domingo, 15 de dezembro de 2013

Pensar as artes: a música (parte II)

As profundas transformações que ocorreram no século XX, obrigam-nos a revisitar alguns textos da primeira metade do século XX e usar alguns conceitos que nos permitem medir o alcance profundo das alterações. No seu agora celebrado ensaio A arte da era da sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin não trata a música. Concentra-se nas artes que mais notoriamente eram, na época, devedoras da produção e reprodutibilidade técnicas: a fotografia e o cinema. O facto de não incluir a música nas suas reflexões não foi uma lacuna da análise, mas um sintoma de que o impacto dos meios reprodução técnica da música estava ainda nos seus primórdios. É hoje claro que esse impacto ganhou gradualmente importância ao ponto de o musicólogo Philip Bohlman poder afirmar, nos anos 90, que a gravação "alterou todas as ontologias da música". O primeiro fator de mudança, que se revelou de grande importância pode ser designado, tal como o fiz num ensaio publicado em 2002 como alterando os suportes históricos de sobrevivência. O facto de hoje podermos ouvir música da tradição erudita europeia de 1200 deriva, acima de tudo, da invenção da escrita musical, cerca do ano 1000, que evoluiu gradualmente e permitiu especialmente no século XIX a criação da prática nascente de repetição do repertório do passado. Foi a escrita musical que serviu à música dessa tradição escrita de suporte histórico ao longo do tempo. Há outras civilizações do mundo que possuiram modos de notação diversos mas em nenhum outro lugar a escrita musical teve um tal desenvolvimento. Ao mesmo tempo as músicas das muitas tradições orais, não tendo esse suporte e transmitindo-se de pais para filhos por esse meio - semelhante ao do "contador de histórias" - tiveram uma evolução muito mais lenta, que apenas podemos imaginar, uma vez ausente na maior parte dos casos qualquer suporte histórico de sobrevivência que não descrições ou representações pictóricas. Nesse sentido podemos dizer que enquanto a música europeia da tradição erudita, ou literata, como a designa Richard Taruskin, sublinhando a existencia crucial da leitura do escrito como veículo. tem história e documentos, as práticas musicais populares de tradição oral na Europa e as de outras culturas do mundo, algumas dotadas de sistemas de notação menos desenvolvidos, não tiveram história nesse sentido.

Não é este no entanto o objeto principal deste escrito. Pelo contrário é justamente o impacto do novo suporte gravado na própria vida musical que se reclama da escrita, o seu impacto transformador que produziu hierarquias de um novo tipo. A definição clássica de melómano seria a de um frequentador de concertos. Como saberemos até c.a. 1900 não haveria música se não houvesse músicos a tocar. Era uma condição necessária e insubstituível, fosse qual fosse o seu meio de transmissão oral ou escrito. A partir sobretudo de 1950 a importância da gravação não parou de aumentar. Para além das músicas populares de todos os matizes, das músicas de todas as civilizações não ocidentais, também músicas novas que se iniciaram quase em paralelo com o início da gravação como o jazz, no início do século, até ao pop/rock. Neste processo global, deteta-se uma progressiva importância da gravação como registo fundamental na próprio interior da música erudita. Este modo de produção obrigou a uma inversão das prioridades neste campo. Em meados do século a gravação de uma nova versão de sinfonias de Beethoven, por hipótese, tinha lugar no final de uma tournée de concertos. Atualmente, segundo Antoine Hennion, as gravações e a edição dos discos têm lugar antes das tournées e servem-lhe de ponto de partida, adotando por isso as mesmas práticas de divulgação correntes no jazz e no rock/pop já em plena hegemonia global.

Surge deste modo um novo tipo de melómano, o colecccionador de discos - que todos seremos em maior ou menor grau - que nem sempre é totalmente concomitante com o frequentador de concertos, o melómano original digamos. Criou-se assim um novo tipo de relação com a música que hoje será amplamente dominante. Hennion realça o facto deste novo tipo de ouvinte poder criar, na casa de cada um, um mundo sonoro particular, derivado das escolhas privadas do sujeito, que pode até não corresponder às categorias tradicionais nas quais se dividem as práticas musicais (e os lugares) no quadro das instituições culturais.

Importa no entanto dar um passo atrás e tratar a ontologia com que Ramon Ingarten, discípulo de Husserl, procurou responder à pergunta "O que é uma obra musical?, título do seu livro de 1933. Resumindo em extremo o complexo livro tomarei apenas as quatro condições essenciais para que, na perspetiva de Ingarten, exista uma obra musical: o criador, a partitura, a interpretação e a receção. O tempo obriga a alterar estas categorias em certos géneros musicais. Na música eletrónica, de um modo geral, não há nem partitura tradicional, nem interpretação, se não considerarmos o difusor sonoro um intérprete. Mas na música da tradição escrita, tanto histórica como do nosso tempo, estes quatro fatores continuam válidos. Que diferenças encontramos face à nova situação tecnológica atual? A supremacia quantitativa indiscutível dos colecionadores de discos, a presença no quotidiano da música gravada e uma série de consequências derivadas alteraram os hábitos sociais de escuta. Gostaria no entanto de referir alguns pontos de diferença que talvez não sejam totalmente evidentes. Em primeiro lugar, parto de um exemplo particular para chegar ao equívoco que interessa interrogar e contestar. Há alguns anos um escritor e filósofo, ligado ao estudo da antiga Grécia, declarou a propósito de uma das Festas da Música do CCB o seguinte, que cito de memória: "Porque é que hei de ir assistir a um concerto ao CCB se tenho em casa as Variações Golberg pelo Glenn Gould?". Deste tipo de frase, de que todos já teremos ouvido inúmeras vezes, julgo poder retirar várias conclusões. A música é uma arte viva, performativa e a partitura, estando disponível, permite à obra ter a possibilidade de eterno devir sempre em aberto. Mesmo no caso de uma gravação, no momento em que é ou foi feita, independentemente das metodologias de gravação empregues, implicou necessáriamente que a obra fosse tocada no todo ou em partes. Ou seja, para resumir, uma "interpretação de referência", uma expressão típica dos críticos de discos, por genial que tenha sido, não esgota o potencial de devir futuro que está contido na obra musical. Por isso, por maior que seja a admiração que eu próprio tenho pela figura de Glenn Gould e pelas gravações de 1980 (ou de 1951) em questão, julgo que se verifica uma total incompreensão do que é o próprio ser no tempo na música.

Quem pode garantir que depois de um determinada gravação, considerada "genial" num certo espaço-tempo, não lhe venha a suceder uma outra nova gravação ou, para colocar uma hipótese mais radical, que um determinado grande artista ainda não nascido, não possa vir a fazer um concerto tão ou mais genial do que aquele que ficou fixo para todo o sempre no objeto CD? Sendo uma captação, uma captura de um momento ou de uma certa conceção de como gravar uma obra, esse facto não altera em nada - nada - o caráter de eterno devir que a música desta tradição possuiu. A partitura é uma condição de possibilidade para que a música possa existir e mantém-se sempre em aberto, para novas interpretações e realizações. Nenhuma gravação pode fechar esse futuro. Um gravação, por melhor que seja, nunca deixará de ser um objeto fixo, imutável, igual a si mesmo, nem quando se trata de uma gravação de um concerto ao vivo. Tornou-se fixo. Confundir uma qualquer gravação com a obra é um erro. É tomar um objeto certamente digno de apreço - a gravação - não apenas como uma realização notável da obra, como o seu próprio ser. Aquilo que o CD de Gould pode ser é apenas ele próprio. É um objeto fixo para todo o sempre. Aquilo que as Variações Goldberg de Bach podem ser continua tão aberto para o devir, para o futuro, para a possibilidade de ser outra vez, com o eram antes de Gould ou Leonardt a terem gravado. Quem não perceber isto, lamento, mas não sabe o que é a música ou passou a tomar o seu mundo privado de colecccionador requintado - tenho igualmente um desses mundos em casa - como sendo "o fim da história" daquela peça. A 9º Sinfonia de Mahler não é a Ilíada de Homero, a minha ópera Outro Fim, não é Os Lusíadas, o Vatek de Luís de Freitas Branco não é Os Maias. Todas estas obras literárias permitem leituras diversas, certamente, mas o seu texto, aberto à exegese, fica no entanto idêntico ao que sempre foi. A diferença maior é que a música só se torna completa enquanto obra de arte na sua realização sonora no tempo através da interpretação de músicos. Deste modo as leituras de obras musicais transformam o seu próprio ser-no-tempo, criam uma realidade nova, um momento único e irrepetível. Argumentar que não se vai ouvir música porque se tem em casa melhor revela a mais crassa incompreensão do que a música é no seu pleno sentido ontológicode sempre em aberto. Nem nunca é o mesmo e melhor será aquilo que logo se verá, se lá se for, ver e ouvir. Acresce essa visão de seres humanos em performance que nenhuma gravação capta, para não falar da enorme diferença entre o som real de um piano ou uma orquestra num disco e o som real de um piano e de uma orquestra numa sala de concertos. Daí que muitas vezes pessoas que admiram A Sagração da Primavera de Stravinsky e a julgam conhecer bem, chegam ao primeiro concerto em que a vão ouvir realmente num concerto e passados alguns minutos poderem dizer: mas isto não dá mais alto? Pois é. É que nas salas de concertos não existe o botão de volume que permite em casa ouvir o Sacre com a potência sonora dos Iron Maiden.

