segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Testamento / Testemunho artístico

Testamento / Testemunho artístico

La belleza no es privilegio de unos cuantos nombres ilustres. 
Sería muy raro que este libro, que abarca unas cuarenta composiciones, 
no atesorara una sola línea secreta, digna de acompañarte hasta el fin.
Jorge Luis Borges, Prólogo a Los Conjurados. 1985


Digamos a verdade, a minha verdade. Divido as peças que compus em 3 grupos: as que considero boas peças, as que considero razoáveis, que me permitiram aprender alguma coisa embora não me pareçam completamente conseguidas e, o terceiro, aquelas que tendo igualmente servido de uma forma ou de outra para a aprendizagem, não valem grande coisa do meu ponto de vista, para não dizer que não valem nada; por isso não farão parte do famoso catálogo dos compositores, do virtual catálogo deste que escreve. No passado anterior à primazia do conceito de obra, enquanto conceito regulador da vida musical, esse catálogo foi feito, na maioria dos casos, post-mortem. Antes de 1800, grosso modo, não havia catálogos, nem sequer - por definição - Opus. Daí surgirem os BWV, os K. os D. etc., iniciais dos autores dos catálogos. A partir de 1800, o número do Opus traduz a catalogação feita pelo próprio compositor, até ao seu novo desaparecimento dos títulos das obras, consumado de forma geral já no século XX. 


No primeiro grupo, aquele que me deu/dá mais razões para satisfação, incluem-se, por ordem cronológica inversa, Magnificat (2013), Requiem (2012), Onze Cartas (2010), Outro Fim (2008), Suite para violoncelo solo (2008), Six Portraits of Pain (2005), Judas (2002), Estudos e Interlúdios (2000), Acting-Out (1998), Os Dias Levantados (1998), Nove Canções de António Ramos Rosa (1995) Nocturno/Diurno (1994) e Monodia - quasi un requiem (1993). Ao todo 13 obras. Em tempo uma boa quantidade de horas.

No segundo grupo, preenchido por todas as restantes que não retirei, umas 30 obras, há um pequeno núcleo com as quais tenho um laço afectivo, apesar das suas insuficiências ou estranhezas, mas todas são dignas, sérias, respeitáveis enquanto obras de arte, do meu ponto vista. Desse núcleo citaria Les Octaves (2014), De Profundis (2014), Quatro Novos Fragmentos, versão para flauta (2010), Movimentos do Subsolo - Quarteto de Cordas nº 2 (2008), Quasi una Sonata (2010), Grafitti [just forms] (2006), Holderlinos (2001) Sete Canções de Albano Martins (2000), Édipo - tragédia de saber (1996), Três Quadros para Almada (1994) e Mirrors (1989) e algumas outras que não refiro, nem retiro. 

Do primeiro grupo poderei dizer que são obras extraordinárias? Tenho dúvidas. São boas peças mas não sei se a tal ponto, nem talvez faça sentido ser eu a dizê-lo. Alguns o disseram mas afinal sou português e é certo que ninguém o fará por mim com grande convicção. Se admitirem que são boas obras já será muito. Poderei dizer que têm paixão? Com toda a certeza, uma paixão incomensurável. Que são “intemporais” como gostam de as designar os melómanos ou os coleccionadores de obras de arte canónicas? De modo algum. Terão sempre a marca do seu tempo e, por isso, esse estatuto está-me vedado por natureza para todo o sempre (isto sim é intemporal e fixo). Basta-me olhar para os meus antecessores de todos os séculos para verificar que tal coisa não existe neste país, neste espaço/tempo cultural. Serão obras-primas? Tenho as mais sérias dúvidas ao ponto de me parecer que já digo muito ao dizer que são boas peças. Este nosso tempo ou tem obras-primas a mais ou não tem obras-primas, conforme as opiniões e as boas vontades. No meu caso foram simplesmente sempre feitas com paixão, empenho e o melhor que pude. Mas sei bem que também sempre dependeram de quem as fez ou fará, da sua excelência como intérpretes, de quem lhes deu o seu ser-música de cada vez que foram feitas: os músicos. Faz parte da natureza da música: é sempre um devir. Há no entanto algumas boas gravações de algumas destas peças e isso tem algum significado: captação de um momento feliz num objecto tecnológico. 



