quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Sobre Memorial para Orquestra Sinfónica OML: Cinco de vários episódios de um fazer.

Sobre Memorial para Orquestra Sinfónica - Estreia dia 15 Dez. Culturgest, Sábado, 19.00 OML. 
Cinco de vários episódios de um fazer

1. A grandeza de um escritor reside, antes de mais nada, na sua escrita, nas suas palavras, nas suas frases, nas suas histórias. Estes aspectos, essenciais na grande arte de Saramago, são próprios da literatura e estavam por isso para além do alcance do compositor. Apenas as poderosas metáforas dos seus últimos livros (cegueira, lucidez, luzes e a violência neles presente de muitas maneiras) podiam ser tomadas como ponto de partida para uma composição que o celebrasse e o pudesse honrar no modo próprio da música.


2. […] No entanto, conceitos ou metáforas, por ricos que sejam, como é o caso, não compõem uma obra musical. Estimulam, orientam, podem conduzir a um resultado, a uma expressão, a uma forma, traçando talvez um quadro prévio de acção. Mas aquilo que é necessário descobrir e compor tem de se produzir e realizar por si só enquanto música. Por isso, não era de modo nenhum adquirido que poderia sequer compor esta obra.

3. […] Recebi o convite com alegria e temor, aquela estranha sensação simultânea que talvez sempre exista na criação artística. Colocado esse ponto de partida, refletindo com grande esforço e dureza no início da busca de um modo-de-fazer particular e levando a cabo um trabalho insano, creio ter conseguido avançar no caminho. ... Ay que caminar.... Mas o caminho é sempre incerto. […]

4.[…] A palavra diz, profere, enuncia com facilidade e potência. Sem esses recursos, a música, no entanto, 'significa' na sua mera existência enquanto tal, sem reclamar nenhum absoluto. Mas a sua significação é 'flutuante', um mistério que viaja no ar até ao sentido auditivo, uma percepção sensível diversa do visível ou do legível. As interpretações do eventual significado serão seguramente infinitas como sempre acontece nas artes. Não há consensos. Mesmo quando a linguagem natural, tanto dita como escrita, nos parece ser unívoca, o seu contacto com o 'outro' (o ouvinte, o espectador, o leitor) vem-nos demonstrar a sua multiplicidade inerente, máxima, sem outro fim que não essa pluralidade aberta e infinita. Cada livro transforma-se, transfigura-se com cada leitor e aí reside uma riqueza da literatura. Mas, nesta arte particular, os estranhos signos de uma partitura de uma obra musical precisam que exista entre eles e os ouvintes um outro tipo de 'interpretação', aquela que os músicos sempre nos fornecem de cada vez com o seu empenho. Sem este primeiro tipo de interpretação não há música senão como potencial-por-ser. […] Ao compositor deste Memorial pedia-se que usasse as metáforas do grande escritor para dar corpo e consistência à celebração e, ao mesmo tempo e de forma implícita, que fosse capaz de produzir um discurso musical construído a partir delas mas simultaneamente autónomo.[…]

5. […] Compomos para espectadores emancipados (Rancière) e para um mundo-da-arte complexo regulado por instituições, elas próprias dotadas de variantes infinitas nas diversas geoculturas. Haverá um devir possível que nada nos garante antecipadamente. Nada. Essa é a condição das obras musicais que fazemos neste tempo. Sempre o foi, apesar da 'ilusio' […]

