quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Compor o compositor: as condições de possibilidade para "ser livre".



Porque é que terei as condições de possibilidade para "ser livre" enquanto compositor? Em boa parte porque sou periférico.

[Ponto prévio: devo tentar explicar a minha perspectiva sobre os diferentes olhares. O que é que vê um periférico? Vê o que se passa no seu país e aquilo que lhe é dado conhecer pelos dispositivos de divulgação dos países centrais; desse modo conhece relativamente bem a música de hoje feita em França, na Alemanha, na Inglaterra e, em menor grau, na Itália e nos Estados Unidos. Mas não conhece a música feita nas outras periferias, em Espanha, na Grécia, na Irlanda, na Bélgica, na Dinamarca, na Suiça, na Bulgária, na Roménia, na Rússia, etc., a não ser a dos compositores destas periferias que emigraram para o centro. O que é que vê e conhece um compositor dos países centrais?  Vê acima de tudo o se passa no seu país, ignorando não apenas a música de todos os periféricos como igualmente a música dos outros países centrais, excepto a daqueles que fazem parte do 'subcampo contemporâneo', a parte da produção musical que tem o aval de instituições europeias como o Réseau Varèse e outras similares de menor peso. Nesse sentido cada compositor de um país periférico conhecerá mais mundo do que os dos países centrais, ofuscados que estão, como afirma Kundera, pelo brilho da sua própria cultura]

A resposta, aparentemente paradoxal, que reclamo para a minha pergunta, passa por uma análise das formas como é vista a figura do compositor nos países centrais. Estes países dotados de dispositivos de poder, tanto de condicionamento como de distribuição ou irradiação - cada vez mais reduzida, em verdade - que são apenas operativos se associados a uma determinada ideologia que define o compositor como "autónomo" e "heróico". Esta ideologia tem uma história, espaços de enunciação originários, instituições que simultaneamente a regulam e são reguladas por ela, em intrínseca interligação.
Trata-se de um imaginário sem o qual todo o edifício institucional associado ao "mundo da arte" musical colocaria em questão a sua própria razão de ser.  Nesse sentido é indispensável para a manutenção do actual estado de coisas.
Estes conceitos reguladores, estes imaginários partilhados não se circunscrevem aos países centrais da Europa, ou de forma mais lata, ao Ocidente. O seu alcance é mais vasto e abrange as diversas tribos locais locais, periféricas e semi periféricas, sem as quais não haveria mercados importadores para os produtos culturais provenientes dos países dominantes. É por isso crucial para as ideias reguladores do campo musical e do subcampo contemporâneo sejam capazes de ser aceites como verdadeiras para além dos países centrais.
Esta tripla associação entre conceitos reguladores, imaginários partilhados e dispositivos de poder económico-culturais que gerem a dominação geocultural no campo musical é crucial para qualquer das três componentes principais do complexo edifício ideológico que lhes serve de base de sustentação e de sobrevivência. Como condição fundamental desta crença está a ideia universalista: uma ideia que toma imediatamente como válido em qualquer lugar do mundo aquilo que origináriamente é apenas local.

Neste quadro o compositor local, periférico, inexistente face às estruturas de selecção e exclusão do subcampo central e transnacional, ignorado ou marginalizado nos seus próprios países, encontra aí, ao mesmo tempo, o seu limite e a sua possibilidade de libertação criativa. Como se processa este fenómeno, aparentemente contraditório?
A sua possibilidade de autonomia criativa face às correntes dominantes é-lhe dada, de forma paradoxal, pelos limites impostos pela inexistencia global mas reclama uma segunda condição.
Essa segunda condição - a libertação possível mas não garantida à partida das estéticas dominantes - só se pode realizar através da autoconsciência face ao funcionamento complexo das componentes ideológicas, das ideias aceites e correntes em geral, do seu imaginário difundido como verdadeiro. Sem essa assunção consciente de não-pertença, nem do ponto de vista da realidade, nem do ponto de vista do horizonte de expectativas, verifica-se um fenómeno particular de falsa-consciência. Neste caso o compositor periférico trabalha e produz comandado pelos valores e crenças que recebe e assume como seus, sem com isso alterar substancialmente a sua condição de periférico. É a imaginação-do-centro que alimenta o equívoco de pertença a um mundo do qual só existe a imaginação dele.
Mas, se existir essa consciência de pertença a um lugar de enunciação especifico - exterior aos valores dominantes nos centros - o compositor periférico liberta-se das várias formas de pressão ou dominação semi-invisíveis. Primeiro, liberta-se da ideologia dos "mais avançados", da pressão das ideias do "estado da linguagem musical"; segundo, da primazia das correntes aí dominantes, em cada momento histórico - que, aliás, neste momento particular são diversas mesmo nos diferentes países centrais - e terceiro, pode estabelecer para si próprio um outro conjunto de valores em que acredita, criar laços de afecto com o público do seu país com o qual interage - dando e recebendo - e com o qual partilha a condição da periferia, e desse modo, criar uma individualidade distintiva, que não poderia alcançar fora desse lugar de enunciação.

Não é por acaso que a grande parte dos compositores emigrantes, depois de 1950 até hoe, assumiram como seus os valores dominantes dos países onde foram acolhidos; de outro modo o conflito estético resultante teria provocado a dificuldade de, simplesmente, trabalhar. Face às actuais diferenças entre os países centrais, que só a ideologia universalista torna invisíveis - uma vantagem do periférico: ver o que os outros não conseguem ver - não é indiferente emigrar para a França, ou a Alemanha, ou a Inglaterra, embora este aspecto não tenha sido até hoje objecto de grande reflexão publicada. De certo modo ouve-se nas obras dos compositores emigrantes (da segunda metade do século XX até hoje) a marca indelével do contexto cultural escolhido, da narrativa aí predominante, a par com aquilo que sobra para constituir uma assinatura de autor. Muitas obras foram compostas nas quais é possivel à simpels audição detectar essas marcas. Algumas dessas obras são boas composições. O que está em jogo não é da ordem do julgamento de valor mas sim da marca geocultural. Na verdade cada lugar, cada contexto, cada sistema de ensino, cada estrutura institucional, contribui fortemente para "compor o compositor".
Considerando as principais correntes que existem neste momento na vida musical do subcampo contemporâneo  e também alguns compositores (por exemplo, entre muitos outros, como Sofia Gubaidulina, mas que, de outro modo, tem muito trabalho e é bastante tocada em instituições mais tradicionais e menos contralizadas) que, de algum modo, não marcam presença regular nele, especialmente na sua estrutura institucionalizada que é o Réseau Varèse, rede que dispõe de apoios de fundos da UE e que corporiza a continuidade da dominação longínqua, herdeira do eixo Darmstadt - IRCAM, irei procurar descrever aquilo que, a meu ver, marca a minha diferença enquanto periférico e enquanto não alinhado pelos valores centrais dominantes.
Em primeiro lugar não partilho a ideia de unidade, coerência, lógica, construção, conjunto de conceitos base das tendências pós-seriais dos vários matizes. Esta corrente caracteriza-se igualmente por manter fidelidade ao conjunto de interditos cuja origem remonta a Schoenberg. Os interditos são em particular acordes perfeitos, oitavas e ritmo regular ou pulsado, todos vistos como sobrevivências anacrónicas e reaccionárias do sistema tonal, declarado extinto pela visão linear da evolução da linguagem musical de raiz hegeliana. Este conjunto complexo de princípios base e interditos práticos  (mais ligados a uma filosofia da hstória da música do que aos procedimentos eles-próprios, (cf. o artigo Racionalidade(s) e Composição, 1999) é seguido pelos favoritos do Réseau Varèse que prolongam e prosseguem esta orientação. Há certamente algumas peças compostas por este grupo compositores que considero boas peças, apesar de não partilhar os seus princípios, nem os seus pressupostos.
O facto de não tomar essas ideias como válidas hoje, permite-me não apenas não considerar nenhum dos seus interditos, como não partilhar os conceitos organicistas derivados de Goethe - unidade, coerência, lógica - e, em consequência, abrir como zona de livre invenção e de imaginação criativa a construção de "regras" para cada obra, sem por isso sentir como necessário o estabelecimento de qualquer conjunto de principios teóricos base. Nesse sentido vejo o acto de compor da forma que Stanley Cavell descreveu como característica da arte moderna: "O artista deve criar a sua obra num modo de radical auto-reflexão". (Hammer: 2002: 98)
Conheço aqueles princípios nas suas várias encarnações históricas e realizações artísticas e estou longe de demonizar essa corrente como um todo. Sou, no entanto, crítico feroz da primazia que algumas instituições e dispositivos culturais atribuem (ou atribuíram) a essa corrente, mesmo antes de ouvirem as obras, quaisquer que sejam. Trata-se de incluir à priori com base em preconceitos estabelecidos e na hegemonia.

A recusa dos princípios base assenta na rejeição de uma possível enunciação sua, apriorística. Isto não significa que eles não regressem, eventualmente, noutra fase posterior. É durante a própria composição das peças que se estabelecem as "regras" que lhes são próprias, que se desvendam gradualmente como necessidade - de acordo com os meus critérios específicos de coerência e lógica discursiva que me parece que aquela obra, em particular, reclama - e não por serem entidades prévias, absolutas, universais e indiscutíveis. Cada momento histórico, cada corporização de um estilo de uma época ou de um compositor - normalmente estabelecida posteriormente, a partir da visão de um conjunto de obras do passado - mostra-nos que, mesmo no caso da longue durée que a tonalidade constitui, os critérios de avaliação daqueles valores foram, eles próprios, mudando ao longo do tempo. Assim sendo - o que me parece consensual - seria muito estranho que o nosso tempo tivesse levado a cabo uma inversão dessa ordem das coisas, criando formas indisputáveis daqueles conceitos reguladores.
Aqui reside a contingência essencial da arte: cada obra explica o seu próprio ser ou não explica.

