sábado, 29 de março de 2014

Dispersos Março 2013

DISPERSOS / MARÇO 2013

1.
Sobre a notícia "Quanto a música clássica não está do lado do bem?

Esta notícia já foi publicada há alguns dias. Tem algum interesse. Mas o seu título e algum do seu conteúdo merece as seguintes perguntas: Quem decide qual é o lado do bem? Qual é o Grande Júri que estabelece uma tal sentença? Quem é que pensou alguma vez que a música clássica, no seu todo e pela sua própria natureza, estava 'sempre' do lado do bem? A resposta só pode ser uma: quem assume que o lado do bem está decidido e é inquestionável, portanto, quem não sabe nada de história em geral nem da história da música ocidental em particular. O pressuposto inicial - bastante difundido, aliás - está errado, por estar profundamente ligado à ideologia 'carismática' da arte. Quem o disse com clareza foi o grande musicólogo Richard Taruskin, ele próprio, insuspeito: é "músico clássico". Nesse sentido o artigo vai ao encontro de mitos e toma partido político claro face a questões politicas actuais que devem suscitar reflexão e não aprioris discutíveis. Mas a fotografia de Dudamel em Caracas é muito boa.

2.

Existe a ideia feita de que a música "moderna" não é tocada porque não é tonal. O facto de Sonata de Stravinsky - peça do chamado período neo-clássico do compositor que, neste caso, melhor seria designar por neo-barroco - ser, ao mesmo tempo, tonal e moderna, coloca a questão de saber se a ideia feita é ou não verdadeira. Julgo que a exclusão relativamente inegável destas peças em geral - quem toca a Sonata de Stravinsky? Quem a inclui nas suas programações? Que pianistas a estudam e incluem no seu reertório? - não deriva "apenas" do facto de serem tonais ou não-tonais, mas sim do facto do cânone contruído durante o século XIX estar de certo modo "encerrado", constituído em torno de uma série de obras na maior parte dos casos muito boas - tal como outras, igualmente muito boas, estão excluídas do grupo das "chosen ones" - e esse processo histórico particular aguardar ainda a sua substituição por um outro que não sabemos como será constituído e criado no século XXI. Até agora nenhum século foi alguma vez a mera reprodução do anterior em nenhum aspecto. Alguma coisa irá acontecer de modo diverso.
Não sabemos nem como nem quando. Os cânones resistem, é certo. mas transformam-se.

3. Confissões: Sobre o glocal
1. Depois da boa experiência do Atelier da Orquestra Clássica do Sul em Faro, cresceu a minha convicção de que nos tempos mais recentes e com a excepção de meia dúzia de nomes, em especial os americanos John Adams e Steve Reich, a condição dos compositores do mundo é de certo modo Glocal, uma estatuto misto e complexo que associa o global e o local. Assim pude ouvir peças de compositores japoneses que poderiam ser de compositores alemães, peças de brasileiros que podiam ser de americanos, peças de portugueses que podiam ser de franceses, peças de franceses que podiam ser de ingleses (esta última constatação mostra que na França há uma zona visível - que conhecemos mais ou menos embora não sejam propriamente muito tocados noutros países excepto nos festivais de "musique contemporaine" - há umas dezenas na Europa - e nos associados do Reseau Varèse, onde vigora a filosofia da história da modernidade musical do pós-guerra, e outro grupo de compositores franceses que são tornados invisíveis pela máquina desse poder interno particular). Esta condição glocal traduz-se num enorme cruzamento de adquiridos culturais quer globais quer locais e resultados artísticos por vezes notáveis na sua hibridez patente.