António Pinho Vargas

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Sobre o Magnificat: compor, pensar [antes, durante e depois] e recepção



Escrever sobre uma peça musical que ainda ninguém ouviu - com excepção dos cantores do Coro Gulbenkian e do maestro Paulo Lourenço que dirige os seus ensaios - e que não muitos mais irão ouvir, é um exercício um pouco louco que, por um lado, traduz a consciência da nossa condição actual e, por outro, revela a vontade do seu autor de permanecer com a obra, de pensar sobre ela mesmo já estanto feita, de compreender as suas forças e a sua forma. Neste caso digo que sempre senti que a peça tinha um eixo de simetria no nº 6 Fecit Potentiam. Até lá havia um determinado percurso e a partir dali um outro. Mas porquê? Ao contrário da ideia tão corrente neste meio - que o compositor que reclama a liberdade do acto criativo composicional e que não usa esquemas prévios "não pensa" - o compositor, lamento, "pensa". Pensa à medida que faz o seu trabalho e ainda tem de "pensar mais" justamente porque não tem nenhum esquema prévio. Deste modo interpreta as forças em jogo. Uma delas é o texto. Do nº 1 Magnificat - "A minha alma glorifica o senhor "- até ao nº 5 os textos do Magnificat são várias formas de agradecimento e exaltação de Maria que agradece a Deus a sua gravidez. No entanto, a partir do nº 6 Fecit potentiam, há uma mudança de carácter, de direção no texto do Evangelho de S. Lucas. De certo modo o texto passa a fazer a descrição e o elogio da acção divina no mundo. Se não vejamos. O Fecit potentiam, traduz-se: "Derrubou dos seus tronos os poderosos e exaltou os humildes."; o nº 7, Esurientes, "Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias."; o nº 8, Suscepit Israel, "Socorreu Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua posteridade para sempre." e finalmente nº 9 o Gloria do qual retive apenas essa palavra.Este Magnificat tem uma moldura que decidi incluir, para além dos seus números habituais, um Introitus e um Exodus que introduzem e põem fim à peça com uma música similar, transposta uma 3ª menor acima, na qual uma música diversa de todos os andamentos envolve do ponto de vista formal toda a peça e apresenta talvez aquilo que Augusto Seabra descreveu há uns 12 anos como caracteristico da minha música: "uma espécie de angústia de temor latente". Essa moldura formal acentua a simetria, já patente em vários aspectos presentes - dois momentos de contraponto no nº 1 Magnificat e o nº 8 Esurientes, dois momentos de diferente dimensão entre 4º Quia fecit e 7º Deposuit, e simetrias de carácter e peso igualmente entre 1 e 8.Há portanto dois percursos: aquele que assinala da exaltação de Maria, de 1 a 5 e a descrição do divino como projecto e/ou acção, de 6 a 9/10. Diria portanto que há um percurso paralelo ao texto que encontra a sua peripateia, o momento da inversão da acção das tragédias gregas, no nº 6 Fecit Potentiam, no qual descrições da acção divina de certo modo próximas do carácter de muitas passagens do Antigo Testamento, tomam o lugar, em S.Lucas, do directo agradecimento de Maria a Deus. Por isso, o meu Gloria, não é propriamente um Gloria. Tem consigo uma interrogação poderosa na música. O Coro canta Gloria, mas a música, no seu todo, interroga o que é dito e cantado pelo Coro em piano e pianíssimo.Finalmente uma nota sobre o tempo ou a falta dele. Tudo isto é claro para mim e para quem vai conhecendo a peça no processo maravilhoso da sua montagem pelos músicos. E seria claro também para os auditores se tivessem a oportunidade de ouvir várias vezes, a possibilidade que realmente têm com as peças gravadas do repertório canónico, muitas vezes em várias interpretações. A questão que se pode pôr é assim a eventual `falta desse tempo' que uma ou duas execuções colocam como desafio ao ouvinte. No caso de óperas a questão coloca-se ainda com maior importância. Não há tempo. Então há apenas duas hipóteses: ou uma sedução imediata, ou uma rejeição precoce. Da parte dos "especialistas" e dos críticos - cada vez em menor número e cada vez com menos espaço - para além de não haver igualmente tempo comparado com aquele que habitualmente dispõem há ainda um outro factor que interfere com a percepção livre. A noção de estilo (ou de estilos) a mais imediatamente disponível nas memórias formadas no arquivo cultural revela-se não uma vantagem mas antes uma limitação. O arquivo fornece um cardápio vasto de identificações possíveis. Por vezes há igualmente preconceitos de rejeição imediata: "se é assim não gosto" ou, pior ainda "não pode ser". Nestes casos para além do tempo que falta a todos acrescenta-se a obrigação profisssional de ter de produzir um texto e de acordo com o modo de ser da crítica hoje, um julgamento de valor, coisa muito diversa da função original de mediação entre as obras e os espectadores. Muitas vezes em socorro da dificuldade vem a identificação do "estilo", ficando-se aquém da muito mais dificil e demorada compreensão do discurso. Em relação a tudo isto nada a fazer. É essa a nossa condição actual.


António Pinho Vargas

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

"The future of music" - comunicação inicial no debate do dia 13 Set 13


Comunicação inicial para o debate "The future of music: is anyone listening?" 
dia 26 Set. 2013, na Culturgest.

1. Uma das maiores  dificuldades do ser humano é admitir que o futuro pode muito bem contrariar as expectativas que temos neste momento, pode contrariar os nossos valores e convicções presentes, que vemos muitas vezes como indiscutíveis e mesmo eternas. Posso dizer que encontro frequentemente posições, contraditórias entre si, mas que têm em comum uma confiança inabalável naquilo que cada um pensa hoje sobre o futuro. Para todos eles o futuro virá a ser exactamente aquilo que cada um pensa sobre o assunto. É um erro muitas vezes associado às convicções e crenças que existem sobre os valores do presente e revela uma espécie de angústia face ao que está para vir e alguma falta de imaginação. O futuro reservará surpresas que não podemos prever, nem estão escritas em lado nenhum.

2. Falar de música hoje implica, em primeiro lugar, ter a consciência de que será talvez mais sábio usar o plural do que o singular. Há inúmeras práticas musicais, provenientes de diversas culturas mas mesmo no interior de um mesmo espaço geocultural, pulverizado em numerosas correntes. Todas estas correntes possuem genuínas formas de criatividade e, nesse sentido, o alarme de alguns teóricos sobre "a morte da música clássica" ou "a crise da música contemporânea", deve ser visto à luz do conceito de morte da arte formulado por Hegel. A morte da arte de Hegel sublinha apenas, na minha opinião, a morte de um "certo" modo de ser e o fim de um certo modo de articulação com o social, hstoricamente delimitado, destinado a ser substituído por outro. 

3.  Um segundo aspecto é justamente considerar que a evolução da tecnologia durante o século XX alterou fortemente a relação entre as músicas, a da tradição escrita europeia com mil anos de existência assegurada pelo suporte escrito,  a dita música "clássica", e todas as músicas das tradições orais ou as mistas de escrita/oral que já existiam, ou que foram surgindo ao longo do século XX, passando a ter um novo suporte de sobrevivência histórica antes ausente, a gravação.

4. Um terceiro aspecto será considerar o impacto futuro das duas formas de existência da música actualmente: a música que resulta da acção performativa de músicos em salas de concertos ou outros espaços criados e a música enquanto objecto tecnológicamente reprodutivel e por isso tornado independente da presença real de músicos a tocar. O século XX assistiu à crescente importância deste factor, mesmo no campo da música do passado, tornada presente nos discos, como na própria estrutura do funcionamento do campo "clássico", no qual a gravação passou a ser um passo decisivo na criação dos cânones de interpretação - "os grandes intérpretes" - e dos cânones da composição - "os grandes compositores" - legitimados e divugados principalmente através de revistas e livros,  com os quais a partitura foi, de certo modo, ultrapassada, não na sua necessidade real e insubstituível para que as obras sejam executadas, mas do ponto de vista da aquisição de poder simbólico. Este é atribuído por instâncias de consagração entre as quais a existência de discos ou gravações se foi tornando progressivamente mais importante.

5. Qualquer reflexão sobre o futuro das músicas implica necessariamente uma reflexão sobre a articulação entre  o seu lugar futuro, enquanto presença - aqui e agora - tanto no quadro das grandes instituições culturais, como no quadro de novos espaços entretanto criados para músicas minoritárias ou, inversamente, para as músicas de dominação global e planetária, os festivais de pop-rock que já não cabem nas salas de concertos tradicionais, como sobretudo na articulação entre a música enquando performance e a música enquanto gravação, ou seja enquanto arquivo, face à indústria cultural, quer na sua vertente de concertos, mas especialmente na sua vertente da indústria discográfica, a sua circulação/ existência/tranformação nas plataformas digitais da internet que muito provavelmente irão interferir e alterar os actuais modos de funcionamento das várias instâncias de consagração que marcam as vidas individuais dos músicos de hoje e do futuro e dos públicos consumidores de hoje e do futuro.