Por outro lado, na sequência do trabalho dos minimalistas americanos, um vasto número de compositores, com destaque para os de língua anglo-americana, passaram a utilizar sobretudo a partir de 1980, não apenas ritmos pulsados regulares, mas gradualmente um conjunto de princípios harmónicos próximos da tonalidade, muitas vezes associados ao uso da orquestração e da instrumentação totalmente de acordo com o que define academicamente "uma boa orquestração" à maneira do final do século XIX ou da primeira metade do século XX, em certos caso expandidos com harmónicos superiores em maior ou menor grau derivados de análises e dos procedimentos espectrais, característicos da corrente francesa do mesmo nome, para eventualmente enriquecer a harmonia, no fundo de base tonal e tornar a sonoridade mais "moderna". Também neste caso se verifica existirem uma série de ideias herdadas, de lugares-comuns aceites mas muito aquém de poderem ser indiscutíveis. São formulações provisórias de que cada um possui uma visão particular ou individual. Não é certamente o maior ou menor número de aderentes que dá a uma corrente a menor possibilidade de reclamar o estatuto de "verdade". Trata-se apenas de substituir uma série de convicções por outra série de convicções e traduz-se numa determinada prática ou num conjunto de práticas.     
De uma forma geral não sigo igualmente estes procedimentos. Não pretendo, à partida, que as minhas peças tenham uma sonoridade tradicional, um discurso leve, nem as formas harmónicas que Richard Taruskin designa por New Age. Mas, do mesmo modo, nada me garante que, do ponto de vista da recepção, elas possam eventualmente recebidas como tal. Entre as intenções do compositor e a forma como o seu trabalho é recebido, há a barreira que sempre existe entre o fazer e o percepcionar - entre a poiesis e a esthesis - que está para além daquilo que um compositor pode controlar. Faz o seu trabalho, lança-o no mundo, mas depois as possibilidades de recepção e de interpretação são infinitas, sendo isto válido para todas as obras e todos os compositores.

Julgo no entanto que é relativamente evidente que há sempre, na minha música recente, uma componente de sujidade face a estes critérios estéticos. No mesmo sentido penso que um acorde perfeito (ou imperfeito) não precisa de uma 'aura' que lhe dê uma aparência de modernidade. Moderno poderá ser tanto o discurso que encontra o atonal como o tonal, o belo como o "feio". O feio - de acordo com os critérios do 'belo musical' do anterior paradigma - tem uma enorme importância. Há quem lhe chame sublime usando a diferença kantiana. Devo dizer que é das coisas mais difíceis de tantar explicar a outros e a defender perante críticas, tal como do mesmo modo, fazê-lo inversamente a propósito de uma secção tonal, lírica, espressiva, etc, face a modernistas para os quais o simples aparecimento de tais atributos é imediata razão de rejeição. Em última análise cada um tem de compor sempre de acordo com as suas convicções e não com as de outros. Se vacilar nisto estará a um passo de uma espécie de perdição.
Prosseguindo, conforme as peças - cada uma é um artefacto artístico diverso de todos os outros - pode haver maior ou menor importância dessas componentes que referi, mas julgo que é no seu disurso articulado que se encontra a produção de sentido. Cada compositor possui as suas idiossincrasias, um conjunto de idiosincrasias, que são fulcrais para lhe dar a possibilidade de assinar.
A melodia - a mais misteriosa de todas as 'ciências humanas' como disse George Steiner - é justamente aquele parâmetro musical, digamos deste modo, no qual aquilo que é mais próprio de cada compositor se manifesta, mesmo quando na superfície não há melodia. Há sempre melodia, uma linha que conduz, por maior que seja a massa sonora.  Por isso, porque é que depois desta nota deve ser esta e não aquela? Porque é que depois deste bloco sonoro deve ser esta linha ínfima e frágil e não aquela? Estas perguntas remetem para a questão da forma e, também neste aspecto, não há modelos pre-definidos. Existe o exercício constante de auto-reflexão e auto-avaliação sem recorrer a modelos numéricos ou a sucessões ou multiplicaçõa dos tradicionais grupos de quatro compassos. Se houvesse modelos pré-definidos e utlizáveis compor seria fácil.
A liberdade é a mais dura das disciplinas.

António Pinho Vargas, 1-1-2013



    

sábado, 8 de dezembro de 2012

O efeito de distinção e o regresso da arte ‘aurática’: considerações a propósito do meu Requiem, da sua recepção e do seu destino.


O efeito de distinção e o regresso da arte ‘aurática’ como modo predominante do funcionamento do campo musical contemporâneo: considerações a propósito do meu Requiem, da sua recepção e do seu destino.


Bourdieu escreveu sobre a recepção da obra de arte: “uma vez que a obra de arte só existe na medida em que é percepcionada – quer seja um mero prazer estético ou um modo de gratificação mais indirecto como o efeito de distinção -  não é necessário acrescentar que tal só é acessível para aqueles que estão dispostos para se dela apropriarem porque lhe atribuem um valor”.  (Bourdieu, The field of cultural production, 1993: 227)
Se a percepção estética será individual, enquanto possibilidade, já no efeito de distinção, a aceitação do valor, decorre directamente de um determinado crença social e simbólica que está assumida como sendo válido para aumentar o capital cultural do frequentador de concertos. 
Não tenho interesse em questionar – e duvido mesmo da eficácia conclusiva de um tal inquérito - qual dois dois modos de percepção da música tem a primazia nas motivações secretas dos frequentadores das salas de concertos.
Interessa-me mais sublinhar a presença desse efeito de distinção, seja em que proporção for, associado ao requinte espiritual, ao carácter quase ritual que sempre está presente nos concertos da música da tradição europeia em oposição aos eventos provenientes da cultura de massas, dotados de baixo (ou diferente) capital cultural e, por isso, produtores de um efeito antagónico: reduzem o capital cultural que se tenta acumular. Na vida musical europeia do século XX em diante, a tensão entre a alta cultura da tradição clássica e a cultura de massas  emergente produziu muitas vezes aquilo que Abdreas Huyssen designou por ansiedade de contaminação. Tanto os artistas – músicos, compositores, etc –  como os consumidores melómanos procuraram, nessas fases, evitar o mais possível qualquer vislumbre de “contágio” resultante do contacto com produtos da cultura de massas. Esse contágio era visto como signo de inferioridade cultural, ou defice de radicalidade, ou ainda do pior atributo que neste meio cultural pode ser lançado contra alguém: o mau gosto.  Não é necessário acrescentar que o conceito de “bom gosto” é uma construção social e não existe sem debates infindáveis.
Neste contexto quando Walter Benjamin, no seu famoso artigo “A arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, vislumbrou potencial democrático nas artes reprodutivas que analisou – o cinema e a fotografia – terá talvez negligenciado a capacidade infinita de, seja qual for o suporte, ser possível reconstituir efeitos de distinção diversos que se recolocam nestas artes passiveis de reprodução técnica através dos mecanismos sociais que os estabelecem. No caso da música que Benjamim, não tratou, apesar de o aparecimento da gravação ter tido posteriormente as maiores consequências no própria funcionamento da vida musical institucional, em breve constituiu, por um lado, o tal potencial democrático que alargou o acesso das obras executadas nos concertos a vastas camadas da população que, não podendo, eventualmente, assistir a esses concertos por razões geoculturais da mais variada natureza, pôde tornar-se familiar com numerosos produtos discográficos, tanto históricos como actuais,  que se foram tornando progressivamente mais numerosos e “representativos”.
Nos países centrais da Europa – os países onde se localizam as editoras dotadas de grande prestigio simbólico, a Alemanha, a França e a Inglaterra – existe ainda, mau grado a proclamada crise da indústria discográfica, a capacidade de criar, consagrar e distribuir gravações a que podemos ter acesso regular. Pelo contrário nos países periféricos, como Portugal, a capacidade de criar esses produtos é muito menor e a capacidade de os distribuir é ainda menor, para não dizer quase nula.
Verifica-se então a seguinte realidade que reúne e põe em relação tudo o que disse até aqui. 
Em Portugal o número de gravações é reduzido; a sua presença nas lojas é igualmente reduzida nesta area. As instituições culturais que encomendam obras a compositores, raramente manifestam interesse em realizar gravações das obras que encomendam, com poucas excepções, que confirmam a regra. Deste modo se consubstancia, tanto um aumento do efeito de distinção, ligado à frequência de concertos, como um regresso do modo de existência aurático, associado ao anterior modelo aristocrático e pré-moderno de produção cultural. De que modo?
Não havendo em geral gravações, em especial das obras de maiores dimensões, que reclamariam obrigatoriamente o financiamento das instituições culturais e o seu interesse nele, os concertos desse tipo de obras (óperas, oratórias, peças para grande orquestra) passam a ter caracteristicas únicas, o que as aproxima fortemente da arte aurática anterior. Dando um exemplo recente que me diz respeito – embora esta análise possa ser aplicada a muitas outras obras minhas  e a muitos outros compositores – os dois concertos na Fundação Gulbenkian do meu Requiem, dirigido por Joana Carneiro, perfilam-se no horizonte como “momentos auráticos”, os momentos efémeros, típicos da música tal como ela existia na fase anterior à invenção da gravação, em que a obra existiu enquanto realidade sonora aquilo que, para mim, constituiu a essência da música. O facto de existir uma das suas condições de possibilidade futura – a partitura – não altera este facto. Na verdade, as instituições culturais que operam nesta área em Portugal existem, fundamentalmente, enquanto produtoras de concertos, detentoras em certos casos de orquestras próprias, e só muito esporadica e contextualmente, manifestam interesse relevante pela fixação dessas obras. Quando existem gravações – como, neste caso, as feitas pela Antena 2 – não se destinam a distribuição comercial como se verifica com numerosas obras lá existentes nos arquivos.  É um facto que este tipo de objecto cultural – os discos de música de compositores portugueses – estaria destinado a uma existência precária: edição pequena, desaparecimento rápido das lojas e vendas irrelevantes. Deste modo o potencial democrático que Benjamin entrevia na reprodução técnica, existe noutros países com a pujança possível numa forma de arte em crise – as vendas destes produtos são igualmente diminutas nesses países, se comparadas com as vendas dos produtos da indústria cultural global – mas não existe em Portugal e noutros países das periferias europeias, se não nos termos já referidos, incapazes de enfrentar e derrubar os obstáculos criados à sua existência, interna e externa, pelos dispositivos de poder existentes nos países centrais.
Assim sendo, o evento em-si-mesmo configura-se como um momento particular de uma percepção sensível, único, que ficará na memória dos músicos que o fizeram e das mais de duas mil pessoas que assistiram e o saudaram efusivamente – para grande alegria e satisfação do compositor e, presumo, dos intérpretes – e que por isso, podem reclamar o prazer estético, no caso de o terem sentido, em qualquer caso o efeito de distinção que a arte aurática permite – eu estava lá – sendo isto válido seja qual for a opinião pessoal de cada um sobre a obra. Na arte não há consensos, nem nunca houve, ao contrário do que o discurso canónico nos fez crer longo tempo: há supremacias históricas e, como tal, provisórias.
Estas transformações que estamos a viver, de todos os pontos de vista, em Portugal e no mundo, traduzem-se finalmente por um regresso inusitado à antiga forma de percepção da música pré-moderna, dado o facto de coexistir, no mesmo momento histórico, o descarte da possibilidade da fixação reprodutiva para certos produtos, e a continuação da encomenda de novas obras, destinadas ao seu momento aurático. Quando, numa revista do IRCAM, L’inuï, Nicolas Donin afirma, em 2005, que as estreias são, na maior parte dos casos, não apenas a primeira mas a única apresentação das obras e que a consciência desse facto, sendo cada vez mais partilhada pelos músicos, que assim vêem a sua responsabilidade acrescida – não vão apenas estrear uma obra, vão fazê-la de uma vez para sempre – (L’Inuï, nº 1, 2005: 31-50) mostra-nos que este fenómeno não é exclusivo de Portugal, nem dos países periféricos. É um fenómeno amplo, que está certamente associado ao lugar marginal que esta música tem vindo a ocupar cada vez mais, em particular algumas das suas muitas correntes, mas afectando praticamente todas elas - apesar do voluntarismo imaginativo com que, por vezes, se procura ignorar -, ao seu desaparecimento dos vários media – dominados pelos interesses da indústria cultural global – à sua produção activa de produtos culturais como inexistentes ou não merecedores de grande nota, mesmo na imprensa dita de referência. 
A tribalização - a divisão em muitíssimas práticas musicais - prossegue e com ela surgem novos modos de existência e de negociação de poder no espaço institucional e no espaço público.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Morton Feldman: artigo de 1967 sobre o ensino universitário da composição nos Estados Unidos