2. Há milhões de compositores no mundo. Há milhares que são bons compositores. Posso talvez assumir como verdadeiro que serei uns dos melhores cem mil compositores do mundo. É claro que esta última frase, no seu total absurdo, contém uma crítica implícita à obsessão maníaca dos media e de parte das elites culturais portuguesas, em relação a esse estatuto mítico e mirífico. Há milhões de "melhores do mundo" de acordo com aquilo que se vai lendo e publicando todas as áreas. Na verdade esta questão não tem a menor importância, a não ser como espelho de estupidez. Na arte não há consensos. tal como na politica. Há disputas entre orientações estéticas, pressupostos técnicos, meios priveligiados (acústicos, electrónicos, computer-music, pop-rock, jazz, uma lista infinita que inclui músicas provenientes das culturas extra-europeias, antes tornadas inexistentes no período colonial, mas agora presentes primeiro pela via da emigração de milhões de pessoas para as metrópoles do Norte Global, e em segundo lugar por outros meios ligados à net e à circulação de informação em tempo real. O antigo Outro tornou-se presente nas ruas da Europa e trouxe consigo a sua cultura, a sua música, a sua religião, etc.

3. Fazendo juz à sua antiga condição de potencias coloniais os países europeus assistem ao reaparecimento do racismo de forma totalmente explícita e não apenas na política, na qual é efectivamente muito preocupante. É também evidente que os europeus e os ocidentais não possuem o exclusivo do racismo, muito longe disso. Se a esquerda do ocidente persistir na autoflagelação, na culpa colectiva, que deriva da consciência que tem dos efeitos horriveis do colonialismo, sem adaptar essa consciência - lúcida e verdadeira - aos novos problemas, deixa campo aberto por onde se infiltra o crescente racismo das direitas de Le Pen e neo-nazis por todo o lado. É uma tarefa de uma enorme dificuldade, na qual parece só haver duas posições possíveis. Ao colocar este problema da diversidade do mundo como "nós" ou "eles" a formuçaão do problema de forma identitária muito perigosa a tentação da dicotomia acabará por prevalecer. Como manter com firmeza a posição de defesa dos comuns, dos humanos, seja qual for a sua cor de pele, ou outra coisa qualquer e agir de modo a que o combate ao discurso xenófobo não se traduza por uma parcial cegueira que abre caminho ao racismo? Confesso não saber que posição terá de ser seguida nesta matéria tão importante. Mas enfim sem nenhum complexo de qualquer sabedoria superior que não tenho, julgo que nos cabe a todos pensar para além dos esteriótipos recebidos, quer os colonais quer os pós-coloniais. No seu artigo da semana passada António PInto RIbeiro mostrou-nos como a atitude paternal face ao Outro não europeu, não branco, não cristão, etc., é muito perigosa como manifestação benévola de um racismo latente e já existe entre nós de vários modos. O conceito de glocal, inicialmente aplicado para a política de empresas globais - em grande parte americanas - no sentido de se adaptarem aos diversos lugares onde se estabeciam pode ser ampliado. Não há nada, nenhuma arte, nenhuma música, nenhum filme que não seja originariamente sempre local: é feito num determinado lugar do mundo. O lugar do mundo chamado Hollywood, é igual a muitos outros. Tem no entanto associado à sua produção de objectos artísticos um enorme dispositivo de circulação global. Uma das acepções mais comuns da globalização é que foi um processo que começou por ser circulação do capital à escla planetária seguida da "americanização" do mundo; depois da circulação do capital segui-se uma pujante invasão de produtos da industria cultural provenientes dos Estados Unidos (filmes, música, séries de televição, jogos de computador, etc.) trazendo consigo toda uma visao do mundo, toda uma cultura no sentido lato. Não apenas o resultado não foi o esperado pelos estrategas do capital global como, para dar apenas um exemplo, neste momento, a China, a India e o Brasil são os três países onde se concluem mais teses de doutoramento no mundo. Surpresa para o eurocêntricos? Sem dúvida. É por estas e muitras outras razões que a questão é de uma enormíssima complexidade, que a agenda da direita tem tido o comando, e, regressando ao início, que as transformações da criação musical no mundo de hoje são uma mostra clara da circulação do conhecimento, da circulação das artes e da mistura híbrida do global e do local que a todo o momento se manifesta.
Talvez o conceito de "glocal" possa ser transformado e enriquecido para além do seu sentido inicial.

