quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Os dois erros mais frequentes (que irão prosseguir)

O erro - sim penso que é um erro - mais frequente nas conversas sobre músicas do nosso tempo - de todos os estilos - entre compositores e melómenos, mais ou menos especializados, é confundir vocabulário ou "estilo" com discurso musical. 
Na realidade verifica-se neste nosso meio uma extrema dificuldade de compreender verdadeiramente este aspecto. Ao fim de todos estes anos começo a convencer-me de que tudo o que tenho dito é totalmente inútil, face à força das opostas convicções muito generalizadas, verdadeiras doxas, ideias fixas e não interrogadas.

A questão é relativamente simples de explicar. Poderia dizer-se que a querela fundamental seria a tonal-atonal. Julgo que vai mais longe. Vamos a um concerto, começa um peça musical e ao fim de pouco tempo pode-se identificar, por exemplo, se ouvimos acordes complexos como aqueles de 12 sons - não propriamente seriais - como o primeiro acorde da Sinfonia de Berio ou os frequentes casos de musica de Lutoslawski com idênticos usos do total cromático embora distribuído no registo de acordo com algumas regras intervalares (do tipo sobreposição dos 3 acordes diminutos que sobrepostos totalizam as 12 notas). Esta identificação pode provocar imediatamente dois ou três tipos de reações: a primeira por parte dos que apenas gostam de música tonal - tonal do sistema tonal questão a que voltarei - será pensar: "que horror". A segunda reacção-tipo, será a oposta: "que maravilha". A terceira, uma espécie de subdivisão deste segundo grupo, será: "bom, é cromático, não é mau, mas não é suficientemente radical".

Devo acrescentar que o dado inicial que descrevi - "vamos a um concerto", etc - não corresponde inteiramente à realidade. O conhecimento daquelas obras e de muitas outras, resulta muito mais frequentemente da audição prévia de discos há muitos anos.  O que se traduz, do mesmo modo, numa pré-concepção já adquirida, já decidida, já formada através da audição dos discos escutados amiúde com a deferência da aprendizagem. Apenas nas estreias de obras ou na audição em concerto de obras das quais nunca se ouviu um disco se irá verificar literalmente a situação que descrevi: "vamos a um concerto", etc.

O que pretendo pôr em relevo é o facto de todos estes casos serem  na realidade manifestações de uma  ou outra determinada ideia do que deve ser a música, uma categoria, um opção à qual se aderiu previamente e que se constitui como obstáculo e resistência a uma audição livre dos preconceitos formados por cada um, uma audição aberta ao devir de uma obra, uma audição capaz de passar do estádio primário da identificação de um vocabulário ou de um estilo, para se elevar à capacidade de ouvir um discurso musical, independentemente dos aspectos referidos.

A questão volta a ser simples de descrever. É que, em qualquer caso e sempre para além do vocabulário ou do estilo, aquilo que está sempre presente, que caracteriza e define como única uma obra musical não é a sua pertença a esta ou aquela corrente ou orientação mas o seu discurso, a sua produção de sentido, a sua existência como obra de arte diferente de todas as outras.

É no discurso musical que uma obra se realiza plenamente, mesmo aquelas que foram compostas em épocas passadas de "common pratice", épocas em que muitos compositores usavam linguagens musicais com base num conjunto de princípios partilhados entre muitos. Mesmo nesses casos não é certamente no vocabulário nem no estilo (colectivos) que se pode encontrar aquilo que é absolutamente único numa obra determinada.

No entanto, apesar de ter escrito várias vezes a palavra simples para descrever a minha posição, tenho a total convicção da inutilidade dos meus argumentos. O conceito de hegemonia aplica-se totalmente neste caso. O modo-comum-de-ouvir-música e de-estar-no-mundo-musical é o oposto daquele que defendo e foi-se constituindo ao longo de tempo sendo hoje completamente hegemónico.

Em segundo lugar e do mesmo modo - ou seja, em total isolamento e derrotado à partida - encontramos nos discursos que circulam amplamente nas sociedades a repetição dos nomes dos compositores como unidades sacralizadas. Deste modo ouvimos dizer Beethoven, Mozart, Schumann, Schoenberg, Boulez ou Ligeti todo o tempo.  São esses os seus nomes de facto. A unidade criada em torno do nome é que é forçada.