Morton Feldman:
Algumas frases do artigo Boola Boola de 1967 sobre o ensino da composição nos Estados Unidos nessa época.
[…]
"Se um homem ensina composição numa universidade, como poderá ele não ser compositor? Ele trabalhou duramente, aprendeu o seu ofício. Por isso, é um compositor. Um profissional. Como um médico. Mas existe aquele médico que nos abre, faz exactamente o que tem a fazer, nos fecha - e nós morremos! Ele não conseguiu aproveitar a oportunidade que poderia ter-nos salvo.
A arte é uma operação crucial, perigosa, que realizamos em nós mesmos. A não ser que aproveitemos a oportunidade, nós morremos na arte.

Torna-se cada vez mais óbvio que para estes tipos [these fellows] a musica não é uma arte. É um processo de ensinar professores a ensinar professores [It is a process of teaching teachers to teach teachers] Neste processo é o mais natural que a música do professor não seja diferente da do professor que ele está a ensinar. [In this process it is only natural that the music of the teacher will be no different from that of the teacher he is teaching] A liberdade académica parece ser o conforto de se saber que se é livre para ser académico.

Um pintor que continuadamente acaba pinturas exactamente iguais às de Jackson Pollock estaria rapidamente a caminho do Rockland State Hospital [um equivalente, creio, ao Hospital Júlio de Matos em Lisboa]. Na música nomeiam-no chefe do departamento.
[…]
Morton Feldman (1985) Essays, Beginner Press

Este texto, na sua maravilhosa comicidade, é, no entanto, da maior importância para se perceber a diferença entre o que é a arte - que nos pode matar - e o que é o academismo - que nos permite ganhar a vida. 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Porque é que os argumentos de Cavaco Silva para não demitir o governo são falsos?

  Nos últimos meses tem sido relativamente claro que a visão do Presidente da República e a do Governo estão longe de coincidir. Caso após caso verifica-se uma diferença -  ténue ou enorme, conforme as questões -  de posição. Então porque é que Cavaco  não demite o governo? Tento aqui apresentar uma lista de razões que são apresentadas pelos que não querem a demissão do governo. Trata-se de tentar fazer passar como evidências quando não passam de ficcções.

1- Portugal está sob ajuda externa.  Marcar eleições iria ser um desastre
  
Este argumento é, no essencial, antidemocrático. Houve eleições em França, houve eleições em Espanha, países que não estando “resgatados", estavam face a dificuldades claras. Mas na Grécia houve eleições – duas vezes –e só não houve antes um referendo, porque os europeus da CE entraram em pânico anti-democrático. Mesmo assim é o que se tem visto. Nem com este governo, nem depois de aprovado no Parlamento Grego o novo (?) plano de resgate, o dinheiro da Troika vai para lá. Até Manuela Ferreira Leite afirma que apesar de tudo isto “a Grécia ainda existe”. Isto demonstra que não é o facto de haver ou não haver eleições que determina o que quer que seja. A questão base é, parece-me assegurar os juros dos bancos alemães e europeus, acima de tudo. Por mais que a crise se aprofunde disto é que não abdicam.

2- Ficar sem orçamento de estado ia ser um desastre. Não se pode negociar.

Outro argumento falacioso. E ficar com este orçamento vai ser bom? Quanto toda a esquerda, e muitos outras instâncias oficiais, para além de muitas ilustres personalidades da área política do governo reclamam que este orçamento irá ser – ele sim – um modo de conduzir à catástrofe, para além de ser talvez inconstitucional, usar este argumento é erro crasso e falsidade. Erro crasso porque no futuro irá dificultar qualquer negociação do plano. Falsidade, porque com todos os dados que existem, com todas as posições que tem sido tomadas publicamente, inverter a questão dizendo que sem orçamento seria um desastre, resulta de má fé. Com este orçamento é que vai ser um desastre, diz meio mundo. Não poderá dizer que não o avisaram.

3- Cabe ao governo governar e tem legitimidade para o fazer.

Também o governo de Sócrates tinha legitimidade quando Cavaco fez o discurso que deu sinal/ordem ao PSD para não aprovar o PEC IV e derrubar o governo minoritário com o famoso argumento “há limites para os sacrifícios”.
E agora, já não há limites? Por muito menos do que “isto” Sampaio demitiu o governo incompetente do saudoso Santana Lopes e fez bem. Mas Cavaco tem muito mais medo, porque o resultado iria ser o mesmo: derrota do PSD. A legitimidade perde-se quando o exercício do poder é autista. Este governo ao recusar fazer qualquer esforço para negociar com as instâncias superiores da Troika, procura disfarçar que não conseguiu cumprir os seus próprios objectivos. Perde legitimidade. Tem legitimidade formal mas não tem legitimidade substancial. É uma espécie de Cavalo de Tróia da pequena troika. Não faz aquilo que todos os outros governos do sul da Europa têm feito. Tentar melhores condições, melhores juros, etc.  Por isso, uma das verdadeiras razões para não demitir é o facto de havendo eleições a derrota do “seu” partido ser mais que certa. 

Que outras razões obscuras lhe assistem? Medo de vinganças eventuais dos “seus amigos do BPN”, como dizia o peculiar candidato presidencial? Continua à espera que os que falam publicamente em seu nome – Ferreira Leite e vários outros da área do PSD, e mesmo conselheiros de estado – convençam o governo “morto” – mas afinal  vivo – a mudar de rumo? Não me parece. De cada vez que Cavaco fala, Passos e Gaspar estão-se nas tintas para o que ele diz e, algumas vezes  fazem logo a seguir o contrário.
Ontem (8-11), António Costa afirmou que, em Março do próximo ano, caso não actue, o Presidente terá de enfrentar “uma espécie de levantamento popular”, por não ter exercido os seus poderes na altura devida.  Cavaco parece ter muito menos medo disso do que de demitir o governo. O que será que lhe ata as mãos e o eventual raciocínio?

António Pinho Vargas

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O crédito está no centro da crise mundial

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O crédito está no centro da crise mundial.

O crédito está também no centro da crise em Portugal. Lembram-se da ida em bloco dos banqueiros a Sócrates que levou ao pedido de “ajuda externa”? Sócrates resistiu o mais que pode ao resgate, isso ninguém pode negar. Mas o PEC IV – que Merkel aprovou, lembram-se? – não foi aprovado na Assembleia e levou à queda do governo. Consta que, quando Ferreira dos Santos lhe colocou o resgate como obrigatório ou teria de pedir a demissão, Sócrates lhe atirou com o telemóvel. Mau feitio. Mas a ideia de tentar evitar o resgate não era estúpida, como temos visto. 
Vindo o resgate tão reclamado os primeiros a ficarem satisfeitos foram os banqueiros. Hoje financiam-se a 1% e financiam o Estado a 5%. ou próximo disso, segundo tenho lido. Belo negócio. É injusto e incorreto. Não poderia ser de outro modo?
Apesar de todas as ameaças, a Grécia continua a negociar mais um resgate. Dizem que não, que não pode ser, mas lá vai mais um resgate. Porquê? Porque é igualmente um belo negócio para quem empresta dinheiro a juros de agiota. O mesmo se passa em Portugal. Uma boa parte dos cortes nos salários destina-se, não a pagar a dívida externa, mas a pagar os juros do empréstimo. Outro belo negócio. Por isso a troika de cada vez que vem ver as contas preocupa-se antes de mais com o verificar das “reformas” com vista a receber os juros combinados. Os credores – como às vezes se designam – talvez se estejam nas tintas para as populações de Portugal, Grécia, Espanha, Irlanda, Itália etc., a não ser na medida em que os problemas desses países podem afectar os seus próprios negócios e a cobrança de juros. Daí que, ainda no primeiro resgate à Grécia, a Alemanha lhes tenha vendido submarinos, a França lhes tenha vendido Mirages, etc. Como Cohn-Bendit denunciou no Parlamento Europeu. Tem isto qualquer sentido a não ser fazer muito dinheiro? É isto uma União? Estranha forma de união.  
A “refundação” de Passos – não há mais impostos para cobrar – nunca contribuirá para por em questão o aumento das desigualdades em Portugal. Pelo contrário, visa reduzir o mais que pode as despesas com as funções essenciais do Estado, para que a banca, os especuladores e os credores, possam continuar com os seus negócios de acumulação de capital, mau grado a destruição da economia e o empobrecimento da população em geral que isso acarreta como consequência. Isso não lhes interessa. Uma vez assumindo que não se pode mexer nessas exorbitâncias em jogo, nem nos escândalos dos negócios legais, semi-legais ou ilegais, na Suiça ou nos offshores, não admira que não haja dinheiro. Vai todo para esses destinatários.
São por isso consistentes as propostas que o Bloco de Esquerda apresentou e que hoje Francisco Louça refere em entrevista ao Público. Por exemplo: “a renegociação da dívida passa por dizer aos credores institucionais, incluindo o BCE, que Portugal não lhes vai pagar os 35 mil milhões de euros de juros porque eles são financiados a 0% e não podem cobrar a 4%”. Parece justo, não parece?
Nestas questões, segundo os critérios dos media, conta muito quem faz a proposta. Se for Louça, passa por ser um irrealismo esquerdista; mas se for Cadilhe a dizer que se deve renegociar a dívida, já é vista como proposta séria. Esta distinção de análise é preconceituosa e ideológica.O seu lema é: só “os nossos” é que percebem de economia. Não tem sentido como argumento e, na verdade, pode-se pensar que “só os nossos” é que fazem tudo para preservar os termos profundamente injustos dos negócios.  Um país não é um negócio ou, pelo menos, até agora, não era.

