIOR. Mesmo que nem sequer seja boa, continua superior. Uma paradoxo QUE ASSEGURA a auto-legitimação.

A questão oculta (mas sempre presente no não-dito...)

Andreas Huyssen escreveu um livro muito importante After the Greate Divide : modernism and mass culture. O que é a great divide? Segundo o autor é a impossibilidade de compreender as artes do século XX e o modernismo sem o seu oposto: a cultura de massas.
A relação entre os dois termos alternou durante o século XX dois tipos de relação: a total separação, que do lado do modernismo (em todas as artes) assumiu a forma de uma "angústia de contaminação", ou seja, qualquer obra contaminada pela cultura de massas em qualquer sentido estaria irremediavelmente marcada pela vulgaridade, pelo mau gosto do homem da rua. Em contrapartida a cultura de massas nem sequer contempla com qualquer atenção os trabalhos modernos. Ignora-os. Pode-se dizer, com Boaventura, que a arte modernista foi condenada por Adorno à fuga do mundo e "basta ver a distracção com que é contemplada". Os artistas de vanguarda vivem no terror da contaminação pela vulgaridade com que vêem e descrevem a cultura de massas. Por outro lado, nos anos 20 por exemplo, e nos anos 60/70, verificou-se outro tipo de relação: o da curiosidade mútua, a do interesse pelo trabalho do oposto dicotómico. Foram períodos de grande interpenetração e troca de experiências. Foi nos últimos que cresci. A patir dos anos 80 até 2000 voltou a dominar a angústia de contaminação. De cada lado da dicotomia olha-se sem disfarce com enorme complexo de superioridade para o lado do diferente.
Para Huyssen o grande teórico da Great Divide foi Adorno: elevou a arte moderna a único modelo e referência, do qual excluiu violentamente Stravinsky, num lance de profunda incompreensão por qualquer música não alemã, considerou o modernismo uma forma de resistência (pela via da incomunicabilidade radical) à dominação da cultura de massas - discurso que ainda hoje alimenta a auto-descrição de superioridade dos músicos e artistas modernistas e, por outro lado, condenou sem apelo a cultura de massas no seu todo, como se se tratasse de uma produção monolitica. Não era, nunca foi, tal como o modernismo esteve sempre igualmente muito longe de ser monolítico: um movimento sem contradições internas e grandes divergências. Pelo contrário teve muitas divisões e divergências internas.
Dizia Adorno: a arte só será arte se não for arte! Radica neste tipo de posições a profunda arrogância com que alguns artistas consideram o seu trabalho e seu pavor do sucesso como sinal de fracasso por defice de radicalidade. Grandes erros, só possíveis num mandarim universitário alemão, marxista ocidental ao abrigo do marxismo real da União Soviética (morreu em 1969, salvo erro) germanófilo, elitista e conservador, apesar de muito inteligente e criativo mas incrivelmente prolixo e contraditório em muitos aspectos.
Ainda hoje vivemos com as consequências dos seus erros de análise e as manifestações da vulgata adorniana, que se foi formando ao longo da segunda metade do século e se disseminou nos meios modernistas entretanto institucionalizados (e subsidiados pelo capitalismo ocidental para fazer frente à ameaça soviética e à sua visão da arte como arte de conteúdos "ao serviço do povo"), muitos dos seus conceitos e as consequências das suas posições mais discutíveis, dizia, estão ainda muito presentes nos discursos actuais sobre as artes.
Adorno escreveu textos muito bons, sem dúvida (The Essay as form, por exemplo) e outros impossíveis de ler hoje sem correr o risco de ter um ataque de fúria. Hoje estou com vontade de ter um ataque de fúria modernista e de massas.
Porque digo que a questão é oculta? Porque basta passear pelo facebook para medir de que forma ela se esconde.
António Pinho Vargas, 12 Novembro 2010

sábado, 16 de outubro de 2010

Como mudar? III

O que mais me encanita é a incapacidade de mudar que sempre se tem mantido e se continua a manter. Teremos de esperar pela "volta do mar" a expectativa que os navegadores portugueses tinham de que continuando a descer o Atlântico devia acabar por aparecer um sítio em os ventos invertiam o seu sentido, conta-nos Peter Sloterdijk. (Não é engano). Sem essa crença numa possibilidade incerta, sem a coragem que a sua busca implicava - a verdadeira heroicidade colectiva, pensada, calculada como hipótese, mas com grandes riscos - hoje não haveria globalização, capialismo etc. Quem sabe e fala disto? É Sloterdijk. Nós não falamos disto.