António Pinho Vargas, Setembro, 2013.
 


terça-feira, 17 de setembro de 2013

Pensar a Arte do século XX (Parte I)


Publicado a 07-09-2013 no Expresso [Revista Atual]    [ pp. 36-37 ]

A tradição do novo contém em si mesma um paradoxo. Nos anos 1960 Harold Rosenberg escrevia que "uma apetência para um new look tornou-se uma necessidade profissional" e, mais adiante, que "o novo não pode tornar-se uma tradição ser dar origem a contradições, mitos e absurdos únicos". O historiador e crítico musical, Richard Taruskin, na mesma ordem de ideias, depois citar Rosenberg, afirma que "ainda vivemos com eles". Para o autor "a historiografia da arte - a da música em particular - permanece a mais teimosamente arreigada a este conceito. Celebra a inovação técnica, vista como progresso no interior de um domínio estético estreitamente circunscrito". Apesar de todas estas questões continuarem a provocar debates intensos em vários países do ocidente e do mundo, em Portugal, a reflexão crítica sobre arte repete este tipo de narrativa interna em cada uma das práticas artísticas, em grande parte dos casos, em publicações de circulação restrita como catálogos de exposições de museus ou de galerias e em programas de concertos ou nas reduzidas entrevistas que são feitas a artistas e compositores no espaço público, sem que, no entanto, sem que haja livros publicados propriamente sobre estas temáticas particulares. Nem sequer na imprensa escrita tem havido muito de assinalar. Em Portugal a discussão pública sobre artes ou pensamento sobre elas tem sido menorizada pelas guerras civis em torno dos apoios do Estado à cultura e pelas nomeações para cargos. Não é esse o tema deste texto.
Um dos pontos mais propícios à polémica é aquele genericamente assumido no campo das artes ditas plásticas, que foi dito expressamente num entrevista realizada há cerda de uma década a Vicente Todoli: "É arte aquilo que o artista diz que é arte". Face à pulverização dos antigos cânones artísticos muita da arte do século passado pode ser vista à luz desta afirmação, cuja problemática filosófica foi amplamente estudada por Arthur Danto. Este tópico radica como parece evidente na obra de Marcel Duchamp, La fontainne, de 1917, um urinol virado ao contrário e dotado de assinatura, e na arte que deriva do readymade e no caso da música, décadas mais tarde, na obra de John Cage 4' 33'', de 1953. A literatura produzida sobre as duas obras é muito elevada. Muitas vezes estas duas criações foram analisadas à luz da ideia subjacente de um ataque à instituição-arte, do seu próprio interior, uma poderosa interrogação crítica dirigida ao funcionamento dos mundos-da-arte. É desse modo que, para Nelson Goodman, a pergunta O que é a arte? deveria ser substituída por outra: Quando é que há arte?. Muitos partilham essa opinião.
No seu importante livro, A teoria da vanguarda, publicado em alemão nos anos 1970, Peter Bürger considerava, no entanto, numa época em que tal não era corrente e ainda menos consensual, que o ataque desferido pelas vanguardas artísticas à instituição-arte em geral tinha falhado esse eventual desígnio, em especial no caso das segundas vanguardas do pós-guerra. Os museus e as galerias neutralizaram esse ataque de forma simples: compraram as obras, expuseram-nas, produziram discursos legitimadores e assim reintegraram-nas no seu corpus, no arquivo que as sustentam enquanto instituições. Para além de me parecer que o lugar privilegiado de John Cage, como figura vista no seu todo, ser hoje talvez mais o museu de arte contemporânea do que propriamente a sala de concertos, da qual a sua música está muito ausente, julgo importante descrever o caso de 4'33'' como exemplo paradigmático de arte conceptual. Onde reside o seu potencial de sedução teórica? Na verdade a música desta obra, no sentido restrito, não existe. A partitura é constituída por 3 andamentos cada um com uma fermata, sinal que indica ao pianista para não tocar. Assim sendo não há música produzida pelo músico, nem pelo compositor, enquanto ação prescrita e notada na partitura. Mas há, de facto, um lance conceptual por parte de Cage, que alguns consideram a parede final, inultrapassável, do radicalismo musical conceptual. Do ponto de vista zen de Cage o mundo é constituído por som. Há som em todas as circunstâncias, mesmo no caso extremo de uma sala anecoica, o som do sangue que circula nas veias do ser humano lá presente. Portanto, John Cage, corta uma fatia do tempo interrupto, demarca um início e um fim - uma duração - no qual o pianista sentado na sua posição tradicional, assegura, como representação, uma "execução" de uma peça e o facto de não tocar, abre um espaço para que o som do mundo - seja qual for - se manifeste. Mas sendo esse facto - haver som - permanente e inexorável, o que distingue esses breves minutos é o facto de John Cage, ter conceptualizado esse momento como sendo uma obra musical, a sua obra 4' 33'' e deste modo esse fragmento de tempo, supostamente de silêncio, muda de estatuto simbólico, passa a ser uma "obra" de J. Cage, do mesmo modo que um readymade comprado numa loja qualquer pelo artista Duchamp, manipulado e assinado por si, adquire igualmente o estatuto de obra. Esse curto fragmento de tempo foi, por assim dizer, apropriado por Cage como sendo a sua obra. A música, no sentido estrito, não existe, como ação humana, mas existe, também como ação humana, a criação do conceito dela no qual ao silêncio ou aos sons do mundo é atribuído pelo compositor o estatuto de obra de arte, neste caso de obra musical.
Terá sido relativamente fácil prever os inúmeros debates e as controvérsias que esta obras provocaram e provocam ainda. Tal como o ataque à instituição-arte das vanguardas clássicas, também esta obra de Cage levanta uma série de questões. Não propriamente a censura de falsidade ou mentira, considerações demasiado fáceis tanto de lançar como de rebater, mas, noutro plano, um debate que se pode levantar em torno do próprio conceito de obra. Se, por um lado, se trata de um desafio lançado à noção de obra musical tradicional, ou mesmo moderna, por outro lado, só tem consistência artística, só a consegue adquirir se, ao mesmo tempo, for considerada "uma obra musical", contradição interna da qual não se consegue fugir. Por uma lado, contesta e desafia um conceito tradicional, por outro, é nele que encontra a sua legitimidade conceptual. Este double bind psicológico é uma armadilha na qual muita arte posterior não conseguiu evitar.
Toda esta problemática não deixa de estar próxima do conceito de "morte do autor" das fases centrais de Roland Barthes e Michel Foucault, figuras brilhantes do pensamento francês da segunda metade do século XX. A pergunta que concretiza a paralisia, é a seguinte: quem é o autor que declara a "morte do autor"?
Todas estas perguntas teóricas e estas declarações estéticas podem ter respostas, têm certamente um significado mais profundo do que o apenas literal, podem ser objecto de discursos mais ou menos sofisticados mas não evitam deixar um flanco em aberto, uma fragilidade.

Esse flanco é o lugar onde se constitui uma subjetividade humana, aquilo que permite a um autor usar um nome e uma assinatura, desse modo, inclusive a subjetividade dos próprios autores das sentenças. Sabemos que o ser humano, enquanto subjetividade, está em permanente negociação com o mundo e consigo próprio. Para além disso é da análise da sua articulação com o mundo e os mundos-da arte que provém ainda mais uma pergunta, sempre incómoda desde que foi formulada até hoje, face à ideologia carismática, à imagem que os artistas têm de si próprios, e que os seus teóricos e agentes não deixaram de fomentar e reproduzir, a pergunta de Pierre Bourdieu. Nas suas análises dos campos de produção cultural interroga por sua vez: Quem é que declara a autoridade do autor? A resposta de Bourdieu conduz-nos de volta para o mundo-da-arte, para a instituição-arte e para a sua capacidade de atribuir poder simbólico.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Um equívoco persistente: o ritmo.

Verifica-se um equívoco relativamente ao ritmo, à actual visão que se tem do ritmo, na música, que, por um lado me diz respeito, mas por outro diz respeito a todos, na medida em que se espalhou como um vírus de percepção errónea.
Vou por partes. Em primeiro lugar tendo sido músico de jazz muitos anos, sei o que é o ritmo nesse tipo de música. Até sei que, no jazz que pratiquei anos, e se continua a praticar, - antes portanto da música de jazz composta por António Pinho Vargas - o lugar do pianista, raramente era manifestar o ritmo base no seu jogo instrumental, mas pelo contrário, articular esse ritmo regular de base, expresso pelo baixo e pela bateria, com o jogo de ora estar com ele, ora estar contra ele, com síncopas e muitos outros tipo de figuras. Jogar com o ritmo regular tocando irregularidades. Por isso nem sempre o que parece, é.

