Diz o texto que anuncia o concerto Inaugural da Orquestra Metropolitana desta temporada:
"O percurso criativo de Magnus Lindberg é frequentemente demarcado numa linha de evolução que se estende deste a segunda geração das vanguardas modernistas do pós-guerra a uma matriz neoclássica com raízes na primeira metade do século XX. Pelo meio, assinala-se o período em que assimilou as texturas tímbricas e harmónicas da música espectral. Mas o compositor finlandês, nascido em 1958, não se reconhece na simplificação desta leitura: […] a «pergunta original» pode permanecer sempre a mesma."
Este texto do programa do Concerto da Metropolitana, dia 17 de Setembro de 2017, com Pavel Gomziakov, solista no Concerto nº 2 para Violoncelo, dir. Pedro Amaral chamou a minha atenção. Salvo qual comparação totalmente descabida (Lindberg faz parte da elite dos 'world-class composers' e esse não é o meu caso) foi sobretudo a descrição do seu percurso que me suscitou interesse.
Porquê? Desde o meu Requiem de 2012 até aos 2 Concertos para Violino e para Viola (2016) foi-se acentuando um caminho, já antes manifesto em Six Portraits of Pain - na verdade também um concerto para Violoncelo - por exemplo, em direcção àquilo que sobre Lindberg é dito: "uma matriz neo-clássica". Neo-clássico foi muito tempo um quase-insulto nos nossos meios pós-50
(pós-60 em Portugal). Pelos vistos deixou de ser e ainda bem. Um insulto
nunca é inteligente, então isso é positivo. Abre mundo e não o fecha. Outra designação que poderia ser usada, seria viragem pós-moderna, dado o facto de haver, desde 1980, vários outros compositores, mesmo da segunda geração das vanguardas do pós-guerra, que tiveram idênticas viragens (por exmplo Ligeti, Penderecki, Gorecki, para não falar de Andriessen com De Staad em 1977). Tanto um termo como o outro marcam momentos de corte com modernismos e, desse ponto de vista, foram igualmente usados como insulto por modernos (e seus representantes) renitentes à mudança, um grande, um enorme paradoxo em si mesmo. A pequena e ilustre lista mostra que nem todos o foram.
Em todo caso aquilo que mais me diz respeito é menos o neo-classicismo de per si, mas a necessidade de reconstituir, no meu trabalho, uma outra ideia da história da música do século XX, e nesse sentido uma superação das anteriores narrativas e das suas categorias definidoras. Em última análise conhecer o passado a partir da própria música feita, composta, existente e muito menos a partir das anteriores determinações que presidiram à distribuição dos compositores pelos diferentes grupos estilísticos. Esta distribuição foi feita e impôs-se nos discursos correntes. Nesse sentido faz parte a realidade, esse facto enquanto tal. No entanto entre o real da descrição antiga e o real das obras compostas encontro a meu ver, uma diferença abissal. Como cada um de nós decide por si como vê o mundo, o campo e a música ela própria, há longos anos que fui constituindo a minha radical dissidência face às narrativas dominantes. Este facto, só por si, alimenta, quer o que faço, quer a solidão do meu olhar, perante aquilo que é dito e repetido em relação ao passado.
Nós, vamos pensando. Vamos ouvindo a música dos outros que conhecemos. Vamos vendo como é descrito e recebido o nosso trabalho. Lindberg recusa a simplificação, como muitos outros o fizeram muitas vezes no passado e ainda hoje. O vivido é sempre mais complexo (e rico) do que as 3 palavras-estilos-técnicas que surgem no texto. Daí o facto de Lindberg não se reconhecer na descrição e sublinhar-se no texto "a pergunta original" como o factor unificador que sempre existe. As duas primeiras fases de Lindberg, aceitáveis no que respeita à inserção em grupos, embora não determinantes em relação a muitos aspectos da sua música, não se aplicam no meu caso, da mesma forma nem de modo nenhum. O meu percurso foi complexo (as fases não são muito nítidas, nem estáveis) muito inquieto e afastado dos centros excepto quando alguma obra viajou (por isso, como que um percurso 'imaginário' ou apenas local). Devemos ser lúcidos acerca disso, mesmo sabendo que as obras feitas existem do mesmo modo para todos, independentemente do seu destino e do seu alcance geocultural, existem tal como são, em absoluta indiferença em relação a este outro aspecto.
Em todo caso aquilo que mais me diz respeito é menos o neo-classicismo de per si, mas a necessidade de reconstituir, no meu trabalho, uma outra ideia da história da música do século XX, e nesse sentido uma superação das anteriores narrativas e das suas categorias definidoras. Em última análise conhecer o passado a partir da própria música feita, composta, existente e muito menos a partir das anteriores determinações que presidiram à distribuição dos compositores pelos diferentes grupos estilísticos. Esta distribuição foi feita e impôs-se nos discursos correntes. Nesse sentido faz parte a realidade, esse facto enquanto tal. No entanto entre o real da descrição antiga e o real das obras compostas encontro a meu ver, uma diferença abissal. Como cada um de nós decide por si como vê o mundo, o campo e a música ela própria, há longos anos que fui constituindo a minha radical dissidência face às narrativas dominantes. Este facto, só por si, alimenta, quer o que faço, quer a solidão do meu olhar, perante aquilo que é dito e repetido em relação ao passado.