Quanto ao segundo grupo que referi, poderei dizer que foram feitas com paixão? Sem dúvida que sim. Se as suas insuficiências, limitações, estranhezas, obtusidades ou abstrusidades existem, e as detecto, elas são da minha responsabilidade. Mas - dado o seu carácter borderline - dependem absolutamente da qualidade da interpretação ainda mais do que as outras. Se forem muito bem tocadas (com paixão) podem elevar-se a um patamar superior por mérito de quem as faz, naquele dia, naquele concerto: os músicos. Tornam-se melhores, na aparência, por via dessa qualidade da execução, que se coloca em evidência de modo ainda mais notório. Não serão talvez tão boas como podem parecer se tocadas desse modo porque a sua fragilidade intrínseca emerge e expõe-se totalmente se a realização for medíocre, rotineira, limitada ou pouco empenhada, o que também acontece neste mundo musical que não tem muito tempo para a dedicação a elas em geral. Quando acontece uma má interpretação - por vezes acontece - o compositor fica devastado, desfeito e, mesmo que já tenha ouvido outras boas versões, a materialidade daquela última, destrutiva e bem presente na memória, coloca dúvidas sobre a própria qualidade da peça que se tomava como segura neste ou naquele patamar. Interroga-se, duvida, culpa-se por não ter conseguido fazer uma peça que fosse imune às más interpretações, às concepções erradas e, por vezes, dotadas de uma teimosia inacreditável ou simplesmente à falta de ensaios. É bizzaro que isso aconteça em relação a peças já bem conhecidas, que noutros concertos, foram de tal modo bem feitas que tudo parecia seguro, sólido, adquirido. Tudo se desfaz em pouco tempo. Mesmo a experiência de ter ouvido Sonatas maravilhosas de Mozart ou Beethoven mal tocadas não nos chega. Nesses casos é notório que o que está mal é a interpretação. O poder simbólico mais do que adquirido dos antigos génios, coloca-os acima da má interpretação, protegidos pelos numerosos discos que já ouvimos, pelos concertos bons a que assistimos. Não se passa o mesmo com as nossas próprias peças. Pelo contrário, nada está adquirido e tudo se desvanece na dúvida mais profunda. Mesmo sendo absurdo face às evidências, a fragilidade do compositor vivo, ali a ouvir, não passa incólume desse momento infeliz. Guarda-o consigo contra a sua própria vontade e, por mais que se esforçe, a memória das anteriores boas interpretações nunca é suficiente. Todo o seu ser fica afectado por largo tempo.  É pior ainda quando as obras têm alguns problemas intrínsecos que o próprio conhece.

São objectos frágeis, inseguros, mesmo tendo em alguns momentos, relâmpagos de luz, estas obras do segundo grupo. Há milhões de obras dessa categoria no mundo, que não obstante existem, em todas as épocas. No caso de obras que existem gravadas, e que em grande parte dos casos contaram com boas interpretações esse facto permite mostrar o que têm de melhor. Verifica-se com algumas deste grupo. As gravações que existem valorizam as obras. É suficiente para que existam nesse registo e possam existir em concertos se tal for do interesse de alguém. 
Da minha experiência musical do passado, sei bem que algumas das 100 jazz-songs que compus, se aguentavam, como que por milagre, por menos bem que as tocasse ou as tocássemos; outras, pelo contrário, dependiam da performance em maior escala: se tocássemos bem, pareciam boas, se tocássemos mal ou pior, vinham ao de cima os seus pontos mais fracos.  


Quanto às restantes que retiro, não voltarão a ser tocadas com a minha autorização e não se perde nada com isso. Estão assinaladas no meu site com a frase retirada/withdraw. Há milhões de compositores no mundo, muita gente dotada de criatividade e muitas outras boas peças. É razão suficiente para retirar as que não têm grande valor ou valor nenhum.  

Há algumas outras ainda por estrear. Aguardo-o com expectativa. Esse será - mesmo sendo apenas a primeira interpretação - o momento da verdade de cada uma, um primeiro momento de verdade. Por vezes vai além, por vezes fica àquem. Mas, como afirma W. Rihm, é uma pena para nós, afirma, mas o compositor, de forma geral, sabe logo se merecem voltar a existir ou não; se realizam um gesto artístico válido ou se tenderão a engrossar a lista das irrelevantes. Pode talvez enganar-se uma ou outra vez. Mas em geral não mente a si próprio, nem se engana muitas vezes.  

Convém por isso acrescentar que este é o meu ponto de vista. Não é um absoluto. É a opinião do autor, não mais do que isso. Haverá certamente outras opiniões que prefeririam que eu não tivesse existido e, consequentemente, que tudo fosse para o lixo. Lamento mas não posso não ter existido, não o farei nem sequer é possível fazê-lo. Existem gravações que lhes dão essa existência e persistência no arquivo cultural. Apesar de ser duro comigo próprio também não faço parte do grupo que, no fim da vida, quer destruir tudo, nem do grupo que vive em auto-encantamento perpétuo, de modo nenhum. Vejo o meu trabalho muito mais como um artesanato artístico do que como algo destinado à história onde ocupará talvez uma linha de acordo com o que fui lendo nos livros que tive de consultar para Música e Poder e nas suas inerentes visões do mundo.

