As viagens e os erros
Todos temos uma noção mais ou menos vaga de que a percepção daquilo que vemos, do que nos é dado a ver, muda de acordo com a nossa posição de observador. Se eu estiver de pernas para o ar, as coisas à minha volta mostram-se de uma forma descentrada e invertida; deitado no chão e de olhos fixos no ar a diferença é menor mas, mesmo assim, os ramos das árvores apresentam uma peculiar distribuição espacial. De novo de pé tudo volta à familiaridade habitual excepto se a esperiência nos tiver afectado a confiança nos sentidos. Deste exercício instrutivo toda a gente pode concluir coisas idênticas sobre a importância do lugar e da posição específica da qual se olha o mundo. Mas quando se trata de valores e de construções ideológicas, subitamente, ninguém tem dúvidas sobre a indiscutível certeza do seu olhar habitual. Será deste processo de interpretação do mundo a partir das possíveis variações de lugares e posições que afectam as nossas visões do mundo que partirei. O tema será, por isso, a viagem e o erro.
1. Nasci numa casa em Vila Nova de Gaia que já aparece em litografias dos finais do séc. XIX, localizada onde a Ribeira do cais de Gaia começa a subir a encosta. De lá vê-se o rio e a Ponte de cima para baixo e o Porto em frente. Era bonito. Em 1975 fiz uma viagem de carro a Paris com 3 amigos passando por Salamanca, Barcelona, Arles, à vinda por Chartres, San Sebastian e Burgos. Quando voltámos e dei de frente com o mesmo sítio que conhecia desde que nasci, percebi que nunca tinha olhado para ele da perspectiva que quem viu outros lugares. Não era só bonito; era inacreditável e único.
2. Muitos anos mais tarde decidimos levar Max von Egmond – o evangelista da Paixão segundo São Mateus gravada por Leonhardt – a jantar à Ribeira. Como conhecia bem o local decidi descer a Rua General Torres em Gaia para lhe mostrar a perspectiva dali. Max disse aquilo que diz a maior parte das pesssoas quando o vê pela primeira vez. Mas já no restaurante disse mais: Venho a Portugal em Setembro há mais de seis anos, apanho sempre daqui o avião para Amesterdão, porque é que ainda ninguém me tinha trazido aqui? Porque é que não me tinham mostrado isto?
3. Alguns anos depois alguns músicos de Lisboa meus amigos foram ao Porto tocar duas peças minhas. Decidiram ir passear para ver a famosa Ribeira. Disseram-me depois algumas coisas. Tinham ido pelo túnel. Quem é que teve a ideia de fazer aquele túnel ali? Era horrível. O próximo passo do passeio tinha sido a contemplação do esgoto que vai parar ao rio mesmo por baixo da Praça. Também era horrível, toda aquela porcaria a sair dali e os peixes num combate feroz pela maior quantidade de merda disponível.
4. Moral desta história: a realidade está lá em todo o seu esplendor de encantamento e merda. Aquilo que determina o olhar, a sua qualidade, é a posição do observador em relação ao mundo. O olhar efectua uma selecção com base no que tem dentro de si, da sua capacidade de ver. No mesmo sítio onde aquele holandês escolheu ver o sublime aqueles portugueses escolheram ver o túnel e a merda. Pode-se escolher entre o horizonte largo e o foco estreito.
5. Na actual circunstância histórica, ser músico é estar permamentemente entre esses dois pólos. Há coisas que vistas de Portugal parecem ser de uma maneira, de fora parecem de outra e cá, depois de lá, ainda de uma outra. Depois das viagem feitas muitos dos mitos imaginados caem fragosamente da construção “sublime” laboriosamente construída pelos países do centro – aqueles que Eduardo Lourenço designa de “mais europeus do que o resto da Europa”- e que todos recebemos desde muito cedo como “lá fora”, como “uma imaginação do centro”. Como é que se pode conceber que cheira mal no metro de Paris a ler o “Le Monde de la musique”, ou que cheira mal mesmo cá fora em Londres a ler o Grammophone, ou nos canais de Amesterdão a ler um catálogo de uma exposição de Van Gogh?
7. A vida é uma aprendizagem interminável da capacidade de olhar o mundo. As viagens permitem a comparação dos horizontes e das merdas. Uma das coisas que mais me obceca actualmente é, perante a possibilidade de ver o sublime, escolher ver a merda. Julgo que, por vezes, não nos resta outra hipótese. A incapacidade colectiva de articular qualquer relação com o sublime – refiro-me à vida cultural portuguesa no seu todo –vai forçando os artistas à redução progressiva do seu horizonte, inicialmente exaltante, à observação atenta da qualidade das merdas.