4. É por isso igualmente que a defesa que tenho feito da música dos compositores portugueses - mais exactamente a determinação dos processos que comandam a sua ausência neste contexto - é simplesmente idêntica ao direito à palavra: "Can the subaltern speak?" perguntava Gayatri Spivak, o que pode ser dito talvez de outro modo: "Quem pode falar pelo subalterno senão ele próprio?" - subalternos, diga-se, entre os quais estão povos e culturas europeias das periferias. Esta posição distingue-se radicalmente de qualquer expressão "nacionalista" ou "essencialista" de tipo antigo e, por isso, esta diferença nem sempre é bem compreendida.
Só é local quem for, ao mesmo tempo, global, quem tiver "mundo" suficiente dentro de si; mas o contrário não é verdadeiro porque, pelo meio, há dispositivos de poder semi-visíveis ou semi-invisíveis que operam no âmbito da circulação das obras não apenas externamente como, com evidência, no interior do próprio país, no interior dos próprios países, de acordo com a distribuição das hegemonias, no entanto, sempre instáveis e de duração limitada no espaço e no tempo.

António Pinho Vargas

sexta-feira, 21 de março de 2014

Artigo/crítica de Augusto M. Seabra sobre o CD "Drumming plays António PInho Vargas", JACC Records.


POLÍTICAS DE AMIZADE E MÚSICA

O espantoso conjunto de obras para percussão neste novo disco patenteia “políticas da amizade”, no caso entre António Pinho Vargas enquanto compositor e esse extraordinário grupo que é o Drumming. Mas há também outras “políticas da música” que não podem ficar omissas.

Acaba de ser publicado um disco de obras para percussão de António Pinho Vargas, interpretadas pelo Drumming, e sob o título genérico de Step by Step. É admirável e há que atender a ele com diversos ângulos de reflexão.

Em primeiro lugar muito se fez esperar este disco, não só pelo longo processo de gestação em si, gravação (em datas aliás omitidas), montagem e publicação, como porque desde a estreia de Estudos e Interlúdios para grupo de percussão, em 2000, era patente ser essa uma das obras maiores do autor – e digo isto, reafirmando uma declaração de princípios críticos, a saber, que mesmo nos casos de criadores como Pinho Vargas e outros, músicos, cineastas, etc., cujo percurso me importa particularmente e com os quais venho tendo ao longo dos anos um “diálogo” artístico, as “políticas (estéticas) da amizade”, tal não me faz deixar de considerar e exprimir que há obras de que gosto, por vezes mesmo muito, como outras menos, ou até me suscitam reservas e decepções.

Estudos e Interlúdios (cinco estudos e três interlúdios) tem um título que alude a uma tradição sobretudo pianísticas de “estudos”, mas é também uma referência às extraordinárias Sonatas e Interlúdios de John Cage. Mas o conjunto das obras incluídas no disco tem sempre princípios de alusão, paráfrase e citação/desvio/ re-criação.

Assim, o título genérico do cd remete para outra obra, Steps by Steps: Wolfs! (2004), que foi parte de um programa de encomendas do Drumming a diversos compositores portugueses, com peças retomando canções tradicionais e temas de rock, no caso Born To Be Wild (1969) dos Steppenwolf, integrando a banda sonora de um céelebérrimo filme, Easy Rider (na peça de Pinho Vargas ouve-se aliás o barulho das motas icónicas do filme).

Quanto às duas peças mais recentes, Políticas da Amizade (2011), um estudo para vibrafones solo, retoma mesmo o título de um fundamental ensaio do filósofo Jacques Derrida, que é aliás uma importante reflexão política em termos mais genéricos, e em Árias de Ópera para Tuba e Percussão (2011 também) há paráfrase/desvio pois que não é suposto “árias de ópera” se destinarem a “tuba e percussão”.