Entre Maio e Novembro 2018
APV

terça-feira, 9 de outubro de 2018

1. Sobre a noção de estilo

A noção de estilo serve, em primeiro lugar, para designar uma prática comum durante um certo período histórico, o estilo clássico sendo o exemplo mais usado com propriedade. O livro de Charles Rosen The Classical Style: Haydn, Mozart, Beethoven é um dos casos que permite verificar a operacionalidade do conceito aplicado a uma geração de compositores que abarca aqueles três mestres vienenses e engloba muitos outros menos célebres que igualmente compunham de acordo com aquela "common practice" daquela fase crucial da história da música.  É o culminar do sistema tonal - de muito maior duração no tempo histórico - e o  ponto de viragem histórica verificada durante todo o século XIX que gradualmente torna a música mais uma arte de interpretação de música do passado do que uma arte de criação. Este facto não significa que a criação musical tenha terminado, como é evidente, mas significa que foi em torno daqueles 3 compositores aos quais alguns anos mais tarde (1830) se acrescentou o nome de J. S. Bach, ilustre, mas ausente durante quase um século da vida musical real, que se formou aquilo que hoje são as temporadas "clássicas" na acepção genérica do termo, o cânone musical ocidental. Sabemos hoje que o processo social que se iniciou então não parou de se aprofundar até hoje ao ponto de "música clássica" designar, nos discursos correntes, toda a tradição da música escrita ocidental - por isso literata, erudita nesse sentido de reclamar a escrita como prática necessária e como modo de sobrevivência histórica - com a longa duração de mil anos.  

Mas em segundo lugar, o termo estilo é muitas vezes associado a um compositor sendo pouco considerado o facto de o conjunto da sua produção em todos os casos sobretudo a partir justamente da Primeira Escola de Viena - designação igualmente corrente para aqueles três compositores do final do século XVIII e inícios do século XIX, ser muito variado de vários pontos de vista. No entanto é com Beethoven que, com maior clareza, a individualidade de um compositor se torna complexa, problemática e dividida em fases. Foi já no século XIX que as três maneiras de Beethoven foram identificadas e descritas. No século XX como exemplo da complexidade do sujeito criador acrescenta àquele outros nomes nos quais fases distintas se distinguem com clareza. O caso mais conhecido entre vários outros é o de Stravinsky, igualmente com três fases. O próprio compositor refere nas suas conversas com Robert Craft a questão dos "my styles". Se em Beethoven as três maneiras foram sendo identificadas e descritas depois de uma longa maturação após a sua morte - havendo no entanto já algumas referências dos seus contemporâneos a uma certa estranheza que o seu "estilo tardio" - dizemos nós hoje - provocou, pelo contrário em Stravinsky, as alterações procederam por cortes mais rápidos, mais radicais e caracterizados de forma abrupta no percurso complexo da sua vida.  

Este modelo interpretativo vigora de dois modos. Por um lado, em relação a grupos que adoptaram uma técnica determinada e um conjunto de princípios comuns (a Segunda Escola de Viena, a Escola de Darmstadt, os espectralistas, etc) e, por outro lado, na análise dos estilos sucessivos no tempo dos percursos de cada um. Este último aspecto é quase inevitável nos discursos sobre a maior parte dos compositores individuais.  

No ponto seguinte irei descrever de que forma posso pensar uma auto-análise do meu percurso e do meu trabalho em torno deste conceito.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

O que poderia talvez dizer (se o "pudesse" dizer)

O filósofo Sousa Dias afirme no livro Pre-Apocalipse Now, em diálogo com Maria João Cantinho, o seguinte: "a arte moderna interessa-me bastante, mas tanto como a arte de muitas outra épocas, nem mais nem menos. Na pintura, e para dar exemplos aleatórios de um lado e de outro, Tiziano, Velásquez, Rembrandt e Vermeer são referências minhas tão importantes como Picasso, Matisse, Malevich ou Klee para não falar de Cezanne […]. E na música então, sou muito mais sensível à tradição clássica do que à tradição moderna iniciada com Schoenberg e a escola de Viena. Não, a minha questão  nunca foi a da arte moderna, mas antes a própria essência da arte, a do ser-arte da arte entendida no entanto essa essência não como mesmidade abstracta, metafísica, das várias artes, mas como função prática comum, ou co-ressonância das suas específicas funções".