Devo acrescentar ainda um parágrafo sobre a razão de ser deste testamento artístico. Para tornar talvez essa razão mais clara recorro ao conceito de Aristoteles de potência, de potencialidade na sua relação com o acto, com o agir. Heidegger e Agamben interessaram-se pelo aspecto que pretendo sublinhar. A noção de potência pode ser explicada como a potência de fazer, de passar ao acto, à acção. No entanto essa potencialidade inclui sempre no mesmo patamar de possibilidade a potencialidade de não-fazer. Assim o carpinteiro pode fazer uma cadeira. Mas do mesmo modo, a potência que lhe permite fazer - passar ao acto - permanece integra como potencialidade de não-fazer a cadeira. A potência de fazer é idêntica à potência de não, e assim permanece. A potência de ser trata-se portanto também da potência-de-não ser. Nesse sentido, diz Agamben, toda a potência é impotência, vista como privação e não como incapacidade. Escreve Aristóteles citado por Agamben: “A impotência é uma privação contrária à potência. Toda a potência é impotência do mesmo e em relação ao mesmo”. Na sua interpretação desta frase Agamben escreve que “impotência” não significa aqui ausência de toda a potência, mas a potência de não”. E prossegue: “Esta ambivalência é característica e específica de toda a potência humana, que na sua estrutura originária, se mantém em relação com a sua privação, é sempre - e em relação à mesma coisa - potência de ser e de não ser, de fazer e de não fazer”. Ainda mais uma frase: “É esta relação que constitui para Aristóteles, a essência da potência. O ser vivo que vive no modo da potência, pode a sua própria impotência e só deste modo possuiu a sua potência”. Um dos exemplos que Aristóteles dá, sempre no âmbito das técnicas e dos saberes humanos (a gramática, a música, a arquitectura, a medicina, etc) referindo a música coloca em evidência uma aspecto fundamental do seu conceito: um pianista pode tocar, do mesmo modo que pode não tocar. Agamben conclui: “pode-se dizer que o homem é o ser vivo que existe de modo eminente na dimensão da potência, do poder e do poder não." Prosseguindo esta ideia posso dizer que só pode-não-compor quem pode-compor. Assim cabe-me, para além deste intermezzo da filosofia que explica o poder não, dizer que me encontro na posição de poder não compor. Dispondo da potência de fazer, disponho igualmente da potência de poder não fazer. 

Ao longo dos anos usei da potência-de-não muito antes de conhecer o conceito de Aristóteles. Numerosas vezes não aceitei pedidos, encomendas de obras mesmo, pelas mais diversas razões. O ser humano vive num certo 'modo-de-ser' mesmo que permaneça ignorante de uma parte das suas determinações.
Neste momento uso novamente a potência-de-não enquanto possibilidade de poder-não permitir a execução de algumas obras que não me satisfazem. Todos - ou quase - os compositores o fazem ou fizeram. É uma possibilidade que possuímos, mesmo estando consciente que o destino das outras que considero boas peças ou razoáveis, não será muito diferente. Conheço suficientemente bem o campo musical em Portugal e no mundo, a sociedade portuguesa e os seus atavismos seculares para poder imagina esse futuro particular com boas probablidades de acertar nessa previsão. É relativamente indiferente para o destino das obras compostas por compositores portugueses serem boas, razoáveis ou más. Aquilo que lhes determina, historicamente, a existência ou a ausência situa-se noutra esfera. Este texto ignora tal facto e produz uma afirmação de auto-avaliação independente desses factores; é a avaliação de eu faço hoje, em 2015 e não em 2040 ou 1827.  Localiza-se no tempo e no espaço. E nessa constelação historicamente determinada entre 1800 e hoje (ou talvez bem antes de 2000, o que não deixa de ser uma hipótese teórica) produziram-se inclusões, exclusões e re-inclusões provisórias.  Como disse não tenho isso em conta nem nunca concebi a história como uma espécie de grande juiz: o facto é que cada período histórico, cada século, procedeu a escolhas diversas, e nem sentido, tudo - incluindo os critérios - deve ser visto como histórico e nunca intemporal. Tal como não há universais - há apenas um desejo de universal inerente aos artefactos humanos - ainda menos há intemporais. É um mero adjectivo de valoração e deriva em grande parte do eurocentrismo característico nesta área.
Dito isto o poder-não fazer está tão activo como o poder-fazer. Estão ligados intrinsecamente. Só não pode-não-compor, quem não pode-compor.
O resto é o tempo a passar e um por-vir sempre desconhecido.
António Pinho Vargas