Em segundo, verifica-se na música do século XX, nos comentários e nas críticas, uma espécie de atribuição, de uma vez por todas, a Stravinsky, especialmente ao elemento acorde repetido tipo Sagração, da "propriedade" desse elemento. Em todas as circunstâncias em que um compositor usa uma acorde repetido o crítico, entusiasmado por ter captado "uma influência", escreve imediatamente Stravinsky! ou stravinskiano. Como se o russo tivesse sido o único a usar um tal recurso. Como se não tivesse existido um compositor chamado Bartok que igualmente usou diversas formas de ritmos pulsados e mesmo em vários e certos casos com acordes repetidos. Mas não. É sempre Stravinsky. É certo que a famosa passagem da Sagração é conhecida de todos. Mas talvez muitas outras passagens dele e sobretudo de outros não sejam assim tão conhecidas. Trata-se de um equívoco que persiste por via da "canonização" daquele famoso elemento, da sua interpretação como sendo um exclusivo de Stravinsky, quando na verdade há numerosíssimos exemplos do mesmo tipo tanto na música do século XX como mesmo na música anterior. Sabemos que este fenómeno - o presente ou futuro reescrevem o passado e desfiguram-no com o objectivo de tornar simples aquilo que foi e é complexo - se verifica com mais frequência do que parece. Um caso da literatura frequentemente citado é o de Kafka. O checo teria escrito todos os horrores-por-vir na história posterior do século XX, teria antecipado os acontecimentos que não tinham ainda acontecido. Um outro é uma passagem de uma novela de Guy de Maupassant na qual o escritor se fixa no olhar de objectos que o remetem para o passado, um momento fora do seu tipo de narrativa habitual. O futuro, a existência de um escritor chamado Marcel Proust transformou aquela passagem de Maupassant num passagem proustiana avant-la- lettre. Esta leitura não tem sentido rigoroso excepto no quadro em que vivemos no qual "o arquivo" que constituiu toda a cultura ser uma instituição histórica que pratica uma narrativa de hoje fixa no ir e vir no tempo que os especialistas e historiadores praticam diariamente.   
Regressando ao meu caso pessoal quero dizer que há mais ritmo do que no jazz e do que em Stravinsky. Para começar o meu argumento direi que a Sonata Waldstein de Beethoven caso não fosse de Beethoven, e tivesse sido escrita por um compositor de hoje seria imediatamente classificado como Stravinsky! Ou, na variante da história literária que referi, como um momento stravinskiano de Beethoven! Nem falo do extraordinário acorde da primeiro andamento da Sinfonia Heróica. O que me parece é que só os preconceitos entretanto criados - um preconceito muito repetido torna-se, pela via discursiva, tão parte da realidade como a própria realidade - e talvez também um grande desconhecimento do repertório do passado podem explicar a persistência deste tipo de equívocos. 

Regressando ao meu caso pessoal devo dizer que nos anos 1970/80 toquei bastantes peças para piano de Bartok durante o meu curso de piano. Devo até dizer que, numa Sonata de Mozart em Fá maior, que tocava em 1976-7, uma determinada passagem com síncopas e acentos, era ouvida pelos meus colegas da altura como lá-está-ele-a-tocar-jazz no meio de Mozart. A questão é que as síncopas e os acentos estavam lá e enquanto que a tradição pianistica romântica se caracterizava por arredondar tudo, de tornar tudo expressivo, mesmo quando era rítmico, e era isso que tinha maior importância, nessa avaliação errónea, do que tudo o resto. Mais tarde alguns disseram-me que não tinham percebido isso na altura e só quando ouviram discos de outros pianistas ilustres a tocar do mesmo modo é que perceberam que era mesmo assim. Poucos saberão que toquei muito Bartok mas não ando a dizer o tempo todo aquilo que toquei durante o meu curso de piano. Mas quero sublinhar que, essa música de Bartok, esses dispositivos recorrentes nele, inscritos no meu corpo, se manifestam muito mais claramente aos meus olhos na minha música escrita recente, senão toda, do que o tipo de ritmo usado no jazz ou o acorde de Stravinsky (ou será Beethoven, afinal?). 

Este aspecto, este esclarecimento, no entanto, é totalmente inútil. O que digo não se escreve no sentido em que fica remetido à sua excentricidade aparente e ao seu âmbito minúsculo. Nada tem maior força do que uma ideia feita, do que um lugar comum. Enquanto não for desfeita - e isso por vezes demora séculos - continuará a reinar. É isso que explica a persistência da leitura banal e tornada corrente neste nosso micro-mundo em progressivo isolamento, no qual a ignorância real de muitas obras do passado e do presente é muito maior do que se imagina "lá fora". É neste mundo tal como ele está agora que vivemos. Saber algumas coisas para além do pensamento dominante nele, é mais um incómodo, uma fonte de enganos, uma dor, do que uma sabedoria. 

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Periferias e opções pessoais: a propósito de Chopin (segundo Taruskin)


Não é habitual que se considere a noção de periferia e os seus efeitos nas histórias da música tradicionais, nem as opções pessoais dos compositores. É tudo envolvido pela aura do grande nome, de tal modo que se esquecem, tanto o seu lugar de origem ou de fixação, como os seres humanos que dão corpo aos nomes. É um efeito secundário do "universalismo"carismático dominante e ilusório nas artes e aceite sem qualquer reflexão geocultural. Nem as opções de retirada são propriamente notícia, com a excepção do caso radical de Rossini.

1. A propósito de Chopin escreve Richard Taruskin: "O estilo de Chopin tornou-se mais nacional à medida que a sua carreira se tornou mais internacional. O "exotismo" vende, especialmente se apresentado como nacionalismo (nacionalismo com "tourist appeal') Apresenta oportunidades mas também grilhetas. Este é um dilema que todos os artistas "periféricos" têm de enfrentar uma vez que existe o establishment e a centralidade da germânica na música "clássica".

2. "Depois do seu sucesso inicial em Paris (26 de Fevereiro de 1832) […] Chopin tornou-se um leão social.  Por isso pôde renunciar às salas de concertos. Entre 1838 e 1848, quando foi forçado a regressar aos palcos por ter necessidades materiais, não deu nenhum concerto público de todo."

Chopin, como todos os outros, era um ser humano e, como tal, transportava consigo a marca do seu local de origem e a marca do seu ser.

António Pinho Vargas, 26-8-13

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Um novo paradigma emergente na vida musical?


Este texto foi publicado no Atual do Expresso do dia 20-7- 2013 com o título O cisma musical

Um novo paradigma emergente na vida musical?
O futuro permanece em aberto. Teoricamente toda a gente aceita este postulado. Mas todas as mudanças que ocorrem no mundo, nas fases de transição como a que atravessamos, defrontam, no início, a nossa falta de imaginação histórica. Numa das formulações que lhe são próprias, Boaventura de Sousa Santos escreveu que "as fases de transição são semicegas e semi-invisíveis". Interpreto esta frase como sublinhando, primeiro, que as transformações desencadeiam processos que não preveem todas as suas consequências, processos-cegos e, segundo, pondo em realce o facto de, por vezes, mesmo estando já em curso sinais potenciais de mudanças, as convicções e as crenças antigas, tornam-nos semi-invisíveis. Parto desta frase para levantar uma "hipótese de trabalho" que defronta certezas seguras acerca da história futura como mera continuação ou variante do que já existe.
Na vida musical da tradição erudita no Ocidente verificou-se, a partir sobretudo de 1950, um aumento progressivo de uma cisão estética entre duas esferas, coexistentes no tempo, mas separadas nas suas práticas dominantes e nos seus intervenientes. Refiro-me à predominância, progressiva e em larga escala, do repertório histórico, da prática da repetição, ano após ano, de um conjunto de obras restrito, o chamado "cânone musical"  constituído através de inclusões e exclusões. Esta dominação realiza-se como "museu imaginário" nas salas de concertos e teatros de ópera do mundo ocidental e a sua factualidade não suscita grande discussão. Nos programas impera a importância da interpretação, uma arte viva enquanto execução ou gravação de obras mortas, no sentido de terem sido compostas há muito tempo Do outro lado do cisma, está a "criação musical de hoje" sobretudo a partir de 1950, mas já latente desde o início do século XX. A tomada de consciência social do cisma conduziu a uma nova designação, previamente inexistente: a da chamada "música contemporânea". Esta separação resultou no aparecimento progressivo de um conjunto de agentes e instituições específicas e especializadas, em muitos casos completamente diversas das já existentes para a interpretação do repertório do passado. Segundo Pierre-Michel Menger, este subgénero "tem os seus actores, os seus auditores, mas também o pessoal das administracões culturais e das cadeias de radiodifusão públicas que financiam e sustentam a producão e a difusão de obras que não têm mercado directo ou imediato. Tem os seus mecenas, [...] a sua cronologia institucional, a invenção dos ensembles especializados, dos festivais, dos centros de pesquisa e de producão". Em Portugal, um exemplo desta estrutura de apresentação pública terá sido os Encontros de Música Contemporânea da Fundação Gulbenkian, existentes de 1977 até 2002. O seu fim assinala a sua exaustão, segundo alguns autores, ou uma tentativa de criar uma nova forma. Esse modelo acabou por aprofundar ainda mais o cisma referido. Nicolas Donin[1] escreve em 2005, numa publicação do IRCAM: "raras são as obras da vanguarda dos anos 50 que entraram no repertório dos músicos não especializados” e mais adiante, que "a primeira audição é o momento decisivo no qual pesa o ritual do concerto sobre a obra: a ausência do direito ao erro por parte dos intérpretes, o julgamento estético colectivo do público, a expressão diferida do julgamento dos críticos (no dia seguinte ao concerto) e ainda vários outros elementos, condicionam largamente o futuro da obra ao expor-lhe as virtualidades”. Donin escreve pensando no seu país, a França, mas mostra-nos que "a estreia seguida de descarte" e as suas várias consequências, não é uma característica exclusiva dos países periféricos como Portugal.
Qual será então a emergência que pretendo destacar? Um retorno parcial a aspectos do período prémoderno sob novas formas. Deve-se considerar semelhanças e diferenças. Entre as primeiras destaca-se: 1. A primazia das estreias e posterior descarte das novas obras aproxima-se cada vez mais das práticas pré-modernas anteriores a 1800, ou seja, um reaparecimento do formato social da vida musical pré-moderna, música destinada a ser tocada umas poucas vezes. 2. Em lugar dos príncipes e dos bispos do séculos XVII e XVIII surgem novos mecenas: as instituições culturais que encomendam novas peças mas que de uma maneira geral praticam o descarte após a estreia. 3. No período pré-moderno, compositores estavam ligados contratualmente aos seus patronos, com a tarefa de compor sucessivamente novas obras; com maior incerteza mas alguma regularidade o único rendimento dos compositores actuais é a encomenda. Os outros rendimentos clássicos, os direitos de autor e as vendas de partituras, são hoje residuais e ameaçam desaparecer.
No que respeita às diferenças entre os dois regimes sublinho: 1. Na maioria dos casos as instituições culturais dedicadas à música, mantêm, no entanto, a vida musical canónica como a principal em larga percentagem. As temporadas repetem as mesmas obras com enorme regularidade. Mas, no que se refere às novas produções muitas das encomendas feitas ao pequeno grupo de compositores decorrem de associações entre várias instituições de vários países, o que, por um lado, mostra tanto um modo de reagir às dificuldades financeiras das produções e, por outro, revela que é ainda antes das obras existirem que o destino da sua circulação, mesmo que restrita, está determinada pelos agentes culturais envolvidos. 2. Este retorno prático à fase prémoderna coexiste com um imaginário formado nas narrativas tradicionais das histórias da música. Entre o imaginário e o real, as narrativas dominantes na crítica e no ensino e a realidade há uma diferença e uma disfunção. O imaginário que precede a composição das obras não obtém confirmação real e resulta em reclamações e lamentos.  A expectativa de entrada para o cânone, na grande maioria dos casos é frustrada, o o argumento de que com o tempo a compreensão das obras avançadas virá - com exemplos do passado (os últimos Quartetos de Beethoven à frente) para legitimar essa pretensão, deparam com o desmentido do real 3. Estes vários aspectos diferenciados e contraditórios verificam-se em todo o mundo ocidental. Actualmente os dois formatos coexistem: por um lado há milhões de compositores no mundo; mas, ao mesmo tempo, verifica-se no repertório histórico uma intensificção do arquivo e do seu alargamento para o passado.  
5. Ao mesmo tempo, afectando os dois lados do cisma, o peso global da indústria cultural anglo-americana, decorrente das transformações tecnológicas verificadas durante o século XX, suportada por grandes meios financeiros e atraente para investimentos das grandes empresas em festivais, coloca as duas vertentes cismáticas da música erudita europeia sob forte ameaça. É deste conjunto de factores que resulta o alarme, enviado em especial dos EUA,   sobre a sua progressiva passagem para "margens ilustres da actividade cultural., como afirma Lawrence Kramer.
6. As teorias apocalípticas da "morte da arte", como a de Hegel, não devem ser interpretadas à letra, face à evidência da continuação posterior da produção artística. Mas assinalam as grandes transformações dos seus modos de produção, realização e circulação, em última análise, as mudanças do seu regime de existência pública, do seu regime de partilha do sensível, para usar uma expressão de Jacques Rancière. 
O termo "hipótese de trabalho" usa-se nos projectos de investigação com vista a confirmar ou desmentir as hipóteses posteriormente. Neste caso o lapso temporal necessário torna inviável uma conclusão. O futuro não está escrito, mas será sempre mais imaginativo, do que a repetição do que já existe.