Tentarei descrever a minha posição relativamente a este aspecto e, sobretudo, as razões que me levam a afirmar "não poder dizer".  Julgo que esta posição deve ser vista, em primeiro lugar, a partir da existência da minha "paixão musical" (Antoine Hennion) e, em segundo lugar, do ponto de vista de um criador, de um compositor. A paixão musical pode abarcar neste nosso tempo todas as músicas do passado e do presente tal como muitas e várias práticas musicais de diferentes tradições e culturas. Isto é válido para toda a gente como possibilidade hoje viável. Depois de 1900, sobretudo, toda a história e toda a geografia da música foi-se tornando progressivamente ao nosso alcance, disponível para o nosso conhecimento e fruição através principalmente da existência simultânea, presente, de gravações que nos fornecem esse acesso antes daquela data muito mais restrito. O compositor é, antes de qualquer outra coisa, alguém com "uma paixão musical" enquanto ouvinte. Foi, aliás, essa paixão que o tornou compositor numa fase já posterior a anos de ouvinte possuído pelo encantamento e pelo excesso próprio das paixões. Nesse sentido, poderia reescrever a posição de Sousa Dias dizendo que depois de Mahler, mas com ele, todo o período neoclássico, tem talvez mais potencial de futuro do que aquele que foi enunciado como errado, durante os modernismos radicais que se foram seguindo acompanhado das mais diversas exclusões. Mas, no entanto, para além das periodizações de uns e outros, as obras de todos eles. Mesmo na segunda metade do século há obras deras notáveis a meu ver.  Portanto, não traço a mesma linha de partilha que Sousa Dias enuncia, aliás, amplamente maioritária a julgar pela programação dominante nas salas de concertos do mundo. Isso constitui todo um outro aspecto a considerar diferentemente.

Prosseguindo, não "posso dizer" - para enfrentar desde já a questão fundamental levantada pelo texto de Sousa Dias - é uma afirmação metafórica que procura destacar o facto de haver obras e um conjunto de razões. No momento em que começo a trabalhar numa composição o passado começa ontem. Ou seja, todo o passado, incluindo o excluído de acordo com os diversos e contraditórios traços de exclusão, tudo aquilo que existiu como música foi-me dado, pertence-me toda a arte e toda a música que a vida me tornou conhecida, disponível, amável, admirável.  Nesse sentido, o passado da arte que terminou ontem, está lá completo, dado no seu todo incomensurável tal como toda a arte e toda a música que, por uma razão ou outra, se me foi tornando conhecida e depois privilegiada pelo meu gosto, pela minha paixão.

Nessa posição inaugural o compositor tem perante si um espaço aberto de possíveis no qual o tempo se nivela numa espécie de mancha indistinta sem passado. Pode, se se der a esse trabalho, identificar uma época, um nome, uma obra até. Mas geralmente aquilo que o domina não tem como determinação fundamental esse tipo de identificação. Antes o domina uma força sensível, uma captura de um potencial que se perfila como possibilidade de crescimento, de continuação, de desenvolvimento para usar termos usuais na composição musical. Ainda mais importante, a ideia que antes se procurou captar, formular, perceber, ao surgir como embrião, como núcleo, como "vago mal estar" do que se sente como necessário fazer, o vislumbre de algo por vir, a ideia dizia, assume a total primazia. Torna-se condutora do processo em curso e muitas vezes demasiado estonteante para poder ser interrompida.  Todas as minhas predisposições, todos os meus afectos, ficam momentaneamente postos em suspenso. Nesses momentos toda a memória do passado, que ontem se consumou, pode obrigar, determinar, conduzir nas mais diversas direcções aquilo que se pôs em movimento. O que irá trazer isto ou aquilo está já presente no esboço, no esquisso. Quando digo toda a memória do passado, desloco-me para um ponto exterior às designações temporais - clássico, moderno - que Sousa Dias usou. Mas, tal como para o autor, é o ser-arte ou o ser-música que é o ponto crucial.

Fazia parte das frases muitas vezes ouvidas ou lidas de professores e compositores a que dizia: deve-se deixar o material falar. Tenho hoje algumas reservas em relação ao conceito de material, carregado de ressonâncias de uma certa fase do passado e, com o tempo, fui sendo capaz de pensar outros termos. Deste modo, pensando mais em objectos sonoros - designação talvez inadequada mas ao mesmo tempo maleável enquanto mera metáfora daquilo que existe de uma certa forma num dado momento - estamos perante um ponto de partida e uma ideia ainda vaga (ou não) daquilo que se pode vir a realizar enquanto discurso musical.