8. Protestos? Ouvem protestos? Se ouvirem, isso deve-se à grande capacidade que temos para elaborar historiografias míticas. Descobrir a Índia “sem sair do meu quarto” como dizia o grande poeta. É fácil acreditar na historiografia mítica da música portuguesa: é a história daquilo que não existe senão como imaginação do que podia realmente existir. Apesar de existir a matéria (as obras) não existe o que a concretizaria enquanto realidade relevante. Pareço profundo? Obtuso? Abstruso?
9. Sobre ligações entre as viagens e os erros: por exemplo, enganei-me quando vim da Holanda em 1990 e pensei que um dos problemas da música portuguesa da tradição europeia nas últimas décadas tinha sido, e era ainda, a hegemonia do pensamento pós-serial no ensino, nas práticas institucionais e nos discursos críticos. Não era. O caso era muito mais grave; hoje essa supremacia já não existe, pelo menos daquela forma que antes queimava o terreno à sua volta. Talvez subsistam ainda vestígios nas práticas das instituições culturais com maior indiferença ao mundo (o vento, lá fora...) e grande capacidade de re-construção ideológica a partir daquilo que não é verdade. Os problemas permanecem.
10. Em 1989 o meu grupo de jazz fez 5 concertos em Inglaterra. organizados por Portugal 600 para celebrar o famoso tratado. Ainda tenho lá em casa algumas cartas que me escreveram ingleses a pedir discos porque não os encontravam lá à venda. Nunca houve nem nunca lhos enviei. Os 30 LPs que levei venderam-se todos nos dois primeiros concertos. Micheal Collins - director dessa instituição que levou muitos músicos portugueses a Inglaterra – marcou-me um almoço com David Jones: Sim senhor, já sei que correu muito bem, produzo-vos um concerto em Londres, numa sala média; só preciso de ajuda da editora”. Isso devia querer dizer dinheiro ou apoio mas não sei exactamente de que tipo. Fiz o que devia: guardei os números, em Lisboa contei a conversa e passei os telefones. Não aconteceu nada, como é óbvio. Soube que vários músicos passaram pelo mesmo. Não sabia ainda que as editoras, especialmente as multinacionais – tal como as escolas de música – desempenham um papel bem determinado: são agentes locais da distribuição e venda do que as sedes centrais produzem. Só por equilibrismo atlético querem ou podem ir além disso. Já mais recentemente os vários casos de “sucesso internacional” – entre aspas por causa da
tentação mítica – de alguns bons artistas portugueses seguidos de um regresso a casa e às dificuldades habituais confirmam que o fundo da questão está algures noutro plano. Uma parte do poder exercido pelas hegemonias que regulam o sistema das artes assenta em três aspectos: primeiro, no facto dos lugares de decisão real serem sempre longe; segundo, na eficácia dos agentes locais que acreditam ser cosmopolitas; e terceiro, no facto de todos aceitarmos isso como “natural”.
12. Depois das minhas viagens pelas instituições culturais como assessor nunca mais irei recuperar a inocência. Tem-se visto René Martin, de condecoração de Sampaio ao peito – nunca vi gesto simbólico mais significativo dos valores que regulam a nossa actividade cultural – a pôr advogado contra o CCB. Eu bem fazia o esforço pseudo-cosmopolita de pensar, mas a música, a música ela própria, justifica tudo. Outro erro. Não justifica nada. Como se vê: A ideia foi minha! Roubaram-me a ideia! Entre o pólo sublime da música e o pólo da merda do dinheiro envolvido, não há hesitação. A falácia pedagógica faz-me rir.
11. Fiz uma conferência sobre “O esquecimento da geografia” no Collège Internationale de Philosophie em Paris a convite de Maria Filomena Molder em 2006 e versei a questão das novas ontologias da música a partir da existência da gravação e algumas
consequências que daí decorrem para as “minor languages” de que falam Steiner, Deleuze e Foucault. No fim um espectador perguntou-me o seguinte: sendo eu um compositor português como via a importância do fadô para o meu trabalho. Há perguntas para as quais nunca se está preparado. Cometi mais um erro e respondi seriamente à pergunta. Já demasiado tarde, pensei que devia ter respondido que era absolutamente idêntica à importância de Charles Aznavour para Pierre Boulez. Gosto de Aznavour, devo dizer. Portugal, visto de Paris, deve tornar-se um estereótipo muito dificil de compreender nesta dialéctica sem síntese entre os horizontes do sublime, dos túneis e da merda.
António Pinho Vargas, Fevereiro 2007