António Pinho Vargas, Junho de 2013
Compositor, Professor de composição na Escola Superior de Música de Lisboa, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.


[1] Donin, Nicolas (2005) in L’Inoui, Revue de l’IRCAM, 31-47.

domingo, 7 de julho de 2013

Eurocentrismo nas Histórias da Música

Eurocentrismo nas Histórias da Música in Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu, (Almedina: 2011: 95-99)
O meu argumento é o de que, do mesmo modo, a master narrative História da Música, mesmo na versão mais actualizada pela hermenêutica da suspeição de Richard Taruskin, “A História da Música Ocidental”, ao constituir-se como uma narrativa canónica indiscutível, faz que uma história como a “História da Música Portuguesa” (ou de qualquer outro pais periférico europeu) seja igualmente uma variação sobre a grande narrativa, quer seja um comentário paralelo, quer tome a forma de uma descrição paralela à História da Música Ocidental – central ou canónica – da qual, como veremos, Portugal está praticamente sempre ausente. O facto de a história da música portuguesa, indubitavelmente subalterna – talvez a mais claramente subalterna de todos os países europeus –, não existir até hoje no quadro da grande narrativa, senão muito residualmente e apenas em certos casos, não só atesta essa subalternidade, como é óbvio, como também conduz a narrativa local para o carácter difuso e descontínuo de uma história cheia de hiatos, de desaparecimentos, na qual se vão (d)escrevendo – em paralelo com a narrativa principal – as aproximações e os distanciamentos, os atrasos ou os desvios em relação à grande narrativa que permanece como a referência omnipresente (44).
As Histórias da Música Portuguesa existentes descrevem-nos (também) o destino da polifonia renascentista, a emergência do barroco italiano, a supremacia do classicismo vienense em relação à ópera italiana, o surgimento de um primeiro nacionalismo em meados do século XIX, seguido de um segundo nacionalismo a partir do início do século XX, a preponderância repentina da Escola de Darmstadt a partir de 1950 e o aparecimento das primeiras reacções pós-modernas. Por maiores que tenham sido os desfasamentos temporais, as incorporações tardias e os atrasos estilísticos da narrativa subalterna portuguesa, esta constrói-se, produz-se, à luz da grande narrativa e vê-se no seu espelho. O espelho narrativo com as suas deformações côncavas ou convexas só adquire inteligibilidade se interpretado à luz da narrativa europeia que pode sempre iluminar os caminhos, esclarecer as dúvidas e (re)focalizar as distorções.

A música portuguesa acaba por se descrever como o resultado de uma espécie de colonialismo interno, sobretudo a partir do século XVI, através do qual a metrópole europeia exportou as suas correntes sob a acção de agentes locais de actualização sucessiva. Tal como afirma Richard Taruskin, no século XIX, “todos os conservatórios dos países de língua não-alemã se configuraram com agentes coloniais da música alemã”. (45) Em Portugal foram-se sucedendo as metrópoles específicas nos diversos períodos estilísticos – Roma, Nápoles, Paris, Londres, Berlim, Paris novamente – sendo de considerar que a própria história canónica possui uma forte componente geográfica, no sentido de terem sido vários os seus centros durante o milénio da sua existência. Mesmo em determinados períodos históricos – e foram vários em Portugal – nos quais a substituição de uma tendência por outra não acompanhou os “progressos” realizados na Europa do centro, a narrativa local não consegue olhar os seus produtos, as suas obras realmente produzidas, sem mergulhar na perspectiva inevitavelmente crítica (e subalterna) a que a comparação sistemática com os outros conduz. Essa perspectiva é comandada por uma noção temporal linear que não contempla os diferentes espaços específicos de enunciação, nem consegue esquecer, não considerar como ponto de referência obrigatório, o que se verificava no centro, na “metrópole”. Hoje a narrativa canónica está em crise, sob suspeita e procura questionar-se sobre as exclusões que produziu enquanto o cânone se constituía como tal. Por isso, os musicólogos críticos do cânone interrogam, por exemplo, a ausência das óperas napolitanas de Rossini do cânone no qual esteve durante largo tempo presente com apenas duas outras óperas. (46)
O espelho está sempre presente mas por vezes está deformado pelas ideias hegemónicas do período moderno: a narrativa habitual das dificuldades de Bomtempo em introduzir em Portugal as formas clássicas vienenses face à predominância do gosto pela ópera italiana parece não ter em conta que Rossini era contemporâneo de Beethoven, mesmo sem ter em conta que a história da autoria Raphael Georg Kiesewetter, publicada na Alemanha em 1834, tinha como titulo A época de Beethoven e Rossini (cf. Taruskin, 2005, Vol. 3: 7).
É a leitura ideológica reconstrutiva que se segue historicamente que retira Rossini do lugar que, mesmo no país de Beethoven, lhe era atribuído ainda em meados do século XIX. Ou seja, neste tipo de consideração existe, na maior parte das histórias da música portuguesa, ou em artigos sobre ela, uma aceitação da leitura reconstrutiva levada a cabo pela história canónica escrita sob a supremacia alemã durante do século XIX – mesmo que por historiadores de outros países – segundo a qual as formas clássicas vienenses representavam a “Europa” enquanto as óperas italianas foram relegadas para o “atraso” vernacular.
Enquanto o mundo musical de hoje vai assistindo à recuperação de obras “caídas no esquecimento”, vai realizando estreias modernas de obras há séculos não executadas – inclusivamente em Portugal – a musicologia portuguesa prossegue a sua análise do passado e, apesar do trabalho já realizado na reconstituição de versões modernas, só recentemente há indícios de reflexões em torno da questão de fundo. Não se pode ignorar a hegemonia anterior, ela própria um facto histórico, mas deve-se igualmente problematizá-la e, sobretudo, produzir um discurso sobre as obras para além da verificação do atraso comparativo. Na sala de concertos a percepção sensivel das obras não o considera como modo de apreciação. (47) Verifica-se uma gradual mas muito lenta aparição nas salas de concertos de obras portuguesas, editadas pela Fundação Calouste Gulbenkian a partir da década de 1960. Tendo estado elas próprias “esquecidas” e ausentes dos concertos durante longos períodos, este processo corresponde às estreias modernas de obras do passado.
A primazia e a persistência do espelho manifesta-se em vários períodos. Assim, encontramos a predominância do antigo vilancico ibérico até ao reinado de D. João V, através da absorção de elementos novos, por vezes com componentes directamente “exóticas”, provenientes do colonialismo português, incluindo a participação de figuras como o negro, o judeu, o escravo, em espectáculos originalmente religiosos, no que hoje se designaria por multiculturalismo. O vilancico e a sua forma foi-se progressivamente tornando barroco, (47) até ao momento de corte instituído pelo monarca através da adopção dos modelos do barroco italiano, da contratação massiva de músicos italianos e da atribuição de bolsas de estudo para os jovens compositores portugueses irem para Roma actualizar-se na nova corrente. (48) Do mesmo modo, a resistência dos compositores portugueses “neoclássicos”49, como Joly Braga Santos e Fernando Lopes-Graça, em aderir aos novos princípios provenientes de Darmstadt após 1960, é paradoxalmente analisada face à emergência em Portugal de um forte grupo de compositores que frequentam esses cursos e aderem à sua estética, não tendo em conta que, noutros países, compositores como Poulenc, Benjamin Britten ou Chostakovitch continuaram a compor independentemente da recente supremacia simbólica e depois prática do serialismo. Os neoclássicos portugueses são vistos como tardios à luz de uma narrativa hegemónica que actualmente começa a ser contestada nos próprios países que a produziram. Mais uma vez se manifesta por parte quer de historiadores, quer da opinião corrente de senso comum, uma perspectiva que se alicerça na eleição do elemento “progressivo” europeu numa dada corrente, em detrimento da própria existência contemporânea na Europa de idênticas orientações, vistas como elemento regressivo e, desse modo, como inexistente ou irrelevante.(50)
Esta perspectiva analítica é claramente devedora de uma concepção hegeliana teleológica da história, e da história da música, da evolução da linguagem musical numa certa direcção forçosamente obrigatória. Essa concepção, aliás, era fortemente utilizada nos argumentos progressivos dos seus adeptos, como Adorno, Leibowitz, Boulez e outros, e ainda hoje faz sentir os seus efeitos na crítica, no ensino e, em certa medida, nas orientações de instituições culturais. O problema principal deste colonialismo interno, alicerçado no passado canónico, será ter-se tornado uma característica de tal modo interiorizada no campo musical em Portugal que os discursos que lhe dão consistência e fixidez acabaram por se reproduzir em épocas sucessivas e por marcar, ainda hoje, as práticas institucionais que regulam a vida musical no país. A primazia da narrativa linear, assente em concepções do progresso, de desenvolvimento da linguagem musical vista de uma forma teleológica, como várias outras formas de pensamento linear hoje altamente questionadas em todas as áreas, produziu narrativas da história da música portuguesa que devem ser, por isso, reexaminadas. Mas, tal como outras áreas, a musicologia feita e escrita em Portugal confronta-se com a musicologia universitária hegemónica. Onde reside essa cultura universitária, quais são os países e as línguas onde vigora a "culture of scholarship" universitária na qual se baseia a produção do eurocentrismo? Para Mignolo, Chakrabarthy, Dussel e Santos, as línguas da cultura universitária moderna – the languages of scholarship – são o inglês, o francês e o alemão. O mesmo se verifica no campo da musicologia.