Como é sabido, Pinho Vargas tem duas distintas facetas, como músico de jazz e compositor contemporâneo, que não se confundem. Contudo não deixa de haver uma questão comum, a da pulsação – ou, noutros termos, do “beat” - que este conjunto de obras até evidencia, havendo mesmo um Estudo de Pulsação e Métrica. Essa é desde logo uma questão de ritmo, e também de agógica.

Estudos e Interlúdios em particular é uma obra de imensa invenção, em termos de complexidades rítmicas e de tempos, bem como de timbres, de uma diversidade assinalável, com consequências harmónicas também.
De modo tanto mais curioso porque raro no autor, o acorde inicial da obra é quase “bouleziano”, no sentido que logo conter em germe quase todos os materiais, sobretudo intervalares e timbrícos, desse primeiro Estudo Coral – e esse é uma saliente característica do compositor francês -, que por sua vez de algum modo “anuncia” e potencialmente enuncia , qual “abertura” como nas óperas, o conjunto da obra, que aliás, em espelho, tem um Estudo Coral Final.
E embora a estrutura da obra seja muito distinta dos princípios composicionais de Steve Reich, é evidente a proximidade com o célebre Drumming daquele, obra em que aliás o grupo dirigido por Miquel Bernat colheu o seu nome – e já agora, se a memória sonora não me atraiçoa, Estúdios e Interlúdios é a obra de Pinho Vargas que mais se aproxima de um muito “reichiano” concerto seu, com ensemble, no Jazz em Agosto, em meados dos anos 80.
Mas quando se aponta a questão comum às duas distintas facetas do músico, a da pulsação, forçoso é também considerar uma mais difusa noção de “energia”, de especial relevo no jazz e no rock – e Step by Step: Wolfs! é uma obra de uma energia estonteante. E quando se destaca a importância das combinações tímbricas, essas são evidentes numa obra instrumentalmente tão singular como Árias de Óperas para Tuba e Percussão - com Sérgio Carolino, é claro, no sopro.

O espantoso conjunto de obras para percussão neste novo disco patenteia também “políticas da amizade”, no caso entre António Pinho Vargas enquanto compositor e esse extraordinário grupo que é o Drumming – ainda mais neste caso maravilhosos intérpretes, que não só são um dos mais relevantes agrupamentos musicais em Portugal (e, além do mais, com um trabalho também formativo notável), como mesmo um dos mais notáveis agrupamentos internacionais de percussão. Mas há outras “políticas da música” que infelizmente não podem ficar omissas.

Tanto mais tendo o disco este nível de excelência, só é sumamente de lamentar que o investimento de todos, autor, intérpretes e a própria editora, a JACC Records, do Jazz ao Centro (que, com base em Coimbra, até vem desenvolvendo um assinalável labor nesse campo), não tenha correspondência na distribuição, na percepção do que são os diferenciados públicos – e Pinho Vargas tem os seus públicos próprios, mas não homólogos, nas duas vertentes do seu trabalho criativo.
É incompreensível que este disco apenas tenho sido distribuído em lojas de jazz, quando o público do Pinho Vargas compositor procurará este disco noutros espaços, para afinal suceder as pessoas perguntarem pelo objecto e na Fnac responderem que não têm nem foram contactados nesse sentido!

É mais que urgente reparar este grave equívoco, além do mais até em termos editoriais do que é o “potencial” de um “produto” – mas infelizmente, mesmo com um autor e intérpretes desta craveira, as “políticas da música” e da sua difusão, que já são de si complexas no panorama actual, estão em Portugal ainda mais sujeitas a equívocos tão incompreensíveis como este.

Augusto M. Seabra, Ípsilon do jornal Público, 24-3-2014, p. 38.