 Assim se mostra um dos aspectos cruciais da atual fase  do capitalismo: “A crise manifesta-se na crescente escandalosa e ignominiosa desigualdade económica, e consequentemente social, que está rapidamente a aumentar entre sectores inteiros que vivem na pobreza ou em extrema pobreza, enquanto as fortunas de um pequeníssimo grupo de magnatas crescem sem limite.” in Uncertain Worlds, World-system analysis in changing times, Carlos Roja e I. Wallerstein, et al.: 2012: xxvii.
É o pressuposto de que é necessário manter a possibilidade de acumulação de capital por parte desta minoria privilegiada que faz diminuir as soluções possíveis. Uma série de medidas são consideradas à partida como não-aplicáveis. Porquê? São não-aplicáveis apenas de acordo com a ideologia política e económica dominante no mundo, controlado pela finança. Outra orientação é possível caso mude o poder político.
Quero dar exemplo provocatório para lembrar realidades passadas, por isso, com base histórica. Caso fosse o sinistro Estaline a ter o poder, acompanharia medidas desta naturezam, e doutras, com recomendações do tipo: “Fuzilar 4 ou 5 kulaks [pequenos proprietários rurais] por distrito, para dar o exemplo”, como se pode ler nos livros que estudam a maneira como foi implementada a colectivização forçada da terra, nos anos 30 na URSS.
Como ninguém quer fuzilar ninguém, embora queira mudar de política, o que é totalmente legítimo, talvez seja de considerar a justeza das análises do sistema-mundo.  Face à sensação de bloqueio do sistema político em Portugal, cito ainda do mesmo livro: “Há uma crise, total e estrutural em todos os níveis da política; estende-se ao nível dos estados-nação, uma vez que os estados estão cada vez mais incapazes de cumprir as suas funções básicas, fornecerem um mínimo de serviços aceitável, segurança, saúde pública e educação às suas populações. Estão também cada vez mais incapazes de conseguir ou manter uma mínima legitimidade ou credibilidade entre as mesmas populações. […] Cada vez mais a maioria das pessoas identifica a política como um vira-e-toca-o-mesmo rodando em torno de si próprio, uma área na qual na realidade não representa […] sectores cruciais dos cidadãos em geral.  […] Trata-se de uma crise total do mundo político e dos políticos em geral que hoje está esvaziada de qualquer relação com as esferas sociais, éticas e culturais. Num futuro próximo […] isto pode manifestar-se numa cada vez maior e mais difícil, total desapontamento com estas politicas por parte dos habitantes do mundo como um todo”. 

Este desapontamento, que é global, contém em si o perigo que gera e alimenta populismos salvadores ou estalines potenciais, mas é inegável que já existe de forma bem clara não apenas perto de nós, como em todo o lado, onde ainda se pode manifestar livremente o desejo de mudança.
Seria por isso importante que as alternativas reais que existem deixassem de ser descartadas à partida com base do argumento falacioso de que não se pode rasgar o acordo. Não se pode rasgar, dir-se-á, mas pode-se, e sempre se pôde, renegociar.  

António Pinho Vargas, Novembro de 2012.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

sábado, 13 de outubro de 2012

Como se manifesta quase todas as semanas a ideologia dos dispositivos de dominação cultural?

Como se manifesta quase todas as semanas a ideologia dos dispositivos de dominação cultural?
O novo maestro titular da Orquestra Gulbenkian, o inglês Paul McCreesh, diz hoje (13-10-12) no Actual do Expresso na sua entrevista sobre as suas novas funções "que Portugal não tem ainda uma produção musical extraordinária e internacional" e que "espera que não o prendam por isto". Poderá desde já ficar descansado. Não só não será preso como até corre o risco de ser condecorado, como aconteceu com René Martin, condecorado por Jorge Sampaio perto do final das suas Festas da Música, que teve como característica mais notória neste aspecto, ter apresentado em todas as festas da música juntas apenas uma peça contemporânea, encomendada ao igualmente francês e seu amigo Pierre Henri. Dizem-me que essa peça, uma colagem sobre Beethoven era muito má. Regressemos a McCreesh.
Apesar de não ser preso pode ser criticado e sobretudo interrogado. Poder-se-ia perguntar se assim sendo porque é que vem para este país? Mas seria demasiado fácil: o cargo de maestro titular da prestigiada Orquestra Gulbenkian é um lugar apetecível e bem pago.
Paul McCreesh tem razão: Portugal não tem o que ele diz - nunca teve - e prossegue: "em 50 encomendas pode haver duas realmente boas. Não temos de fazer música portuguesa apenas por ser portuguesa." Ao contrário do que ele poderá pensar este discurso é absolutamente corrente e, não apenas isso, é uma prática secular das instituições e das orquestras portuguesas. Mas as perguntas são as seguintes: Poderá ele afirmar quais são as duas peças boas dentre as 50 encomendas? Alguma vez terá ouvido alguma que seja, das boas ou das más? Porque é que, dentre as música actuais a música inglesa é hoje tão pouco tocada fora de Inglaterra, porque é que a música francesa é tão pouco tocada na Alemanha ou, mesmo, em França? Porque é que na Holanda, continuam a ser tocadas regularmente novas encomendas, que virtualmente, até à excepção de Andriessen a partir de 1995 - e exclusivamente nos EUA e UK - não teve, em todo o século XX anterior, virtualmente nenhuma presença em nenhum outro país? Zero. Será porque é toda má ou porque, tirando o repertório canónico alemão do século XVIII-XIX, algumas óperas italianas do século XIX e algumas obras francesas deste ou daquele - é isto o cânone - o que se pratica nesses países centrais é, com extrema clareza e, ao lado do repertório canónico, uma apresentação menor, mas regular, de música local desses países para além do tudo o resto? É de sublinhar que este tipo de argumentos contra o que designam de "particularismo" está sempre associado aos detendores do poder estabelecido. Nas discussões do acordos GATT o americano Frederik Jameson refere que face à defesa da necessidade de subsídios dos governos da Alemanha, França, Inglaterra, na criação de uma indústria cinematográfica nacional e independente, os lobbies americanos procuraram desmantelar estas subsídios locais ou nacionais como forma de competição "injusta". Ou seja, os americanos tentaram e conseguiram usar argumentos contra a defesa de expressões artísticas locais - incluindo a da Inglaterra - como particularismos provincianos para favorecerem a dominação cultural das corporações americanas do cinema.
No caso da música dita "clássica" europeia, as hegemonias mudam de lugar mas os argumentos dos hegemónicos não. A fractura encontra-se entre os paises centrais da Europa e os periféricos.

Ah, grandes provincianos! Os ingleses encomendam e apresentam várias óperas de Harrison Birtwistle, sem se preocuparem com o facto de raramente ser apresentada fora da Inglaterra (saberá isso?); os alemães apresentam óperas de Wolfgang Rihm, sem vacilar perante o facto de, em França, serem rarissimamente tocadas. Em França prosseguem as encomendas aos numerosos compositores do grupo dominante instalado no IRCAM apesar de a música de Philipe Manoury, por exemplo, não ser praticamente executada fora de França. 
Seria importante saber o que pensa McCreesh destas obras: considera-as boas, más, ou talvez ainda melhor, conhece-as sequer? As inglesas talvez, mas, as outras? Alguma vez as ouviu? Ou apenas se limita a repetir a mais difundida banalidade que todos os maestros repetem quando assumem novas funções para depois fazerem o mesmo que todos os seus antecessores nesses cargos (posso dizer ter ouvido este tipo de discurso nas últimas décadas dezenas de vezes) Apresentar maioritariamente repertório con"sagrado", canónico e muito semelhante em todos os países ocidentais e uma ou duas vezes por ano, produção nacional actual que, fora de redes europeias como o Réseau Varèse, dominado pelos países centrais, raramente circulam sem esse aval (e mesmo assim muito pouco). 
Outro aspecto: refere que "sei que a própria Gulbenkian tem um óptimo acervo de encomendas e já houve discussões sobre algumas voltarem a ser tocadas". Sabe mas não as conhece, nem nunca as ouviu, como é patente. Quando refere que em "50 encomendas 2 serão boas", perante a lista das encomendas da própria Fundação que o contrata, como é que as avalia concretamente? 
A lista, publicada pela Fundação em 2009-10 (duas edições), por ordem descendente de número de encomendas, diz-nos: E. Nunes, 23 obras, J. Peixinho, 12, J. Braga Santos, 11, C Capdeville, 10, C. Lima, 9, J. Rafael, 7, Filipe Pires, 7, C.Rosa, 6, Pedro Amaral, 5, M.L. Martins, 4, A.Cassuto, 4, J.P. Oliveira 4, A.Pinho Vargas, 3, M. Azguime, 3, I. Soveral, 3, A.Salazar, 2, A. Delgado, 2 e um vasto número de compositores com 1 encomenda, um dos quais dá pelo nome de F. Lopes Graça. Esta lista - que traduz uma certa orientação em si mesma, que se analisa a si própria - abarca todo o período anterior a 2009. Teria McCreesh um enorme trabalho pela frente se estivesse a falar verdade. Não está.

Gostaria de saber neste vasto número quais são as 2 boas, na opinião do ilustre maestro inglês. Não fora já saber, antecipadamente, que ele não sabe de modo nenhum. Usou apenas uma retórica. O seu mundo é, na verdade, pequeno, muito pequeno. O que é espantoso é isso ser típico. Resta, como mera consolação, saber que o seu âmbito de acção, como maestro titular, não abarca tudo aquilo que se faz e decide na Fundação.