António Pinho Vargas, in Música e Poder (Almedina, 2011:95-99)

NOTAS
44. Todo este ponto poderá, para alguns leitores, reclamar talvez a leitura prévia da Parte III deste trabalho. A sua inclusão neste capitulo deriva da necessidade de colocar esta problemática em paralelo com as posições de Chakrabarthy. No entanto para os membros do meio musical tal não será necessário uma vez que o discurso aí dominante é conhecido.
45. In “Nationalism”, Grove on line, 2001. Manuel Pedro Ferreira interpelou-me sobre este aspecto afirmando que, em Portugal, apenas no fim do século XIX o modelo alemão se sobrepôs ao francês no Conservatório Nacional. Esta observação, se é importante em si, não muda o essencial relativamente à supremacia da música alemã durante o século XIX no mundo, nem à mudança das várias metrópoles centrais ao longo dos tempos. Cf. Capítulo X, 2.7.5 e seguintes.
46. Ver Gosset, Phillip, “History and works that have no history: reviving Rossini’s neapolitan operas” in Bergeron e Bohlman (1996: 95-115).
47. Caso contrário o melómano informado seria obrigado a ouvir as obras tardias de Bach como “atrasadas” em relação ao seu tempo. A descrição canónica posterior retirou-lhe essa característica – historicamente verdadeira – substituindo-a pelos discursos da “intemporalidade” canónica.
48. Cf. Nery (1997: 91-102).
49. Esta designação, aliás entre aspas, é aqui usada por razões de simplicidade argumentativa. Não quero entrar na discussão da modernidade (ou não) destes compositores. Tal como em Britten e Chostakovitch fará mais sentido falar em tonalidade expandida, mas esta é uma questão técnica demasiado específi ca para se justifi car neste livro o seu desenvolvimento.
50. A questão Peixinho/Lopes-Graça será um exemplo deste aspecto. Cf. Capítulo XI 6.1.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

O conceito de 'mésentente' de Jacques Rancière

O conceito de 'mésentente' de Jacques Rancière parece-me ir bem ao fundo daquilo em que consiste a divergência política, estética ou o que seja. Pode parecer traduzível por desentendimento mas de facto não é. Des-entendimento é um não-entendimento. Ora 'mésentente' não é isso. Rancière explica: "Por 'mésentente' irei considerar um determinado tipo de situação de palavra: aquela na qual um dos interlocutores, ao mesmo tempo, entende e não entende aquilo que diz o outro. A 'mésentente' não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto. É o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco, mas que não entende de modo nenhum a mesma coisa ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa sob o nome da brancura". A 'méconnaisance' é outra coisa. Nessa situação de fala, um não sabe o que diz o outro. Também não é o 'mal entendido' que radica na imprecisão das palavras. Diz-se que as pessoas não se entendem porque as palavras que trocam são equívocas. É um facto que há desconhecimento, mal-entendidos, etc. Agora, segundo Ranciére, "os casos de 'mésentente' são aqueles onde a disputa sobre o que falar quer dizer constitui a própria racionalidade do acto da palavra"  embora ela não se refira apenas a palavras mas mais sobre a situação daquele que fala, a qualidade (social) daquele que tem o direito à palavra. A situação extrema da 'mésentente', para Ranciére,  diz respeito em primeiro lugar, à política. Os momentos em que os que não tem habitualmente o direito à palavra - os dominados - reclamam o direito e tomam a palavra, são os momentos nos quais surge a "política" na sua acepção radical de evento revolucionário que perturba a distribuição habitual do direito à fala. A política no sentido "normal" do exercício do poder por parte daqueles que, aristocrátas ou oligarcas, estão habitualmente no poder, é designado por Rancière, por 'police'. Dadas as conotações que 'police' trás consigo, talvez seja preferível usar política no sentido da gestão corrente dos negócios do estado e do exercicio do seu poder. Aqui verifica-se a divergência justamente sob a forma de 'mèsentente'. Os contentores, dois, ou cinco, ou quantos forem, sabem exactamente o que os outros dizem, simplesmente não lhes atribuem nenhuma importância. Daí que assistir aos debates parlamentares, por exemplo, seja um exercício fatigante de discursos entre parceiros de instituição que não se vêem como iguais, com igual direito à palavra, a não ser na aparência. Para Ranciére, são as aristocracias e as oligarquias habitualmente no poder que consideram 'normal' serem eles a terem e exercerem o poder. A espressão "os partidos do arco governativo" é uma expressão corrente que assinala justamente essa situação de 'normalidade' do poder. Um governo de um qualquer partido da esquerda fora do arco do poder - onde existe um tal governo, sem imediata violência ou fúria bem pouco democrática? - seria o momento próprio de política enquanto evento e perturbação da normalidade: "agora, nós tomámos a palavra". Por isso é que ocorreu tão poucas vezes na história. A normalidade democrática tem sido a desigual distribuição do direito à palavra. Daqui decorre o desencanto com as instituições ou a alternância. Não muda nada de fundamental. Daí que faça sentido reclamar uma outra democracia mais participativa, em que o direito à palavra seja mais amplamente distribuído. Tornar normal aquilo que tem sido raro e, por vezes, não propriamente exemplar.
António Pinho Vargas

domingo, 26 de maio de 2013

Sobre o conceito de poder em Foucault

A utilidade do conceito de poder em Foucault é particularmente importante porque nos mostra que não só o óbvio "poder político do Estado" (etc.) é Poder. Aquele, o poder político do Estado e dos seus agentes (captores ou grandes beneficiários), está actualmente debaixo de fogo e bem.  Este, o poder disciplinar (disseminado em todas as áreas e esferas de actividade, para além do poder do Estado) corre o risco de passar despercebido porque não imediatamente visível e identificável como tal.

