sábado, 27 de julho de 2019

Partindo de Anner Bylsma: cada nota devia estar "grávida da seguinte".

Na peça do Público de hoje que noticia a morte de Anner Bylsma, cita-se no título uma sua frase, "o homem que dizia que cada nota devia estar "grávida da seguinte". Esta expressão, deveras extraordinária, capta aquilo que me parece ser o aspecto mais essencial da música tanto no que respeita à interpretação como no que respeita à composição: a condução do discurso musical (por outras palavras) 

Na teoria musical tonal tradicional a nota mais "grávida" de uma escala será a sensível - na escala de Dó o Si. 
Nas teorias dos russos da passagem do século XIX para XX Boris Yavorsky e Boris Asafief, teóricos importantes para a formação e diversos modos de pensar escalas e modos - de certo modo já presentes nem que parcialmente na música de Scriabin - e formar ou informar modos de pensamento musical dos compositores russos da geração seguinte como Shostakovich. Para estes tériocos eram as notas fá-si tanto harmonicamente como também enquanto base de estruturas melódicas e escalares de todos os pontos de vista do desenrolar musical, era aquela "díade", aquele intervalo de trítono, que continha em si a pulsão crucial para a resolução tanto meio-abaixo como meio-tom acima, ou seja resolução para mi-do ou inversamente para fá#-lá#. Nestas ideias está presente a relação de trítono entre dó e fá# - frequente em obras de Scriabin - tal como, de outro modo, as escalas octatónicas de Rimski-Korsakov e, logo de seguida, usadas pelo seu aluno Stravinsky.  

É óbvio que na música tonal se verificava o mesmo, mas o fá-si na música tonal ocidental era visto, julgo, mais enquanto elemento harmónico-vertical (parte do acorde de sétima da dominante - (sol-si-re-fá) - e, de certo modo era desse modo que se sobrepunha como motor da resolução "final" dominante-tónica. Portanto a realização das funções tonais V-I. 
Esta é teoria elementar que todos os músicos conhecem. 
Penso, não obstante, que qualquer nota em contextos dados se pode tornar "sensível" ou seja, encarnar uma força que se dirige para uma resolução ou outra ou mesmo para a sua não-resolução o que lhe atribui todo um outro campo de possibilidades. Nas minhas últimas peças a partir do Concerto para Violino até Sinfonia (subjetiva) esta problemática esteve muito presente durante a composição dessas quatro obras. 
Na música de Mahler nós vemos permanentemente o jogo (spiel) entre resolver ou não resolver, ou resolver para ali e depois para acolá, etc. Pode-se dizer que também em Beethoven tais situações abundam e estará certo. Aparentemente trata-se de um facto conhecido pelos estudiosos de música: resolução por cadência perfeita ou cadências interrompidas ou evitadas existem em muita música do barroco até Wagner e Mahler. Certo. Mas que enorme diferença no uso mais antigo e aquele da passagem dos séculos XIX-XX! E sobretudo que potencial ainda existirá por explorar nas obras e nas técnicas dos mais próximos de nós. As fases de transição são sempre de uma enorme riqueza. As regras ainda não estão suficientemente estabelecidas e esse facto cria novas "maneiras", abertas a desenvolvimentos ainda por explorar. 
A expressão de Bylsma alarga esta pulsão a cada nota e torna-a crucial para o discurso no seu todo. Cada nota tem sempre uma outra a seguir (excepto se for a última) e aquilo que a sua expressão põe em destaque é a continuidade do discurso, a sua razão de ser em cada momento, a condução de nota para nota. Uma e depois outra, seja qual for a sua relação de intervalo, tem de parecer "grávida" da seguinte, tem de estar justificada ou preparada para que a seguinte seja plenamente compreendida pelo ouvinte como lógica ou bela, portadora de prazer ou surpreendente, o que será o caso das não resolvidas embora no entanto grávidas. É possível a "sensibilização" de qualquer nota num novo quadro ainda por realizar.

domingo, 26 de maio de 2019

Sempre uma singularidade

Nota sobre singularidade
 
Cada obra de arte musical, ou outra, é sempre uma singularidade. Este é o ponto principal deste folheto.  