Conclusão 1: É muito mais fácil dizer banalidades que, estando muito disseminadas, correspondem a uma verdadeira "ideologia reguladora", do que fazer decentemente um trabalho de casa. Não é caso único, longe disso.
Conclusão 2: Os melómanos habituais da Gulbenkian podem dormir descansados. Não terão que enfrentar nada que possa fazer vacilar as suas convicções identitárias de discreta autoflagelação . A Gulbenkian - com McCreesh - continuará a ser a sala de visitas da "Europa na Avenida de Berna", como escreveu José Gil. 

PS: Até gostaria de abandonar de vez este assunto. O que acontece é que, em cada semana, ele me bate à porta com a violência própria dos dispositivos discursivos de dominação cultural mais arrogantes. Tem como característica principal não se questionar, nem ter dúvidas, mesmo quando fala sobre o que, acima de tudo, não conheçe. O seu lema é "o mundo é aquilo que o meu olhar consegue abarcar".

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Dois compositores face à "ausência" da música portuguesa António Pinho Vargas e Sérgio Azevedo


António Pinho Vargas:
A dificuldade de entender o que é a ideologia universalista na música erudita.
Existe uma dificuldade aparente de entender o que é a ideologia universalista na música erudita.
Apesar de todo o meu esforço no livro Música e Poder:para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeupara tornar clara não apenas a existência de uma rede de poder transnacional europeia que domina o sub-campo contemporâneo como o eufemismo que não considera a diferença - inexistente na maior parte das práticas musicais - entre composição e autoria e, por outro lado, interpretação, como sendo coisas diferentes, leio no Público de hoje, a notícia da actuação do Remix Ensemble da Casa da Música (CdM) no Festival Musica de Estrasburgo. Que música é que este grupo do Porto apresentou "internacionalmente" na Alsácia? Três obras: Remix de Georg Friedrich Haas, Backdraft de Yann Robin, Jetz Genaut de Pascal Dusapin.
Deve-se salientar que o mesmo concerto irá ser repetido hoje mesmo na CdM no Porto mas com mais uma peça de Pedro Amaral.
A pergunta a fazer será: porque é que esta peça de um compositor português não foi tocada igualmente em Estrasburgo? Por opção eventual do director do Festival J.-D. Marco, que não obstante afirma que o este concerto foi concebido como "uma homenagem ao dinamismo e profissionalismo da Casa da Música e do seu diretor A.J. Pacheco". (Público, p.28) Na minha tese já referida levantou-se a hipótese de a entrada da CdM para o Réseau Varèse -instituição que agrupa vários festivais europeus e tem apoios da UE, ter significado, mais do que a existência de um instrumento para a música portuguesa, a integração de um grupo financiado pelo Estado português, no grupo restrito dos ensembles de música contemporanea europeus. Sendo isto verdade o facto é que em larga proporção este grupo executa tanto fora como dentro principalmente música programada/escolhida pelo seu grupo de programadores com larga presença de franceses e alemães. Mesmo quando o fez com música de Nunes era a pertença do compositor ao grupo restrito do sub-campo contemporâneo, a sua real localização em Paris, que determinava a inclusão de algumas obras suas. Ora, neste caso verifica-se a exclusão da obra de Pedro Amaral no concerto "internacional". De acordo com os conceito que usei essa obra é assim "provincializada" pelo programador português que não quis ou não foi capaz de vencer a exclusão decretada pelo programador francês.
Este facto acontece há décadas tendo sido uma prática corrente da Gulbenkian no passado, na direcção de Pereira Leal, dividindo E. Nunes - sempre executado por grupos vindo de "fora" - e J. Peixinho, pelo contrário, provincializado, ao ser quase sempre tocado "em casa" pelo seu grupo próprio local GMCL. Esta desvalorização simbólica é grave e tem consequências nefastas no longo prazo. Os responsáveis pela provincialização dos compositores portugueses são os programadores /directores também portugueses.
Esta distinção entre compositores (que ficam) e intérpretes (que vão) - que continua a regular o funcionamento destas instituições - tornar-se-ia clara transposta para outras música, por exemplo, se Amália fosse a Paris com a condição de apenas cantar Edith Piaf, se Mário Laginha fosse obrigado pelos festivais "lá fora" a tocar exclusivamente música de Keith Jarrett ou Vitorino tivesse que cantar "chanson française" da resistência. Como isto seria absurdo, espanta que o universalismo dominante na dita "música clássica" seja suficientemente forte para anular qualquer percepção que seja do seu próprio absurdo vigente.
No mesmo festival tocou igualmente a Orquestra Sinfónica da CdM, incluindo um peça do jovem compositor Daniel Moreira, residente na CdM, que tem sido executado pelos grupos da Casa nas tournées. Aqui surge uma outra forma de provincialização, trazida pela pena da crítica Diana Ferreira, que, diz-nos o jornal, viajou a convite da Casa da Música. Escreve "talvez o seu trabalho não chegasse, pelo menos tão precocemente, à programação de um evento como este não fosse o envolvimento da CdM no Réseau Varèse. Mas tais facilidades poderão conduzir a situações ingratas como contracenar com clássicos como Erwartung de Schoenberg e de discursos apoiados em receitas eficazes como a brilhante orquestração de Mantovani […] somando naipes inteiros no reforço de uma ideia que carece de orquestração". (ibidem) Claro que fico sem saber se a orquestração é brilhante ou se não existe, mas isso não tem qualquer importância.
Sendo certo que é aqui confirmada a importância do Réseau Varèse, o seu peso decisório, no percurso do jovem Daniel Moreira, neste caso coloca-se a "ingratidão" de ter ao lado Schoenberg e Mantovani. Talvez esta ideia seja da mesma ordem daquela que produz a exclusão da obra de Pedro Amaral do concerto do Remix. Em Estrasburgo seria talvez "ingrata" a sua presença no meio de tão "ilustres" companhias (Haas, Robin, Dusapin). No Porto já não é ingrata. Porque será?
Já há alguns meses o compositor Jorge Salgueiro referia-me a sua perplexidade perante as não-consequências da minha análise publicada, dizendo: "Está lá tudo, só não vê quem não quer ver". Quero agora afirmar que a única vantagem do meu livro será estar lá a análise feita, com os dados e os discursos que a fundamentam. Mas posso afirmar não apenas que não serve para nada que transforme, como poderia continuar a escrever adendas até à morte.
Nada irá mudar porque a estrutura deste campo inclui a sua própria "indiferença" e a sua cedência sempiterna aos valores "universalistas" - inamovíveis - que regulam o campo. Nada de muito diferente - embora existindo numa esfera sobretudo "simbólica" que é a arte - da primazia da Alemanha e da França na economia europeia ou da permanência da austeridade nas políticas. Uma ideia, tornada hegemónica, consegue mesmo ter o apoio dos subalternos, contra os seus interesses, como nos ensinou Gramsci, especialmente quando os seus efeitos são "invisíveis" n o interior do campo (o universalismo parte do pressuposto que tudo é imediatamente válido em qualquer lugar e tempo, ao contrário do que nos mostra o bem real sistema de dominação cultural dos países centrais), ao contrário da austeridade, que entra pela vida dentro de toda a gente. Este problema, pelo contrário, não interessa a ninguém, e esse, é um traço da sua inegável irrelevância social.
António Pinho Vargas, 9-10-12

Sérgio Azevedo:
Claro que tens razão, e eu próprio já tinha observado a ausência do Pedro Amaral (ou de outros) nesse concerto e em muitos outros. Estar metido nesses circuitos, como muito bem observas, é como estar metido com o FMI: aquilo não foi feito para ajudar os países pobres, foi feito para ajudar os países ricos a manterem-se ricos, através da exploração dos pobres. Ou seja, através do Réseau Varèse (que não é por acaso que não se chama Réseau Lopes-Graça, por exemplo), os pobres países como Portugal contribuem para a disseminação das obras dos países ricos, não das suas próprias obras e autores. Sendo uma rede, devia ser uma oportunidade para cada país ser tocado noutros países, evidentemente: franceses seriam tocados aqui, e portugueses em França. Talvez assim seja em pequeníssima proporção, para enganar os fregueses. Na realidade, nós tocamos 95% da programação deles, e eles tocam praticamente 0% da nossa. É mais ou menos como a relação do Estado e os privados nas PPP. Quem tem culpa disto: os culpados que tu apontas e a falta de uma força moral e ética da nossa parte para os mandar passear e exigir a equidade. Junta-se a isto o snobismo, esse mal português que Eça tanto aponta, e temos uma mistura mortal. Da minha parte, não sei se me considero companheiro de infortúnio, e embora compreenda o termo, ainda assim não vejo a coisa tão negra se a virmos de outro ponto de vista, um que ignore precisamente esses centros de Poder... tomei há muitos anos uma decisão: seria (ou não) tocado por quem gostasse da minha música, e recusei-me sempre a bajular grandes instituições para ter a minha migalha das migalhinhas que essas instituições oferecem de quando em vez à música portuguesa. Graças a essa independência, acabei por ter mais peças tocadas, mesmo fora de Portugal, do que se tivesse andado a pedinchar favores (que é também o teu caso e de outros, que criticam publicamente as grandes instituições pelas más opções tomadas, tu até mais do que qualquer outro que eu conheça). Porque a música é feita pelos intérpretes individuais, e esses sabem muito bem o que querem tocar. Temos observado na música contemporânea desde os anos 50 a sobrevivência falsa de muitos compositores, amarrados a garrafas de oxigénio fornecidas por instituições (Emmanuel Nunes foi um desses casos, a meu ver, trágicos), que, na realidade, só graças a elas sobrevivem enquanto são vivos (porque uma vez mortos as instituições acabam por escolher novos delfins). Depois de mortos, a crua realidade impõem-se, com resultados devastadores, muitas vezes indo até à extinção total até do nome. Veja-se a quantidade de música, as toneladas de música e de nomes desde os anos 50 até agora, e quanta dessa música é ainda tocada ou esses nomes recordados mesmo dentro do grupo ínfimo da música de vanguarda? A maior parte dela teve aquela encomenda da praxe seguida da primeira e única execução também da praxe, e depois foram morrer ao imenso cemitério de partituras da História da Música. Estes "réseaus" e semelhantes redes não servem para nada, na realidade, a não ser para manterem a supremacia cultural de que falas, e manter alguns delfins a flutuar enquanto estão vivos, porque caso contrário essa música não seria tocada em lado algum. Mantenho-me a léguas de tudo isso, porque não quero ser um compositor iludido mas sim um compositor com um pé na realidade, cuja música, a ser tocada (ou não), é-o porque eventualmente o merece, porque gostam dela, porque interessa às pessoas e aos intérpretes, e por aí adiante; caso contrário, que não o seja. Tudo menos sobreviver agarrado a garrafinhas de oxigénio, ainda por cima poucas e de má qualidade, e ser tratado com condescendência. Um artista deve ser independente dos poderes, e pela parte que me toca sempre os ignorei. Escrevo música, publico-a, que a toque quem quiser, eu fico em casa a fazê-la e chega. Tenho amizade e estima por vários intérpretes, faço por dar a conhecer a minha música, mas sempre de forma pública e distanciada, nunca tentando mexer cordelinhos em capelas escusas. E tem funcionado. Sabes, tão bem ou melhor do que eu, que a boa música, quando o é, fica, e a outra desaparece gradualmente da História; faça-se o que se fizer, ela desaparece. Quantos "sucessos" não tiveram tantos compositores na sua época para depois desaparecerem para sempre, e vice-versa? Por isso, não serão os Réseaus Varèses ou outras redes de submissão aos países ricos que irão mudar o juízo da História, demore este o tempo que demorar a julgar. Nesse aspecto, não me considero companheiro de infortúnio porque, do meu ponto de vista, não sou (nem tu és) infortunado. Repara: fazemos aquilo de que gostamos na vida, que é escrever e, no teu caso, também tocar música, temos emprego, numa altura em que tanta gente está desempregada, cada peça que escrevemos é quase sempre tocada logo pouco após ser terminada, várias delas são frequentemente tocadas, em Portugal e fora dele, e discos vão aparecendo, etc. Podemos queixar-nos: "Mas se eu fosse inglês era mais tocado ainda". Provavelmente, se fosses inglês ou alemão terias o benefício da tal supremacia económica e cultural desses países, mas tê-la-ias apenas por causa disso e não pela música em si, e é esta que nos vai fazer ficar (ou não) na lembrança e no amor das pessoas, aquilo a que se chama a "permanência histórica", na verdade. E esse compositor inglês ou alemão de hoje, poderá ser mais tocado do que nós mas é-o certamente menos do que Mozart o é, e muitíssimo menos. Por isso... há sempre alguém que é mais tocado ou mais gravado; aposto que o Magnus Lindberg "inveja" Schubert e este, se fosse vivo, "invejaria" Mozart, que deve ser o compositor mais tocado em todo o mundo, pelo que li uma vez algures numa revista de música (não sei se é verdade, mas não importa: alguém há-de ser o mais tocado!). O que digo acima, desculpa pela extensão, não obsta a que não tenhas toda a razão no que dizes (o teu livro é, nesse aspecto, uma constatação terrível destes factos), ou que não se lute por mudar as coisas, mas devemos lutar, no meu entender, unicamente porque estas coisas são, efectivamente de globalmente, injustas - de um ponto de vista universal e político - para os pequenos países, mais nada. Por uma questão de dignidade nacional, de equidade, de justiça e ética artística, é de todo imprescindível que esta submissão nojenta ao "Outro" termine, porque é uma questão não apenas da arte, mas do país inteiro, enquanto entidade independente. Ser um pequeno país não é uma fatalidade, vejam-se os casos da Islândia e da Finlândia, para só citar dois exemplos. Fatalidade é sermos um país com mentalidade pequena, não o sermos um pequeno país do ponto de vista demográfico e geográfico.
Sérgio Azevedo, 9-10-12