Nós, vamos pensando. Vamos ouvindo a música dos outros que conhecemos. Vamos vendo como é descrito e recebido o nosso trabalho. Lindberg recusa a simplificação, como muitos outros o fizeram muitas vezes no passado e ainda hoje. O vivido é sempre mais complexo (e rico) do que as 3 palavras-estilos-técnicas que surgem no texto. Daí o facto de Lindberg não se reconhecer na descrição e sublinhar-se no texto "a pergunta original" como o factor unificador que sempre existe. As duas primeiras fases de Lindberg, aceitáveis no que respeita à inserção em grupos, embora não determinantes em relação a muitos aspectos da sua música, não se aplicam no meu caso, da mesma forma nem de modo nenhum. O meu percurso foi complexo (as fases não são muito nítidas, nem estáveis) muito inquieto e afastado dos centros excepto quando alguma obra viajou (por isso, como que um percurso 'imaginário' ou apenas local). Devemos ser lúcidos acerca disso, mesmo sabendo que as obras feitas existem do mesmo modo para todos, independentemente do seu destino e do seu alcance geocultural, existem tal como são, em absoluta indiferença em relação a este outro aspecto.
Identifico-me com a frase sobre "a pergunta original". É verdade, permanece sempre, sendo as várias respostas que variam nas nossas vidas individuais. Dito isto, quero sublinhar este lance discursivo totalmente novo neste campo. Penso, não obstante, que essa música do antigo insulto, a neoclássica de 3 ou 4 compositores - a minha pequena escolha, alargada historicamente para trás (incluo o Schoenberg das 5 Peças para Orquestra e Mahler, ou seja “atonalidade livre” no primeiro e “tonalidade livre” no segundo) parece-me constituir uma constelação mais rica de potencial (para mim) do que grande parte da posterior, mau grado a qualidade que esta possa ter (e tem). Cada um de nós escolhe o seu caminho e traça a sua própria genealogia. Neste sentido quero precisar dois pontos.
Schoenberg e a passagem da sua fase da atonalidade livre para a fase seguinte - dodecafonismo serial - foi vista e descrita como "uma necessidade histórica". A raiz hegeliana e marxista desta perspectiva salta à evidência. Na minha opinião, já expressa no texto para o CD de Madalena Soveral com a sua Obra Completa para Piano, esta visão é discutível. Tratou-se certamente de uma opção do compositor sob vários tipos de determinações que nesse texto descrevo parcialmente. Mas essa opção, legítima como é óbvio, foi interpretada, transformada, lida, por Adorno e os seus seguidores, como obedecendo à referida necessidade, ou seja, uma raiz inevitável da seta do tempo histórico. Sabemos as consequências desse historicismo na esfera política que, aliás, emprestou muitos dos seus conceitos aos discursos estéticos dessa fase. Na dialéctica entre raízes e opções, inclino-me para a segunda e julgo que os discursos posteriores - sobretudo a 1945 - interpretaram a sua música esplêndida da fase atonal livre à luz da evolução posterior. Não consideraram em nenhum momento que poderia não ter sido desse modo. Outros compositores modernos dessa fase histórica e seguintes, não seguiram essa passagem para o serialismo então dodecafónico. O modernismo, tal como o pós-modernismo e o neo-classicismo foram todos sempre e todos eles designações que ocultaram a extrema diversidade interna de cada "estilo" assim designado. Nunca foram "estilos" homogéneos ou blocos sem divisões internas entre as várias práticas que os olhares posteriores lhes atribuíram. Este é dos principais problemas dessas narrativas. Cada um desses "estilos" - usemos os termos - teve a sua razão de ser, em cada momento, sendo as diferenças internas resultado das opções individuais dos homens que compuseram nesses diversos tempos e foram agrupados sob esse termo simplificador. Vejo assim a sua fase atonal como carregando um enorme potencial de futuro, muito para além daquela que foi a sua opção particular. Do mesmo modo, a maravilhosa música de Mahler, recebida com reservas no seu tempo, mesmo se admitindo a enorme estatura do compositor, radica no facto do seu carácter pós-moderno avant la lettre que caracteriza a sua música. Justamente o aspecto que levantava perplexidades aos vienenses, ou seja, a junção numa mesma obra, sublinho, de elementos da grande tradição sinfónica, com elementos de música popular daquela região da Europa, alvo da suspeita que era própria dos melómanos de Viena - suspeição que prosseguiu no tempo até hoje sob outras e variadas formas - torna Mahler uma enorme inspiração para este tempo.
Deste modo tracei ao longo do tempo uma linha apenas para mim próprio e nem sequer a linha foi estável. A minha linha com 40 ou 50 anos era diversa da que foi sobrando hoje, cada vez mais pequena, mais nuclear. Tal como os outros mudei. As categorias classificativas dos discursos canónicos não terão grande problema comigo. Conto pouco - e julgo que contamos pouco, em geral. Quer isto dizer uma aceitação? Não me parece. É mais uma constatação de facto na qual embatem todos os argumentos possíveis. O "mundo musical" desta prática, diga isto o que disser, não pode mudar sob pena de se dissolver.
António Pinho Vargas.