Sobre análise musical: opções actuais
Um dos aspectos menos claros da actual disciplina de Análise Musical prende-se com a não-distinção entre a análise feita apenas a partir do estudo da partitura e do conhecimento perceptivo da obra e a análise feita a partir dos dados e das descrições fornecidas pelos propris compositores. Nesta última categoria avultam os numerosos textos escritos nas últimas décadas a partir de esquissos fornecidos aos musicólogos analistas pelos compositores que se inscrevem de vários modos nas tendências pós-seriais e alguns dos seus derivados que utilizam a parametrização e a organização, muitas vezes numérica de tabelas e esquemas de pre-composição.
Em relação a este segundo tipo de análises há que distinguir dois aspectos. Sendo por vezes escritas por discípulos. estas análises não deixam de ter alguma utilidade pedagógica na medida em que fornecem aos estudiosos materiais sobre os procedimentos composicionais dos compositores e por isso, tornam-se veículos de aprendizagem desses procedimentos. Dito isto penso que na maior parte dos casos os textos analíticos daí resultantes acabam por ser, primeiro, descrições da maneira como o compositor se auto-organizou para compor a obra e, segundo, acabam muitas vezes por se tornar apenas conjuntos de paráfrases, por vezes revestidas de alguns aspectos poéticos ou pseudo-científicos, construídos pelo analista algures entre o esquisso fornecido e a sua aparição no exemplo relacionado do qual se apresentam uma ou duas páginas da partitura.
O problema principal em questão é que estas análises permanecem encerradas na poiética da obra, no seu modus faciendi, na descrição como ela foi feita. Ficam de fora duas dimensões importantes: naturalmente a aesthesis – a percepção do ouvinte – não raro muito afastada dos procedimentos internos e a produção de um discurso crítico ou hermenêutico sobre a obra enquanto tal. A obra nunca se resume ou limita a ser apenas o resultado do seu funcionamento interno e, por isso, escapam aos analistas desta corrente uma série de decisões do compositor que, durante o acto e o período da composição está envolvido com os seus materiais de maneira mais íntima e profunda do que os esquissos – sendo anotações sistemáticas de quadros de possibilidades - nos mostram. Seria necessário ir até esse ponto e isso raramente acontece.
Se assim não fosse, seria possível, por hipótese absurda, tomando os dados iniciais como ponto de partida, um outro compositor qualquer compor uma peça igual à peça analisada, se se dispusesse a tal inutilidade. Isto só se poderia verificar se o compositor enveredasse por uma via da composição automática e totalmente pré-determinada, o que, nem sequer na fase inicial do serialismo integral se verificou em todas as dimensões.
Assim sendo, a análise, reconhecendo os limites que Boulez – insuspeito nesta matéria – aponta, acaba por seguir um percurso peculiar: começa com o desejo de conhecimento, chega a um ponto onde lhe parece estar a comprrender a obra e o seu funcionamento interno, e em breve volta a mergulhar numa zona de obscuridade na qual reconhece que não consegue encontrar as respostas todas para os problemas colocados pela criação. (Cf. entrevista de Pierre Boulez ao Journal of the Arnold Schoenberg Institute, 1989)
Há assim uma grande diferença entre a análise/paráfrase e a análise crítica e interpretação. Se a análise deste último tipo fornece um número muito menor de exemplos pré-composicionais e, por vezes, não apresenta, pura e simplesmente, tabelas de nenhum tipo, reconhecendo estes limites à partida ou porque não lhes teve acesso ou porque não existem, por outro lado, representa um esforço bem mais considerável de tentar compreender as forças que se movem no interior da obra e daí partindo apresentar uma interpretação possível ou parcial da obra, apresentando conceitos novos, criados pela necessidades referidas, muitas vezes criativos e produtivos para os leitores. Este tipo de análise é muito mais difícil de realizar nos nossos dias uma vez que os compositores que não se reconheceram no anterior paradigma não só são cada vez mais como se verifica sem dúvida que as análises publicadas sobre as suas obras são em muito menor número do que aquelas em que é possível partir do terreno já entreaberto ou pela bibliografia existente ou pelos esquissos fornecidos. Mas é por aí talvez que o estudante pode chegar à descoberta de si próprio de uma forma simultaneamente mais insegura e mais sólida.
António Pinho Vargas, Janeiro de 2011