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Uma resposta a Carlos Araújo Alves sobre as disfunções das estruturas do ensino da música.



Há uma sequência de textos que faz sentido seguir: primeiro publiquei aqui "Contado ninguém acredita (excepto por aqueles que passaram por isso); Carlos Araújo Alves publicou no seu blog uma resposta no seu blog ideias-soltas.net o texto "Ensino da Música em Portugal - na sequência de texto de António Pinho Vargas" de que deixo o link:

 http://ideias-soltas.net/2012/09/04/ensino-da-musica-em-portugal-na-sequencia-de-texto-de-antonio-pinho-vargas/#.UEZncqSe49U

As questões que Carlos Araújo Alves (CAA) coloca tem toda a pertinência. No entanto gostaria de dar a minha opinião em relação a alguns aspectos nos quais há algumas diferenças, por um lado, no que se refere a cronologia,  e por outro, de enfoque.
1.
Julgo que o processo de criação das ESM foi muito conturbado e teve muitos erros. Na verdade estava ainda a terminar o meu curso de piano nessa fase e por isso era aluno do Conservatório até 1987. Depois fui para a Holanda e o meu conhecimento próximo do que se passou foi relativamente reduzido ou distante. Mas sei que efetivamente essas duas pessoas que CAA refere tiveram uma papel muito negativo, especialmente na fase inicial (Roberto Carneiro). Penso que um mínimo de bom senso teria feito adoptar uma estratégia semelhante à de Espanha – dar uma equivalência em geral logo à partida – em lugar de se optar pela solução personalista: escolher pessoas e encarregá-las de formar Comissões Instaladoras enquanto ao mesmo tempo se desqualificava, em bloco, os Conservatórios.  Sobre este período estou, em geral, de acordo.
Quanto à questão das licenciaturas, coloca-se mais tarde e não no início. Voltarei a esse assunto. Até a uma certa altura, esta questão apenas pairou por cima nas ESM, como ameaça perigosa por via do encantamento universitário. Quem fala tinha o seu curso universitário, como agora tem o seu doutoramento, como teve o seu curso de pós-graduação como emigrante-provisório. Mas isso não pode impedir, antes pelo contrário, um esforço de análise do passado e dos seus erros. Para já tento explicar o que penso no mínimo de palavras que conseguir.
Antes disso, houve a exceção do caso de Constança Capdeville – com quem tive o grande prazer de ter algumas aulas em Lisboa por volta de 1976 ou 77, viajando do Porto propositadamente para isso – e que, não tendo licenciatura, como naturalmente ninguém tinha, desde que tivesse feito a sua formação nos Conservatórios e na vida musical, fez não obstante parte do corpo docente do Curso de Ciências Musicais, que foi o primeiro curso universitário a ser criado em Portugal, creio em 1983. Foi e foi muito bem, na minha opinião, considerando a excelência da compositora. Mas, na sua geração estavam todos nas mesmas circunstâncias, daí essa opção de exceção à regra estrita, ter suscitado no meio alguma perplexidade e algum mal-estar mais do que compreensível; não pela competência da pessoa, absolutamente indiscutível, mas por ser a primeira exceção. Seguiram-se uma ou outra segundo creio.  Constança foi posteriormente professora da ESML e, novamente, muito bem ou melhor ainda.
Esta questão só existe como consequência da recusa, por parte dos dois “experts” de gabinete nomeados pelo governo, de atenderem, como deviam ter feito, ao facto de “antes não haver outro sítio para estudar música” não apenas em Portugal, mas como na Alemanha, França, Holanda, Rússia, etc. Só deste modo poderia ter havido uma transição e uma política consistente que não fosse traumática, como infelizmente se verificou e o texto de CAA dá testemunho.
Já havia ensino universitário em alguns deste países mas, justamente, para cursos de Musicologie, como se dizia em França, ou Muzikwissenshaft, na Alemanha, Ciências Musicais, em tradução literal. Portanto dois ramos bem distintos, bem diferenciados.
Radica nesta falha – não enfrentar de início o estatuto dos professores dos conservatórios – aquilo que CAA considera ser concomitante com, e cito, “a perseguição pessoal, o arregimentar de interesses, o compadrio, influências partidárias funestas e até corrupção”.  Sendo estas características lamentáveis e disseminadas na sociedade portuguesa em geral, mesmo não tendo dados muito objectivos, não me admira muito e parece-me poder concordar.
Tudo o resto que refere – “as ameaças sobre os professores do conservatório” e a sua desqualificação prática para o nível secundário, ficando reservado o superior para as duas ESM em criação e as resistências e lutas parciais que se seguiram foram não apenas justas mas previsíveis. Ninguém gosta de passar de cavalo para burro, especialmente quando antes não havia cavalos, usando a sabedoria popular. Sobre, e cito novamente, “as pressões e chantagens exercidas pelo ME, então representado por umas estruturas apelidadas de GETAP, para as quais tinham sido nomeados ex-alunos da pessoa que tinha obtido a nomeação governamental” recordo ter ouvido essa designação (GETAP), no meio da confusão geral – para mim - que se criou na altura e resta-me acreditar no que CAA afirma com conhecimento pessoal dos assuntos. Nesta altura havia em mim uma espécie de repulsa por tudo isto, talvez por me sentir, quiçá erradamente, fora do sistema, pelo menos em parte: era estudante e músico de jazz. Estas movimentações, que algumas pessoas me tentaram explicar, deixavam-me ainda mais perplexo e confuso do que outra coisa. Dessa fase Carlos Araújo Alves sabe melhor do que eu o que se passou.  Sem dúvida.
Há dois pontos que quero esclarecer no entanto. Referir este processo da criação das ESM foi importante no meu texto para colocar alguns dos problemas, verificados posteriormente, em contexto. O contexto foi este, foi errado e cheio de problemas, injustiças, etc., sobre os quais pairam talvez agendas pessoais mas que me interessou abordar como exemplo de um desrespeito mais geral: os notáveis em questão partiam de dois princípios: primeiro de que os conservatórios não eram bons, não tinham nível e que “eles” iam reformar o ensino; em segundo lugar, que seria fundamental passar o novo ensino para o patamar universitário, embora politécnico. O artista não como agente de um saber especializado, mas como agente de uma prática profissional: tocar música.
Esta separação das duas formas de saber – como todos sabemos no tempo de Salazar havia as escolas comerciais e as industriais e os liceus – reaparece agora em discussão pública a propósito do ensino profissional. Os netos não deixaram de pensar nas ideias do avô. Adiante face ao retrocesso. Mas esta opção foi nociva.
2.
A questão central que quis colocar deriva parcialmente desta opção então tomada. É aqui que entra a questão das licenciaturas, depois mestrados, depois doutoramentos, etc.. Numa fase mais tardia em relação à fase da criação das ESM.
Estando integrados nos Politécnicos as ESM tiveram, durante anos, como grau máximo o bacharelato, opção inicial amplamente censurável. O aparecimento errático e, sobretudo, desintegrado de uma visão global, de mais duas Universidades – Aveiro e mais tarde Évora – provocou uma situação paradoxal. As ESM – supostamente o topo do ensino da música a nível superior, nas intenções proclamadas dos seus criadores – atribuíam o grau de bacharelato, enquanto as novas e entretanto surgidas Universidades, com um vocação inicial próxima da preparação para o ensino, que depois se foi alterando e alargando progressivamente, atribuíam desde o começo, o grau de licenciatura. Aqui foi lançada a confusão definitiva, uma vez que a arquitetura institucional do ensino da música, já com os problemas iniciais referidos e muitas feridas abertas, pura e simplesmente, não foi pensada por ninguém. Foi acontecendo de acordo com iniciativas individuais a que reitores deram o seu aval , tudo isto sem que tivesse havido desde o início nenhuma preocupação de articular as várias instituições.
Começou então o processo das sucessivas reformas dos graus atribuídos pelas ESM primeiro com Estudos Avançados – para permitir licenciatura – e gradualmente, com o fim do período da instalação das ESM e uma situação estranha de grande diferença entre as duas: em Lisboa 6 professores no quadro; no Porto zero. E pelo meio, com a variação da legislação relativa aos mestrados e doutoramentos – que em última análise derivavam sobretudo do sistema de ensino dos países nos quais se estudou nas viagens de pós-graduação que sempre ocorreram desde os finais do século XIX – isso pude verificar na minha investigação – estava-se no meio de um sistema mal pensado, mal construído e pior posto em prática. Além disso, apesar do novo-riquismo universitário (ou outro) dos mentores iniciais deste processo, o facto é que as ESM tinham de contratar professores competentes e onde? Alguns nos Conservatórios – o tal sítio mal tratado e forçado a reverter o seu estatuto, alguns emigrantes regressados e nos melhores alunos que pouco a pouco iam formando. O grau de variação entre as diferentes habilitações e estatutos dos professores era enorme. Nunca houve qualquer ação legislativa nesta matéria que não fosse a reboque de um novo problema surgido pelas más práticas seguidas anteriormente.  Daqui decorreram muitos dos problemas que referi no texto anterior. Atualmente a situação não é de molde a grandes optimismos face às novas diretivas do Ministério que acentuam a sua ideologia pró-sistema anglo-saxónico, agravado pelo acordo de Bolonha (que tem aspectos positivos e negativos) mas que, deve dizer-se, não foi seguido de modo cego, como aqui, em países como a Áustria e a Alemanha onde, como é sabido, o ensino da música “é muito mau”. Só a ironia nos pode salvar perante a subserviência política geral que tem aqui um exemplo esplendoroso.
Não quero no entanto tecer nenhuma consideração sobre a competência ou favoritismo ou injustiça de que foi vítima este ou aquele professor. Porque esse tipo de considerações personalizadas, mesmo que porventura justas, são meio caminho andado para nos afastarmos do centro do problema – um sistema confuso, mal pensado e cheio de disfunções – e serviria, ao mesmo tempo, para entrarmos na zona nebulosa da opinião tal ou do seu contrário que, neste caso, seguramente desfavorece a visão global. Digo isto porque me parece saudável evitar aquilo que é impossível atingir: consenso total nessas matérias. Melhor será reservar energia para os modos estruturais que levam à disfunção. 