Seguem-se alguns extractos de Música e Poder (Almedina, 2011:31-34) que aqui reorganizei de outro modo. Poderá parecer difícil à primeira vista mas não talvez não seja tanto assim. Reclama talvez um esforço inicial mas compensa,

"Quando Foucault afirma que os poderes do Estado são apenas as formas terminais que o poder assume está a sublinhar a existência de muitas outras formas de poder que circulam na sociedade, poder exercido a partir de instituições disciplinares – públicas ou privadas, escolas, hospitais, quartéis, prisões, famílias e fábricas, aquilo que se designa habitualmente como poder
disciplinar, segundo regras, princípios e mecanismos totalmente autónomos do Estado."\

Método:
1. apreender o poder pelas suas extremidades; tomar o poder nas suas formas mais regionais, mais locais, onde ele se prolonga, se investe em instituições, se consolida nas técnicas (Foucault, 2000)
2. estudar o poder no ponto em que está em relação directa e imediata com o seu objecto, o seu alvo, o seu campo de aplicação, no ponto em que ele se implanta e produz os seus efeitos reais. (ibid.: 33)
3. não tomar o poder como maciço e homogéneo – “dominação de
um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe”
(ibid.: 35) – mas como uma coisa que circula, que só funciona em cadeia, que
se exerce em rede".

Definir para reconhecer ou identificar a rede:
4. "O conceito de dispositivo é proposto por Foucault para definir este “agrupamento resolutamente heterogéneo composto por discursos, instituições, estruturas arquitecturais, decisões políticas, afirmações científicas, leis, medidas administrativas, proposições filosóficas, morais e filantrópicas. Em suma, o dito e o não-dito, estes são os elementos do dispositivo: a rede que pode ser estabelecida entre estes elementos” (Foucault, 1994b).

Condição sine qua:
5. "Para Foucault não basta uma boa conceptualização, sendo forçoso conhecer as condições históricas que motivaram a nossa conceptualização.
É necessária uma consciência histórica da nossa presente circunstância.
Foucault insiste que não há um ponto central, um centro único de soberania
mas antes relações de força permanentes mas sempre locais e instáveis.
O poder é omnipresente “porque se produz a cada instante, em todos os
pontos, ou antes em todas as relações de um ponto com outro”.

Aplicação prática:
Por se produzir a cada instante e resultar de "relações de força permanentes mas sempre locais e instáveis" é que reclama forçosamente o nosso esforço da sua identificação enquanto Poder: reconhecer, no quotidiano, todos os dias, o momento no qual ele se manifesta.

António PInho Vargas

segunda-feira, 15 de abril de 2013

A economia destituiu a política e essa é a grande crise política.

A economia destituiu a política e essa é a grande crise política.

Um dos lados que mais (me) perturba na situação actual é o facto de, como resultado da crise dos bancos de 2008, da crise da UE e das suas instituições mal pensadas e pior desenhadas, e ainda da forma brutal como este governo se atirou à governação, empobrecendo e dividindo o país, fracturando fortemente a própria direita, é o facto, dizia, de me parecer que vivo em dois países simultâneos que não tem relação entre si, sem pontos de contacto, como se fossem duas realidades diversas: o do governo e dos seus apoiantes e o dos seus opositores (cada vez mais, sem dúvida, mas muitas vezes impotentes ou sem meios de agir).
Esta fractura que se traduz numa espécie de guerra civil discursiva - na qual tomo parte como posso por um dos lados - manifesta-se frequentemente por uma esquizofrenia de desejos opostos, por leituras da realidade diárias e opostas, de medidas legislativas e discursos violentos de quem tem poder que alternam com apelos à demissão igualmente dramáticos de quem não tem poder. É uma guerra civil à qual falta apenas a própria guerra, como se a representação dela fosse o palco da luta ou o campo de batalha tivesse passado a ser apenas o mediático, o das declarações e, intermitentemente, das manifestações da rua.
A questão é que governar pela força - mesmo que desta ordem "legal" - contra a vontade de largas camadas da população é possível durante um certo tempo mas não é possível de manter "sempre". Até Maquiavel sabia disto. Por isso apelava nem que fosse à "aparência de um afecto" entre o Príncipe e os governados.
Hoje, aqui, não há sombra de afecto, nem sequer sombra de uma representação de afecto. Há representações sucessivas de brutalidade e ameaças veladas de rostos fechados ou esclerosados. Reino da falta total de afecto. A crise da democracia de que muitos falam há longo tempo - inegável - conduziu à crise da caricatura da democracia na qual o poder do dinheiro substituiu tudo o resto, sem saída. Os apelos, os manifestos, as cartas multiplicam-se na Europa, reclamando um mundo onde não se fale apenas de economia e de dinheiro. Onde se possa voltar a falar de projectos de sociedade, de ideias sobre o mundo, de uma felicidade possível, de outros possíveis. Nada parece dar nenhum resultado. A Europa da finança esmaga tudo à volta com a força da Wehrmacht. O lado que bloqueia, paralisa e congela toda a situação é ainda mais forte do que o lado que deseja uma mudança (que tende a evoluir para um desejo difuso de uma mudança "qualquer", fonte de perigos como se sabe). Sinto que descrevo uma guerra à qual só falta ser mesmo guerra. Uma guerra é sempre uma sucessão de horrores. O que se passa hoje é, psicologicamente e não só, como toda a gente sabe, de grande, de enorme violência.
A economia destituiu a política e essa é a grande crise política.

António PInho Vargas

quarta-feira, 20 de março de 2013

Compor


1. António Pinho Vargas (2012) ONZE CARTAS, (início) CARTA 1&2.

Aproveito a colocação da parte inicial desta peça para  tentar - tentar... - tornar clara a minha ideia da liberdade do compositor, derivada do artigo de W.Rihm, On Freiheit, de 1983. Se porventura, na adesão a estes princípios gerais, a minha música passasse a ser muito semelhante à de Rihm algo estaria errado. A liberdade seria uma máscara de uma não-liberdade. Ainda mais profundamente, na querela tonal-atonal que divide ainda o mundo musical desta tradição hoje, esta tomada de posição pela liberdade e pela contingência do acto composicional não significa apenas que "agora" a minha música - como a de outros - pode ser tonal. Outro equívoco. Pode ser tonal se eu "quiser" que seja tonal. Depende. Em certos casos é tonal, ou inclui secções tonais, noutros casos inclui secções atonais e cromáticas. Caso contrário, seria apenas uma opção por um sistema já constituído, sendo totalmente indiferente que fosse cromático a todo o custo ou tonal a qualquer preço. Nem uma coisa nem outra. A música pode ser aquilo que num dado momento, como se ouve na peça (tanto na música como no texto de Calvino) se encontra como "necessidade" e nos permite "constituir-mo-nos neste mundo" como sujeitos. Por isso repito: o mais importante é perseguir no discurso musical "o infatigável trabalho da liberdade" (Foucault).

http://www.youtube.com/watch?v=AzLnVMyXuGM
2. ONZE CARTAS 2012 (final)
O final desta peça é, na minha opinião, avassalador (está também no you tube.) Mas não teria sentido compor uma peça deste tipo, com 11 cartas diferentes, contrastes discursivos sucessivos, tanto no que é dito como na música, com 11 momentos avassaladores. Para além de eu não conseguir fazê-lo, a própria razão de ser da peça, a sua história, a sua ideia, contrariavam esse desígnio. Cada secção, cada "momento", cumpre uma função num discurso global. Chama-se a isto, na minha opinião claro, estrutura narrativa e ela implica uma respiração da forma. A beleza obriga à presença de outras formas de beleza, ou mesmo de não beleza.

http://www.youtube.com/watch?v=7JuxpfMhRuk&list=UUCQkYiK3HEiWo1_9QQ0Lcwg&index=15

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

António Pinho Vargas Requiem (2012) 5. Lacrimosa. Coro e Orquestra Gulbenkian dir. Joana Carneiro.


 António Pinho Vargas Requiem (2012)
5. Lacrimosa. Coro e Orquestra Gulbenkian dir. Joana Carneiro.

Coloco aqui esta secção, Lacrimosa, do Requiem, como forma de agradecer aos cantores, aos músicos, à joana Carneiro e ao Paulo Lourenço o seu extraordinário trabalho, às cerca de 2.700 pessoas que estiveram presentes comigo nos 3 concertos daqueles dias, com atenção, emoção. generosidade e entusiasmo. Não acontecem muitas vezes na vida das pessoas dias como aqueles para mim. Faço-o como agradecimento múltiplo, como uma oferenda; não se pode pedir a um compositor nada de mais fundamental que a sua música. Não há na vida das pessoas muitos dias como aqueles foram para mim. Espero que venha a existir o CD com esta obra para lhe dar o "potencial democrático" que Walter Benjamin reconheceu na "arte da era da reprodutibilidade técnica". Obrigado.
António Pinho Vargas
http://youtu.be/uRQzrvmpfHc

sábado, 5 de janeiro de 2013

"Estás a sofrer?"


Público, sábado, 5 JAN 2013: 12-13 - na série 13 pensadores: Que valores para 2013?