Há a desorientação da esquerda. Ou é velha, ineficaz, às vezes estúpida (que me desculpem os que lá trabalham o melhor que podem) ou converteu-se às teorias económicas da direita europeia. Mesmo assim sobra-me uma interrogação: porque é que os partidos da direita querem tanto o poder? Será para baixar os impostos (deixem-me rir um minutinho...)? Ou para fazer como o Durão que depois de chegar ao poder argumentou que antes "não sabia em que estado aquilo estava". Depois de sair ficou pior. Mas foi premiado. Regressa o PS. Porque é que o PS age como se fosse obrigatório - there is no other way (dizia Margaret Tachter) - fazer a mesma política quase sem diferenças, esta politica que faz sempre que tem o poder? Acham que neste mundo em que os "mercados" (um nome para o funcionamento actual do capitalismo global) se tornaram entidades dotadas de desejo, de humores, espaços invisíveis dos quais comandam os destinos de milhões de pessoas alguém gosta de viver? Não há alternativa como dizia a ilustre fundadora das politicas neoliberais? A soberania dos governos locais é uma ficção nas grandes questões. Só serve para colocar alguns amigos em certas funções.

Vive-se sem democracia argumentativa. São sempre os mesmo a falar (e ganham muito bem). Ocupam praticamente todo o (reduzido) espaço público e transformam-no numa tribuna permanente a dizer as mesmas coisas. Haverá alguém - para além dos gestores das grandes corporações globais - que goste de viver neste mundo, repito? Aliás nem percebo bem porque estou aqui a escrever estas coisas. Será este o espaço dito público que nos resta? Há alguma coisa de profundamente errado nisto e não há quem nos mostre uma saída, quem nos dê uma esperança qualquer... Já sabemos que Marx se enganou em muitas coisas, sobretudo quando se imaginou "cientista", julgou ter descoberto "necessidades históricas" e pensou que o agente da transformação histórica seria o "proletariado". Wallerstein pensa que algo vai mudar - crise terminal do capitalismo - depois desta fase de transição que irá demorar entre 25 e 50 anos sendo nós - as pessoas, os movimentos sociais, os governantes - a ter o papel decisivo naquilo que vier. E previne: o que vier ou será mais justo, menos desigual, ou pode muito bem ser ainda pior. Cabe às pessoas decidir. Mas como contribuir para isso? Agir como ? Votando? Duvido muito. Em manifs à pancada com a polícia como em França e na Grécia? Paralisando o mundo com uma greve geral ilimitada? Legalizando a droga como propõe Vargas Llosa? (Sabe-se que é uma parte importantíssima da economia subterrânea e que está, diz-se, intimamente ligada com a oficial). Será que já estão em marcha silenciosa os movimentos sociais de que falou Boaventura (são sempre movimentos sociais que são capazes de tranformar).

A temporalidade de Wallerstein - até meio século - coloca-me já fora da nova estabilidade que se costuma seguir aos períodos de turbulência como este. Tenho pena porque gostava de ver como se vai passar disto para um novo período estável.

Porque é que ninguém pergunta aos especialistas do capitalismo coisas simples que desorientem e descentrem os discursos tipificados diários: "Qual é, para si, o sentido da vida? É o facto de a acumulação infinita de capital ser um fim em si mesmo? O que significa produção de riqueza? Para que é que serve a riqueza produzida? Para comprar helicópteros? Qual é para si o papel da arte? Qual será o seu significado profundo? Porque é que há arte? Você "investe" em arte? Porque é que quer ter em casa "um Picasso" ou "um Bacon" e paga milhões para isso. Pela prazer da posse? Pela distinção cultural que a posse da arte confere? Sabe uma coisa? Eu também faço arte, chama-se música mas você não pode pendurá-la na parede, lamento