Postscriptum à maneira de uma conclusão:

Dado que passaram mais de 30 anos desde o início deste processo julgo que se deve relembrar os numerosos erros cometidos, analisar as disfunções ainda operativas com o objectivo principal de evitar mais erros e corrigir o mais possível os que ainda subsistem. Não deixar de relembrar mas orientar a reflexão para o futuro. Uma vez que penso que o mundo musical está dividido em várias tribos que se vêem a si próprias como sólidas e fechadas, que a situação política não é de molde a nenhum tipo de optimismo, não tenho grandes ilusões sobre "um futuro radioso". Mas se, pelo menos, se privilegiar a transparência, o exercício das funções com o que resta da noção de serviço público e de bem comum, esta reflexão bipartida terá servido para alguma coisa



  

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Contado ninguém acredita (excepto aqueles que passaram por isso)

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Contado ninguém acredita (excepto aqueles que passaram por isso): um relato pessoal e uma análise das disfunções da legislação e dos conflitos práticos verificados no ensino da música de 1983 até hoje, de alguns passos dados, mas ainda de outros necessários para as corrigir.

          Há aspectos da vida universitária no sentido lato ou da educação em geral em Portugal que atingem grande notoriedade pública, que chamam a atenção das pessoas, dos jornais, e que podem mesmo levar a forte contestação nas ruas ou a revoltas justas. É compreensível que assim seja dada a enorme importância da educação na qualificação e requalificação das sociedades. Mas há outras áreas que, inseridas nos seus pequenos nichos de existência, passam sempre despercebidas no espaço público ou estão mesmo ausentes e, como tal, nunca “existiram”, na verdade, excepto nos momentos de uma eventual greve iminente. Por isso é necessário contá-los, descrever casos concretos e analisá-los: o caso do ensino da música do nível superior é uma dessas áreas.

O ensino da música sofreu uma transformação a partir de 1983-4, com a criação das Escolas Superiores de Música em Lisboa e Porto e a sua integração nas Institutos Politécnicos. Esta reforma foi criada durante a tutela do Ministro da Educação Roberto Carneiro, durante um dos governos de Cavaco Silva.

O primeiro erro foi integrar as Escolas recém-criadas nos Institutos Politécnicos o que não deixa, por si só, de ter representado uma determinada visão da música e das artes. Daí derivaram uma série de problemas relativos às habilitações dos recém-formados e a uma sucessão de nova legislação, novos despachos, novas correções das legislações e das disfunções anteriores, durante mais de duas décadas. Não é aqui que poderei abordar toda esta problemática em questão. Quero apenas referir que a transição se deu entre dois modelos históricos: o ensino da música do modelo conservatorial – de origem francesa, pouco depois da Revolução Francesa e que durou quase dois séculos – e a adopção do modelo anglo-saxónico integrado nas Universidades que, a partir sobretudo dos anos 1980, adquiriu gradual primazia no continente europeu. 

Esta transição não foi fácil uma vez que os velhos Conservatórios existentes estiveram sempre, em todos os países, separados do sistema universitário e, como tal, seria necessário, considerar sobretudo dois problemas: primeiro, o novo estatuto secundário que passaram a ter e segundo, a forma como o estatuto dos professores com muitos anos de serviço, seria considerado face ao novo sistema. A solução foi risível: o problema não foi sequer considerado. O segundo aspecto prendia-se com a necessária contratação dos professores para as novas escolas. Tendo sido escolhidas para as Comissões Instaladoras das Escolas Superiores de Música (ESM) pessoas de reconhecido mérito no campo musical ou do ensino musical, mas cautelosamente escolhidas dentre os que tinham feito cursos universitários, fosse de que tipo fosse,  gradualmente – num processo longo - foi-se reclamando a sua progressiva integração no sistema universitário, com os seus graus, licenciatura, mestrado e doutoramento – que foram sendo incentivados ao longo dos anos, sem que tivesse sido encarado atempadamente o estatuto dos antigos professores ou alunos formados pelos Conservatórios, sem qualquer estatuto aplicável similar aos do sistema universitário, como aliás em todos os países do mundo, com exceção dos anglo-saxónicos, como já referido.    

Dos erros cometidos nesta transição resultaram muitos erros, muitas injustiças, muitos oportunismos e mostrou-se muita falta de competência por parte de quem detinha a possibilidade de legislar ou decidir sobre a matéria. Os antigos conservatórios passaram a destinar-se ao ensino secundário, mas mais do que isso, de repente, começaram a ser pedidos aos antigos alunos formados nos Conservatórios, com provas dadas, alguns já em pleno trabalho profissional de qualidade em orquestras, em escolas e em carreiras mesmo solísticas, aquilo que eles não podiam dar: os seus certificados de habilitações universitárias. Esta questão, que afectou muitas pessoas, não me afectou pessoalmente uma vez que tinha completado o curso de História na Faculdade de Letras da U. Do Porto e um membro da C.I. da ESML confessou-me, com perplexidade, que devia ter sido escolhido, não por ser o músico que, era mas por ter também o curso de Engenharia.  Este aspecto mostra que a desconfiança estava presente desde início em relação à atividade artística como sendo uma atividade “menor” face aos altos cursos universitários tradicionais.  

Como referi atrás, para tratar de uma vez a questão dos dois mundos do ensino, até então separados durante quase 200 anos, teria sido muito mais fácil, desde logo, com pragamatismo, atribuir uma determinada equivalência aos professores formados nos Conservatórios, a exemplo do que sucedeu noutros países europeus que passaram pelo mesmo processo. Mas, em Portugal, as ESM começaram a funcionar com poucos professores e as suas comissões instaladoras nomeadas pelo governo, ou pelos Institutos, optaram por recrutar novos professores dentre os antigos e alguns novos, mas sempre caso a caso. De todos os erros de base deste mau começo, decorreram as múltiplas disfunções que demoraram mais 20 anos a começarem a corrigir-se. 
Darei alguns exemplos concretos de alguns casos absurdos, todos do meu conhecimento pessoal, sem mais interpretações ou análise. Por vezes, os factos são mais eloquentes do que quaisquer análises. No incício deste processo