"Estás a sofrer?": A solidariedade e os diferentes tempos simultâneos em que vivemos

Como considerar a questão da solidariedade? Como é possível conduzir uma vida com base nesse conceito? Que formas práticas pode ela assumir? Julgo que há duas formas de pensar este problema.
Podemos considerar, em primeiro lugar, que a pergunta fulcral para desencadear solidariedade é a formulada por Richard Rorty: "Estás a sofrer?"
Em segundo lugar, há uma acepção mais propriamente política, na qual se encara o sofrimento humano como "a contradição que existe entre a experiência da vida quotidiana, em muitas partes do mundo, e a ideia, o horizonte, de uma vida decente" (Santos, 2004). Em que mundo vivemos, sob que hegemonia? Para Boaventura de Sousa Santos "o neoliberalismo é uma das utopias conservadoras para as quais o único critério de eficácia é o mercado ou as leis do mercado." Qualquer outro critério ético é desvalorizado como ineficaz. Nega-se radicalmente a existência de alternativas à realidade do presente e procura-se desacreditar quaisquer alternativas precisamente por serem utópicas, idealistas, irrealistas" (Santos, 2011). Esta "ética" da eficácia capitalista, é avaliada de forma peculiar pelos detentores do poder - continua a ser vista pelos conservadores como a única eficaz, mesmo quando falha totalmente - e é justamente no meio de um processo violento desta natureza que estamos na passagem para 2013, em Portugal. Na Europa, que se move numa lentidão institucional exasperante e que, no essencial, se rege pelos mesmos critérios e pelos mesmos valores conservadores neoliberais, radica a origem do imenso sofrimento humano que decorre do desemprego galopante, dos salários cada vez mais baixos para as camadas mais pobres, do aumento das desigualdades, do desmantelamento do Estado social, visto como insustentável, de acordo com esse critério de análise - o mercado como única medida de eficácia - e, desse modo, aumenta-se o sofrimento humano de milhões de pessoas de forma brutal e persistente.
É forçoso sobrepor os dois planos: ter em conta a pergunta de Rorty "Estás a sofrer?" e pôr fortemente em questão a pretensão de única via possível atribuída aos "mercados".  É óbvio que há alternativas, como houve com Lula da Silva no Brasil - muitos milhões de pessoas retirados da pobreza - como há, mesmo nos EUA, com Obama, como se viu no Obama Care, apesar do tremendo combate que teve de travar com a direita no quadro do complexo sistema polítco americano. Mas, na Europa, segue-se o caminho inverso: empobrecer as populações e retirar-lhes muitos dos sistemas sociais de apoios estabelecidos. Entre as consequências da acção deste governo e das acções comandadas pela troika Europeia e o FMI - pretexto ou não - verifica-se um regresso da pobreza de forma nunca vista desde o regime de Salazar. Mas as alternativas políticas que existem, ao contrário do que o discurso hegemónico quer fazer crer, não respondem, por si só e neste momento particular, à pergunta de Rorty. Vejamos a questão considerando os diferentes tempos simultâneos em jogo.
Do ponto de vista das necessidades reais do ser humano em sofrimento, o seu tempo existencial de vida contínua, não se pode medir apenas no tempo médio das alternâncias politicas, nem no tempo longo das crises estruturais.
O tempo da crise é o tempo das crises económicas - que podem durar entre vinte cinco e cinquenta anos - sem que, no entanto, a sua presença na actualidade mediática deixe de nos transmitir a sensação de que tudo está por um fio: um tempo médio ou longo, narrado como tempo frenético. Daí a estranha sensação de uma imobilidade de fundo e de uma superfície agitada e frenética. A luta política entre os vários responsáveis pela política global prossegue com o anúncio de medidas para combater a crise que se revelam ineficazes para combater a crise e são mesmo criadores de crise. Aquilo que faz a actualidade das notícias manifesta-se de acordo com os critérios do tempo frenético dos media. Também os famosos "mercados" financeiros - lugar por excelência da luta dos especuladores - é igualmente regulado pelo tempo frenético. Na especulação financeira, num só dia, biliões de dólares ou euros podem mudar de lugar, de proprietário, de banco, de multimilionário. O tempo da economia, no sentido da acção humana produtora de bens e mercadorias e das suas trocas, é muito mais lento do que o movimento acelerado da troca de capitais. A tecnologia e a internet permitiram essa aceleração brutal.
Mas para um desempregado - aí colocado pela voragem destrutiva das medidas de austeridade, até aqui o único remédio erroneamente proclamado para a crise - o tempo que domina a sua vida é existencial e vive-se de acordo com o ritmo da pulsação cardíaca, ou seja, não pára, não tem tempo para parar; é regulado pela necessidade de encontrar todos os dias, no pior dos casos, uma forma de sobreviver, uma forma de comer, uma forma de manter a vontade de viver. É, desse modo, o tempo da existência quotidiana dos humanos; em cada minuto, em cada dia, pode passar do espanto para a revolta, da fúria para um sossego de fadiga, da luta convicta para a submissão e a desistência. É um tempo determinado pela crise mas que obriga muitas pessoas a acções diárias de sobrevivência: como vou arranjar dinheiro para a casa, para dar à mãe, para dar aos filhos, para pagar a escola, onde vou viver depois de ir entregar a casa ao banco, etc.
Os políticos, os cientistas sociais, os economistas, os intelectuais, vivem numa espécie de tempo intermédio: analisar, escrever, decretar, interpretar diariamente aquilo que envia sinais provenientes da profundeza do tempo longo da economia, da rapidez dos movimentos rápidos das bolsas financeiras e, nos casos mais lúcidos, interpretar igualmente os sinais inquietantes enviados para o ambiente, pelos movimentos lentíssimos do planeta, na sua rejeição imparável da agressão violenta dos humanos das sociedades capitalistas industriais do mundo. A acção deste vasto grupo, em particular dos políticos, sendo diária, só manifesta mudanças de vulto nos períodos eleitorais-atualmente-carnavalescos ou nos períodos de crise política aparente ou eventual. Daí, desse tempo intermédio da democracia-actualmente-existente, saem, por vezes, sinais de alguma esperança para os que sofrem a crise e sinais de preocupação para os que lucram com ela. Os sinais são os mesmos; a sua interpretação é que varia conforme são vistos por pobres, motivados pela pulsão da sobrevivência, ou por ricos, motivados pela pulsão destrutiva da acumulação de capital. Esta divisão não é retórica, é real.
Esta multiplicidade de tempos simultâneos parece mostrar que a tese de Walter Benjamin de que, nas revoluções, "o tempo sai dos eixos" - de Hamlet, "the time is out of joint" - se tornou o nosso tempo diário "normal", tal como na sua outra brilhante intuição de que nas sociedades capitalistas "o estado de excepção é a regra". Na crise todos estes tempos se misturam e interligam.
Entronca neste ponto a divergência entre duas tradições de solidariedade: a católica progressista - existente desde o antigo regime - sob múltiplas formas e a solidariedade no sentido político mais lato, vista como horizonte político futuro de uma sociedade mais justa. Esta visão política, sobretudo a da tradição marxista-leninista, tinha em tempos uma tal confiança no determinismo histórico, que punha em causa toda e qualquer accção passivel de ser criticada como "reformista", ou mesmo, "solidária". Corria, em 1970-71, entre os movimentos associativos estudantis de Lisboa, uma anedota, provavelmente inventada - mas lúcida na sua invenção - sobre um dirigente associativo do qual se dizia que dava pontapés no engrachador para agudizar as contradições de classe e, desse modo, favorecer a vinda do socialismo, o desenrolar mais rápido do processo histórico já conhecido. Hoje sabemos que não existe determinismo histórico algum que conduza necessariamente a um destino já previamente conhecido. Apenas a acção das pessoas do mundo permitirá sair desta crise pelo lado da emancipação e da solidariedade.
Nesse sentido, regressa aqui uma forma de tempo frenético que talvez afecte também os partidos das esquerdas: a luta parlamentar diária, a luta pelo poder entre si e a luta contra o governo de direita que absorve, de forma diária, a sua concentração e a sua acção, imersa na vida política aparentemente rápida. Essa actividade, certamente importante, poderá, talvez, fazer esquecer o tempo presente em favor do tempo médio ou longo, no qual se trava a luta fundamental que comanda a evolução das sociedades. Ora, para muitas pessoas em sofrimento, não há tempo para esperar pela História.
Sendo certo que, durante o regime de Salazar, "a caridade cristâ" pôde ser vista como uma forma de eternizar o estado de coisas e que essa memória ainda nos afecta, o facto é que, no seu tempo existencial de vida quotidiana, os excluídos, os pobres, os desempregados, os que recorrem ao Banco Alimentar e às Misericórdias, às Sopas dos Pobres, etc., não têm tempo para esperar pelo desenlace da luta política, pela queda do governo, pelo fim da crise, ou outras projecções que se podem desejar ou especular.
A atitude a tomar será considerar que, enquanto não chega o momento da rebelião - como passo para "o momento da solidariedade na construção de uma tópica para a emancipação" - e se está no momento do sofrimento humano, é necessário considerar a pergunta de Rorty e responder-lhe com acções imediatas, independentemente dos eventuais pressupostos ideológicos que presidem àqueles que as desencadeam. É necessário sobrepor os dois momentos: o momento político das lutas de médio e longo prazo e o momento de solidariedade activa face ao sofrimento humano, evitanto colocá-los como alternativas opostas e contraditórias entre as quais é forçoso escolher.   
Agir agora: "Estás a sofrer?"

António Pinho Vargas
Compositor, músico, investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Rorty, Richard (1992), Contigência, Ironia e Solidariedade. Presença
Santos, Boaventura de Sousa,  (2004), A Crítica da Razão Indolente. Afrontamento
Santos, Boaventura de Sousa, (2011), Ensaio contra a autoflagelação. Almedina