Neste momento do trabalho todo o passado, toda a história, todo o conhecido se pode tornar disponível à distância tal como pode mesmo desaparecer completamente. O que existe, adquire uma potência própria e impossível de contornar ou de fazer desaparecer, a não ser que no intenso desenrolar do trabalho composicional nos surja uma sensação de erro, de realização insuficiente, de falhanço sem recurso. Aí, é mesmo necessário apagar, fazer desaparecer o que foi feito e fazer de novo, recomeçar de novo: "falhar sempre, falhar cada vez melhor" (Becket).  Cabe a cada um julgar em cada momento o sentido daquilo que está a fazer.  Momento tão necessário como tormentoso.

O que pretendo pôr em relevo neste pequeno texto é o facto de aqueles nomes, aquelas fases, aquela história, aquela obras que conhecemos - que nos são importantes enquanto ouvintes ou espectadores das artes - no acto do fazer artístico como que se nivelam numa espécie de anacronismo total desde sempre lá presente, tanto ontem, como há cem ou há mil anos. Essa espécie de intemporalidade,  esse anacronismo presente em todo o passado enquanto sempre contemporâneo, que nos permite dirigir o olhar para outras dimensões mais profundas do já feito, seja qual for o seu tempo originário, coexiste com a busca presente naquelas tentativas incessantes que nos obrigam a prosseguir,  e desse modo, o gesto virá a consumar-se numa certa obra cujas determinações tanto nos podem escapar como serem por demais evidentes. Depende de cada caso. No entanto não é aí que reside o essencial do que foi feito. É nele próprio que existe aquilo que o realiza, que o salva ou não salva. Nada de exterior à obra conta para essa avaliação de si própria. Estando a música, por definição e sempre num estado de devir possível, nunca poderemos saber o destino desse devir sempre em aberto.

Deste modo a dialéctica do peso e da leveza inverte-se em relação às ressonâncias habituais e ao prestígio simbólico diverso adquirido pelos dois termos da dicotomia. É na obra, a meu ver, que se concentra o peso e a persistência da obra, de acordo com o princípio da individuação - sendo este um processo de certo modo nunca está concluído - que cada um estabelece, delimita, cria para si próprio. Cada individuação específica, sendo um acto de liberdade ou uma sucessão indeterminada de actos de liberdade, é válida apenas para cada um e não impõe outros princípios criadores possíveis noutros indivíduos. Sem considerar este pressuposto não haveria liberdade no diverso fazer de cada humano. Inversamente, a leveza, que pode dissolver no ar tudo o que é sólido, provém das contingências históricas e sociais deste tempo, de cada tempo e como tal, deriva de outro tipo de determinações que, em última análise, são estranhas às obras: estão aquém ou além delas.

António Pinho Vargas, Junho 2018.


sábado, 21 de abril de 2018

História e o vivido (que nem sempre é "histórico")

Qualquer general das batalhas do passado sabia que avaliar as forças do inimigo era uma parte muito importante das decisões relativas à disposição das tropas no terreno e das deliberações sobre a estratégia a adoptar. Mesmo assim, em cada batalha, no final houve quase sempre vencedores e vencidos. Em poucos casos a situação ficou como que indefinida, sem clareza quanto ao vencedor. Normalmente nestes casos era o que estava-para-vir que poderia definir se a retirada poderia vir a ser um adiamento da vitória futura para um dos contentores, ou seja, do vencedor não talvez da batalha mas da guerra. A decisão da vitória não se definia apenas pela soma das batalhas mas colocava-se sobretudo em termos da estratégia geral da guerra em questão entre contentores. Os historiadores, quando escrevem, já sabem o que aconteceu posteriormente e a sua narrativa é inevitavelmente afectada por esse conhecimento do que estava por-vir.