1.   No incício deste processo, alguns músicos já em plena atividade profissional nas orquestras, Gulbenkian, Sinfónica Portuguesa e Orquestra do Porto, foram obrigados a inscreverem-se nas ESM para poderem ter habilitação adequada. A maior parte deles depois integrou e muitos integram ainda o corpo docente.
2.       Em certos casos, mais difíceis de tratar deste ponto de vista, cego e burocrático no qual a própria prática profissional era totalmente descartada e apenas o diploma em questão ou era considerado, verificou-se que em numerosos casos e durante mais de uma década muitos professores se depararam com a seguinte realidade: no momento do exame final, os alunos que tinham tido, passavam imediatamente a ter uma habilitação superior à do professor que tinham acabado de ter!
3.  Noutros casos professores considerados aptos para ensinar na escolas, foram considerados inaptos para prosseguirem os seus estudos no patamar seguinte, entretanto criado na própria escola, coisa que não se verificava com os seus próprios alunos. A mesma escola que considerava um professor competente para lecionar, não o considerava habilitado ou competente para se inscrever a par com os alunos que ele próprio tinha tido. Não conheço maior absurdo. Mas aconteceu com vários.
4.   Face a estas disfunções e à rigidez que se instalou face a estas questões alguns professores inscreveram-se nos Cursos da Universidade Nova – destinado à musicologia história – e assim poderem apresentar o diploma de licenciatura. O facto de o âmbito de estudos não ser equivalente de modo nenhum não reduziu a absurda prática que teimou em nunca considerar a habilitação artística propriamente dita como relevante. Apenas há poucos anos se instituiu “o estatuto de especialista” para obviar aos casos mais flagrantes.
5.    Nesta situação, muitos professores optaram por se inscrever na própria escola onde eram professores, noutros cursos paralelos, de modo a evitar possíveis consequências negativas para a sua carreira docente, muitas vezes ao fim de dez ou quinze anos de serviço.
6.      Verificaram-se alguns casos em que movidos pelas mesmas motivações e empurrados pela hipocrisia legalista de tipo novo-riquismo universitário, alguns professores se inscreveram com alunos de si próprios e assim obtiveram os diplomas que a burocracia lhes recusava de outro modo. Não foram poucos estes casos. Kafka não seria capaz de imaginar melhor. E no entanto...
7.       Ao contrário do que possa parecer, não me parece que esta prática tenha sido censurável do ponto de vista individual. Face à rigidez referida, à atitude temerosa das instituições vítimas do complexo neo-universitário, que, aliás, atinge em geral os próprios politécnicos e das disfunções na articulação mal pensada e pior implementada entre as diversas instituições do ensino superior musical, que levava muitos formados nas novas universidades, com valências determinadas mas seguramente não comparáveis em termos de formação com as dos alunos das ESM, mas, pelo contrário e inversamente, possuiam habilitação académica superior face à diferença de base então em vigor entre o ensino Universitário e o Ensino Politécnico. É necessário afirmar que as principais vítimas destes erros foram numerosos músicos e professores que, durante décadas, se viram na necessidade de interromper as suas carreiras profissionais ou de  lidar com a rigidez burocrática e os critérios de dois pesos e duas medidas já exemplificados, que imperava ou ainda impera como lei.
8.      Por isso, compreende-se que, perante uma tal quadro, até a situação aparentemente mais absurda – "ser aluno de si próprio" – que, à partida parece moral e eticamente insustentável, foi no entanto admissível, quando, do outro lado, do lado das direções, das tutelas e dos sucessivos ministérios não houve nunca uma ação decidida nestas disfunções. Tudo aparentemente para evitar aquilo que parecia o mais assustador ou ameaçador aos olhos dos decisores: considerar que ser competente como músico e professor de música – de facto, essa competência sendo reconhecida pela instituição uma vez que se tratavam de professores ao serviço das escolas, nalguns casos há mais de uma década – deveria naturalmente poder confirmar-se através de uma equivalência determinada no momento adequado para atribuir uma habilitação académica, o que nunca se verificou nas leis, senão após vários anos de instabilidade. Verificou-se que um combate surdo pela superior legitimidade dos diferentes saberes – em suma, teóricos ou práticos – se manifestava com persistência, ao ponto de os únicos detentores da possibilidade de atribuir equivalências – longos anos apenas o Curso de Ciências Musicais da Universidade Nova - nunca conseguiu vencer os seus aparentes e reais "complexos de superioridade" académica face àquilo que designavam pejorativamente, nos piores mas significativos casos, como músicos “práticos”. Um doutor era sempre um “doutor”. Este aspecto de “distinção”, certamente próprio da sociedade portuguesa a começar pelo tratamento das pessoas licenciadas no quotidiano, se comparado com outros países, nos quais doutores são apenas os médicos, como a Alemanha, a Holanda ou a Inglaterra e outros, teve aqui uma manifestação esplendorosa desta caracteristica atávica e medíocre e de uma falta de visão de futuro que nos marca o ser colectivo. 
  9.    Ao longo destas duas décadas verificou-se uma permamente turbulência na legislação relativa às bolsas de doutoramento por parte do Ministério da Ciência e Tecnologia. Tendo regras diferentes das universidades, impedidos de aplicar a regra da "licença sem vencimento", nem "o ano sabático", os Politécnicos foram alternando, de acordo com as mudanças da legislação da FCT, entre a impossibilidade e a possibilidade face a esta questão. Aqueles a quem aconselhava fortemente a fazerem os seus doutoramentos, em certos anos, puderam manter o seu vínculo, mas noutros anos, pura e simplesmente, foram obrigados a abandonar as escolas. Neste casos funcionou internamente o "acordo de cavalheiros" informal, geralmente cumprido inter pares, mas alguns dos novos doutorados, uma vez reintegrados, viram, nalguns casos, o seu vencimento diminuído por erros burocráticos de processamento, a sua situação nas escolas oscilante, e ainda o seu novo estatuto tardiamente reconhecido, de acordo com as crises financeiras dos Institutos. As recentes reclamações em curso dos bolseiros da FCT traduzem a continuação da cegueira legislativa e, sem dúvida, uma desconsideração da actividade científica . 
10.  Alguns deste agentes dos cursos universitários que se apressam agora a tentar estabelecer protocolos com as ESM, quer do Porto quer de Lisboa, perante o inegável sucesso de que estas escolas sempre deram mostras durante anos, ficaram, nessa fase de transição, como que paralisados e num estado de auto-encantamento face ao seu próprio estatuto académico universitário e sempre resistiram a considerar os músicos formados nos politécnicos no mesmo patamar sequer. Esse estatuto académico é, em si mesmo, totalmente legítimo, como é evidente, mas, ao mesmo tempo, é específico e não contém nenhuma superioridade face a outras valências e competências. Esta pequena guerra entre instituições, entre ideias feitas sobre saber teórico e saber prático - uma querela epistemológica - provocou danos concretos em muitas pessoas. Mas, por exemplo, no momento da “verdade”, de uma verdade particular, neste caso, um concerto, o momento em que era necessário contratar um músico ou um cantor para fazer um concerto, certamente que os critérios que prevaleceram sempre foram os da competência especificamente musical, as suas qualidades reais enquanto músicos e não ocorreria a ninguém, responsável cultural ou agente da vida musical nestas circunstâncias, perguntar a determinado pianista considerado, cantor com carreira sólida, compositor de créditos firmados, etc., qual seria o seu estatuto académico.  O lugar da importância desse título é outro e, nesses momentos, a querela epistemológica era suspendida pela força do real.

Conclusão

Esta não consideração das diferenças entre os saberes, esta vassalagem ao saber universitário, visto como superior e interpretado no seu sentido mais restrito, “o diploma académico”, esta resistência à consideração da interpretação ou da criação, como factor de apresentar, uma outra forma de saber, na próprio acto da performance outra forma de conhecimento, eventualmente mais rico, foram factores manifestos de tribalização autista inter-instituições e de novo-riquismo universitário que afectou um número considerável de pessoas, durante largos anos. Neste momento, em que proliferam cursos de Estudos Artísticos nas Faculdades, Cursos de instrumentos, composição e jazz nas Universidades, esta questão está, finalmente, a começar a ser esbatida. É de lamentar que tenha demorado tanto tempo um acerto, uma aceitação da especificidade e da complementaridade dos vários saberes não só possíveis, como realmente existentes, na diversidade de mundos da vida que é própria do diversidade do real. É nos pequenos mundos fechados que se verifica a construção de castelos e de feudos de duração curta e também aqui se manifesta uma característica geral da sociedade portuguesa. Além disso, a troca entre os diversos saberes só pode ser enriquecedora, ao contrário do pareceram pensar em tempos aqueles que colocaram o saber teórico em concorrência com o saber prático. Estes saberes, se considerados corretamente no seu lugar e na sua função, podem e devem interagir. Se forem vistos como concorrenciais tornam-se lugares de lutas e combates por uma primazia sem sentido.    

António Pinho Vargas 

Postscriptum:
1. Os antigos Conservatórios de Música que, como referi foram criados pelo Directório da Revolução Francesa, foram durante os dois séculos seguintes as instituições onde estudava e se formava quem queria estudar música. Não havia outras. Não ter tido este aspecto em conta no momento inicial da reforma foi um erro tremendo. Se não havia outras onde poderiam os músicos estudar? Deviam ter todos emigrado para os EUA ou a Inglaterra onde já existia ensino integrado nas Universidades há mais tempo? Não se tratava por isso de não fazer nenhuma reforma do ensino da música. Ela era necessária. Tratava-se de a fazer tendo em conta aquilo que existia anteriormente na maior parte dos outros países do mundo.
2. Suspeito que alguns passos dados mais recentemente na legislação em Portugal poderão ter derivado, directa ou indirectmanete, da emergência, sobretudo no Reino Unido, por volta de meados dos anos 1990, de uma área de estudos musicais chamada Performace Studies. Como o nome indica, esta área dirigiu-se justamente para o núcleo daquilo que foi fundamental nas disfunções teoria-prática que ocorreram em Portugal desde o aparecimento das escolas superiores. Esta disciplina tem no seu cerne a ideia que a "performance" musical representa em si mesmo, uma forma importante de saber, concomitante com e complementar da  a teoria, da análise musical, da composição, e nesse sentido, acabou por trazer de volta para a academia justamente aqueles contra os quais era dirigida a desconfiança dos "universitários": os músicos. Dada a tendência que preside a todo o tipo de reformas em Portugal - repetir ou adaptar reformas provenientes dos países centrais do sistema-mundo - não se pode deixar de considerar que este terá sido um factor que desestabilizou as convições arreigadas do inútil confronto entre a teoria e a prática, que até então constituiam a base da maior parte das disfunções referidas.      
3. 
-->O secretismo em que se trabalha e administra nestas instituições – e que permitiu muitas das disfunções relatadas – é uma espécie de “adquirido” que deve ser contestado. Atualmente reclama-se “transparência” em todas as esferas do espaço público e na atividade governativa do país. Não há nenhuma razão para que, nestas pequenas instituições, prevaleça aquilo que mais parece um resquício dos antigos hábitos salazarentos das decisões autocráticas e antidemocráticas, tomadas no segredo dos gabinetes, do que o simples e debate de posições diversas no interior dos órgãos próprios das escolas, que, esse sim, deve ser aberto, não ter tabus, nem confundido com uma mera conflitualidade entre indivíduos. É nesses órgãos o lugar para reclamar uma nova atitude, mais consentânea com o carácter institucional que é o seu, e não com uma espécie de concepção – igualmente muito espalhada na sociedade portuguesa – de exercício da função pública como se fosse uma conquista pessoal de estatuto e de poder. Certamente que há “estatutos” diversos nestas instituições e o poder executivo e decisório deve ser exercido nesses órgãos, sem dúvida, e não nos corredores das escolas e das universidades. Mas “o medo do debate”, o “medo do confronto entre ideias diferentes”, “o medo da divergência”, seja qual for o assunto, remete para hábitos autoritários enraizados há longo tempo que urge alterar, modificar, melhorar.