As noções que mais tarde se podem associar a cada uma dessas singularidades como a noção de estilo  - ou de época ou de orientação ou influência  e por aí adiante, sendo estilo o que tende a ser mais exagerado no seu uso - que o carácter singular das obras como que desaparece debaixo da pulsão de erudição identificadora potente deste ou daquele estilo, desta ou daquela época, desta ou daquela tendência ou "escola". Este momento de identificação bibliotecária é útil porque permite encontrar o livro porque estando mal arrumado está perdido na imensa biblioteca. Mas é sempre uma intervenção posterior, nem que seja apenas um dia, mas geralmente séculos ou décadas. O processo pode ser individual, um único agente do campo cultural, ou colectiva ou generalizada sendo a passagem do tempo o facto que permite a junção de uma maior gama de intervenções classificadoras.

Não se trata de classificar ou agrupar mal ou bem. Trata-se de considerar menos ou quase nada o essencial da singularidade que cada uma é. Nem sequer um nome, canónico ou não, célebre ou quase desconhecido, se pode equiparar ou substituir às singularidades que cada obra constituiu. 

A cada nome liga-se pelo contrário uma lista de obras, de livros, de filmes, de poemas, etc. Neste lance biográfico surge a noção de "autor", de "criador", de membro de uma escola de três outros, etc. Estes conceitos são usados por todos e por mim próprio. Mas quero aqui afirmar que o seu uso agrava e ofusca  a aparição que cada obra é.

O carácter singular não implica nenhum juízo de valor.  Existe de forma independente da qualidade ou da falta dela, coisa que sabemos poder existir e, por vezes, o tempo faz mudar ou alterar o juízo, conforme passa e os juízos feitos num certo momento do tempo podem ser substituídos, actualizados ou recontextualizados noutro momento do tempo posterior. 

Em todo o caso todas estas práticas de tomadas de posição são usuais e frequentes.  Fazem parte dos discursos correntes sobre a música e a artes em geral. Quanto vale um nome? Quanto vale um Vermeer? Ou um Cezanne? Ou valores são muito elevados. Cada campo valoriza um nome e uma lista de obras. E apenas alguns são capazes talvez de considerar como mais importante do esse valor social geralmente aceite aquela singularidade particular. No fundo todos sabemos isso. Quando um prática discursiva se enraíza verifica-se que as raízes se multiplicam, se usam muito e se naturalizam. Julgo que não há nada a fazer pelo que me diz respeito. O número de vezes que as usei como natural não tem limite. É assim que falamos uns com os outros. Usando generalizações e lugares-comuns correntes. 

(mas há singularidades...)  

quarta-feira, 1 de maio de 2019

As transformações históricas da designação 'música clássica'

Nenhum termo passou mais adequadamente de um significado estrito original a outro mais alargado do que o de 'música clássica'. Historicamente basta o usar o título de um livro famoso de Charles Rosen The Classical Style: Haydn, Mozart, Beethoven para se circunscrever a origem e o âmbito: um certo estilo de um certo tempo. Hoje, depois de um processo histórico complexo o termo "música clássica" alargou-se no tempo - para trás e para a frente - e é aplicado sem aquele rigor original, mas com outro tipo de justeza diversa. Designa na acepção geral e comum, toda a música da tradição escrita ocidental que usa um certo tipo de instrumentos - a orquestra, por exemplo, e o seu repertório canónico das salas de concertos entre muitas outros tipos de formações vocais e instrumentais quer anteriores quer posteriores - esse número foi-se transformando e crescendo), tem os seus espaços próprios, os seus mitos, o seu sagrado. Quem não olha de perto esta prática musical muitas vezes se refere a ela sem hesitação como "a clássica" mesmo que do primeiro ponto de vista um determinado concerto possa até não incluir nenhuma obra do dito período original de Rosen. (Viena 1800 grosso modo). Pode não incluir nenhuma música clássica stritu senso mas o que inclui é a tradição hoje muito mais vasta na qual ela foi um momento decisivo. Tão decisivo como fundador de a longo prazo de uma identidade, de um ensino especifico, de instituições próprias. Acrescenta tanto para o seu passado e como para a sua posteridade, com um sentimento de partilha, de pertença àquela identidade sonora e histórica; implicitamente tanto agrega por um lado, como distingue por outro face a muitas outras práticas musicais. É um signo que se usa para identificar para o seu interior e distinguir para o seu exterior (que não obstante existe no seu igualmente vasto número). Não há nenhum problema, porque a diversidade do mundo é incomensurável desde que se saiba que história é esta. Por isso, Richard Taruskin escreve no seu prefácio da Oxford History of Western Music (2004) o título "A History of What?" na edição original de capa dura.