No caso que me interessa abordar julgo que não se pode colocar a questão nestes termos. Em primeiro lugar não há nenhuma guerra; em segundo lugar não há propriamente vencedores nem vencidos. Tratando-se de arte quando muito pode-se verificar onde e quando residem as hegemonias de certas direcções, de certas correntes num dado momento histórico, a eterna sucessão de novas obras criadas para um destino incerto (o que não é um exclusivo deste tempo, mas do tempo). Nem sequer a História, que nas guerras descritas posteriormente em relação aos factos ocorridos e não durante a sua existência real no tempo, naquele tempo vivido na luta, vem em auxílio dos historiadores que munidos desse saber posterior, sublinham logo o potencial de vitória ou derrota em cada caso de incerteza. Os critérios de selecção do passado mudaram e mudam muitas vezes, Na arte verifica-se que num dado momento histórico uma tendência, uma prática, uma arte parece ser dominante - sendo-o de facto naquele tempo - mas algumas décadas mais tarde essa tendência dominante do ponto de vista simbólico ou real, como que se esfuma, perde energia criativa e torna-se cada vez menos dominante, do ponto de vista dos seguidores, da importância no ensino, da importância quantitativa em número de concertos, de exposições, ou mesmo, no valor económico das pinturas que, neste tempo em que escrevo, se elevaram nas artes plásticas a números impensáveis há algumas décadas. Todos estes factores consideram sobretudo a recepção de obras, o seu impacto num determinado campo social, numa determinada região do mundo - uma geo-cultura - e talvez a sua capacidade de reprodução noutras obras durante um certo tempo, mais do que propriamente qualquer julgamento de valor que considere um indiscutível de uma vez por todas. Pode parecer indiscutível num certo espaço-tempo, o que será certamente verificável nos muitos livros chamados história da arte, história da música, história do cinema, etc. Neles, a descrição é afirmativa e definitiva, ao ponto de, ao ler livros antigos, ou muito antigos, nos espantarmos com as diferenças entre o que foi escrito então e aquilo que nos parece hoje. Varia sempre.

Estamos impedidos de considerar o futuro antes dele acontecer, a não ser como lugar do tempo onde depositamos os nossos desejos ou as nossas preocupações, mas não há razão plausível que nos impeça de poder prever ou antecipar que idênticas surpresas irão ocorrer. Dito isto, o desconhecimento do futuro não impede que, neste momento, como antes em vários momentos do passado, cada autor/historiador tenha afirmado (ou afirme hoje) com total convicção o potencial de futuro desta ou daquela obra ou corrente ou modo-de-fazer.  Nesta perspectiva o futuro não existe ainda, mas o que existe já enquanto anúncio-da-legitimação é a convicção de que o futuro não deixará de atribuir àquilo que, em suma, nós acreditamos hoje, ou seja, o mesmo valor. O futuro surge deste modo com relativa frequência discursiva no presente - com funções legitimadoras no presente - embora na realidade se esteja perante uma projecção de um desejo, de uma crença, de uma convicção, de um receio. O acto de projectar no futuro aquilo em que hoje acreditamos aumenta aparentemente a nossa segurança, e, nos casos conhecidos, a nossa "filosofia da história", é um garante prévio da justeza das nossas crenças actuais. A esta atitude chamou-se "historicismo" quando foi necessário verificar que muitas previsões, pura e simplesmente, não se concretizaram. Na verdade, nos textos antigos - dos vários séculos - com alguma dose variável de "cientificidade" verbal, tal discurso serviu para tornar mais certo um determinado desenrolar futuro ao ponto de, mesmo após um falhanço da previsão, se poder continuar na crença anterior com base no argumento de que ainda não se verificou mas mais tarde ou mais cedo irá acontecer. Tomemos como exemplo o Juízo Final. Acima de todas estas projecções avulta a marxista enquanto argumentário sobre o fim do capitalismo como necessidade histórica.  Neste caso muitas páginas foram escritas tanto num sentido como no seu oposto e o termo emancipação substituiu hoje não apenas o comunismo como mesmo o socialismo. Infelizmente para nós, incluindo-me eu no grupo dos que desejariam um tal desígnio para as sociedades humanas, a emancipação social, o que verificamos hoje é o crescimento do seu contrário: o aumento das desigualdades globais. No entanto daqui não se pode inferir que a situação actual se irá manter indefinidamente. Pode-se declarar sem erro que essa é a realidade actual mas, do mesmo modo, não podemos fechar todas as portas que o futuro mantém potencialmente abertas. A repetição eterna do presente é um dos grandes ocultos não-ditos de cada época e uma prova da nossa falta de imaginação persistente. 

O cânone musical ocidental estabeleceu-se gradualmente ao longo do séc. XIX, transformou-se e aprofundou-se durante a primeira metade do século XX e sofreu nova transformação na segunda metade do século de forma ainda mais radical no que respeita ao seu lugar na vida cultural dos países da Europa e os seus lugares similares espalhados pelo mundo "ocidental". A tradição da música escrita europeia, com inícios por volta do ano 1000, que até 1900 teve um lugar particular nas sociedades europeias com forte presença da música do seu tempo, de cada tempo, até cerca de 1800 indiferente ao conceito de história e mesmo de obra, tornou-se nas últimas décadas cada vez mais um museu imaginário (Lydia Goehr:1992) no qual cerca de 90% do repertório apresentado nas salas de concertos pertence ao passado, com as suas grandes obras, os seus grande nomes, tornando-se uma arte de interpretação mais presente, mais real, do que uma arte de criação. Esta foi-se reduzindo, gradual e inexoravelmente, até aos cerca de 10% restantes e, em certos casos, ocupa lugares particulares e intérpretes especializados. Não houve, desde 1950 até hoje nenhuma corrente musical que conseguisse inverter esta tendência geral. O espaço da criação, que prossegue, dividido em numerosas e diversas práticas e orientações, defronta no espaço público a força do repertório do passado, a força do jazz, iniciado por volta de 1900 nos EUA e, ainda em maior grau, da música pop-rock surgida nos anos 1960 nos países de língua inglesa. O seu impacto foi brutal na economia das artes musicais e existe elevada criatividade em todas essas práticas musicais. A indústria cultural que a regula, que Adorno tentou diabolizar, não deve fazer-nos negligenciar estes outros aspectos, tão reais e dignos de consideração como a sua existência.

Até este ponto podemos ir com segurança - pertence ao passado e ao presente, sendo até dispensável a competência específica de um historiador - mas projectar um futuro está para além do nosso alcance, sejam quais forem as nossas convicções.
Em todo o caso de cada vez que alguém compõe um nova obra, esse facto contém em si um mundo, seja qual for o lugar social que as estruturas sociais lhe reservem. São artefactos humanos artísticos dotados de existência e, como tal, obras de arte. Tudo o resto se refere às transformações ocorridas na sua inserção no mundo musical - ele próprio muito diferente hoje - e nas sociedades, igualmente muito diversas. Não interfere nas obras. Interfere na sua recepção e no seu alcance imediato.

A metáfora inicial sobre generais e batalhas, estranhamente suspensa até este parágrafo final, mostra-nos que apenas depois se sabe quem foram os vencedores e igualmente, que não vale a pena travar nenhuma batalha inútil se não houver nenhuma hipótese de a vencer. A retirada sempre foi uma estratégia militar. Apenas o vivido é, por definição e por si mesmo, merecedor de todos os combates.
Noutros termos, por vivido, considero uma vasta gama de coisas da existência, de aspectos, de modos de existir, que transcendem em absoluto qualquer arte.  Considerando toda esta variedade, pode-se considerar talvez ser necessário separar a vida das obras de arte, da vida em si. Tudo contém significado e um valor. Se restringirmos à recepção, tomada no seu sentido mais amplo - os outros, as determinações das várias esferas de actividade, etc - então desloca-se para o exterior, um exterior qualquer, tudo aquilo que tem valor dentro (e não fora) de si. As obras realizadas, o trabalho feito, as relações humanas que fomos capazes de estabelecer durante a vida, uma imensidão das coisas mais diversas, são aspectos absolutamente independentes daquilo que pertence à esfera da recepção, no caso das artes, ou à esfera do reconhecimento amplo por outros, nos outros casos eventualmente menos ilustres. Mas o seu valor é idêntico. Nele, na sua infinita variedade, reside uma parte importante do sentido da vida. A arte não tem nenhum privilégio (Georges Didi-Huberman) deste ponto de vista essencial.

Goehr, Lydia. The Imaginary Museum of Musical Works: an Essay in the Philosophy of Music (Oxford, 1992)