Uma vez que prossigo, como uma espécie de fantasma do Quixote, uma defesa das causas perdidas, de cada vez que oiço essa referências pergunto: "Mas qual deles?" O que esta pergunta tenta interrogar é a óbvia existência de mudanças, de fases, de momentos de grande esplendor criativo e de outras de alguma dificuldades ou dúvidas, ou seja, a evidência do carácter humano destes homens, da sua existência num mundo que interferiu e interagiu com eles, das diferentes respostas que foram capazes de dar em cada fase das suas vidas, até chegar mesmo a períodos de cortes ou mudanças radicais.  Estes são factos da realidade das suas vidas e das suas diversas obras. No entanto, apesar desta evidência lá vem a cada virar de esquina o nome.  Então de quem (e de quando) se está a falar quando se diz um destes nomes?
Dizer apenas o nome, tanto de Beethoven (será um dos primeiros concertos ou uma das 3 últimas Sonatas?) como de Boulez (será o dos anos 50 ou aquele depois de Répons?) como de Schumann (será Diechterliebe, Pappilons ou uma das Sonatas mais tardias?) ou de Ligeti (será o que compunha na Hungria, o que vivia em casa de Stockhausen e compunha Atmosphéres, ou o compositor dos Estudos para piano ou ainda dos últimos concertos para Violino ou para Trompa?) As perguntas não terão fim para quem conhece os diferentes percursos criativos e de vida.  As músicas destas fases são muito diferentes. Dizer o nome é pouco como se pode ver.
Na verdade é o nome - que embora exacto é assim tornado quase inumano - que permite aos melómanos, aos músicos, aos críticos, aos professores de música, adquirirem uma espécie de segurança de identificação sagrada que lhes assegura a elementar elocução do nome! Torna-se tudo mais fácil para toda a gente. Por isso é que Taruskin escreveu um capítulo com o título Beethoven e "Beethoven". Como esforço para demonstrar a diferença entre o homem e o mito entretanto criado, socialmente construído.

Quer o primeiro caso, que o segundo mostram determinados momentos de uso social e generalizado de conceitos que, por serem de hoje, não deixam de ser tão históricos como os do passado. A inutilidade, que referi de início, resulta da plena operacionalidade actual do uso muito alargado destes modos de interacção discursiva. Que, a meu ver, sejam distorções e desfigurações do real, não lhes retira a ominipresença de que hoje estão dotados.

Devo portanto concluir que só atrapalho a natural ordem das coisas, naturais "desde o princípio do mundo" - esse é o tipo de percepção que, em geral, se tem em cada momento da história: o sempre ter sido assim, mesmo quando tal não é verdadeiro de modo nenhum como é o caso - daí ter-me tornado um incomodativo e complexo personagem que mais valera calar-se de vez. Abandonar o Quixote à sua sorte.  Esse momento chegará.

António Pinho Vargas.

PS: Sei bem que o meu próprio nome poderá ser objecto de semelhante utilização. Mas devo enxergar-me adequadamente. Não só a minha vida se cindiu a meio, como o meu descentramento-do-sujeito atinge proporções alarmantes. E, já me esquecia, sou português. O que significa que qualquer sacralização me está vedada por natureza. O meu nome nunca será um nome.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O evento, a vida, o tempo e o vazio: a propósito do Concerto para Violino

 A música existe no tempo. 
Tendo lugar no tempo, desenrola-se a par com o tempo da vida. 
Tanto uma como outra se esfumam e abrem memórias e abismos.


A frase de Aristóteles, que citarei de seguida, será o meu ponto de partida para uma tentativa de reflexão sobre a estreia do meu Concerto para Violino (2014-2015) no domingo dia 7 de Fevereiro de 2016. Diz o filósofo: "já não é possível que o que sucedeu não tenha sucedido". Na realidade esta frase aplica-se às mais diversas acções e coisas que fazemos nas nossas vidas. Tudo se sucede no fluxo do tempo e num contexto espácio-temporal específico. Uma vez sucedido esse evento, não há maneira de não ter acontecido. Mas, enquanto evento que se eleva do que nos acontece todos os dias envolveu uma série de pessoas fundamentais para que ele possa ter existido: o criador, os intérpretes e o público, vasto e caloroso.

É importante referir que cada um nós, seres humanos, compositores ou tendo qualquer outra profissão, artística ou não, selecciona na sua vida uns instantes fugidios, uns dias inesqueciveis, aquele momento no qual se verificou um certo acontecimento marcante e sempre existe a possibilidade de enunciar um desses momentos ou dias como evento para si próprio: está sempre em aberto para qualquer pessoa. Não é exclusivo de artistas. É exclusivo dos humanos. Para mim - Heidegger dizia "o mundo é sempre-para-mim", querendo dizer para cada um de nós - este foi um evento. Para todos os outros humanos serão outros os momentos escolhidos. E também eles, uma vez tendo acontecido, não podem deixar de o ter sido.

No entanto gostaria de sublinhar as diferenças que um tal evento, como o estou a designar, pode encerrar para todos os que nele participaram não apenas em si mesmo como igualmente depois dele.

Aquilo que constituiu o evento foi a estreia do Concerto. Até esse dia era um objecto artístico que existia no seu estado potencial, tendo a condição de possibilidade mais necessária: a partitura estava escrita, a obra estava composta, mas não existia ainda como realidade sonora no espaço público.  No final do concerto, após a sua realização enquanto música foi concretizada na sua plenitude de obra musical. Fica a memória dele, para os que participaram e para os que estiveram presentes. 

Para que tal tivesse acontecido contribuiram de várias formas muitas pessoas: Tamila Kharambura, que o estudou comigo, que o reviu comigo fazendo preciosas sugestões e finalmente o tocou de forma soberba; o maestro Scott Walker, que estudou a partitura em sua casa e nos ensaios, sempre pronto para ouvir e ter em conta os meus comentários e para fazer igualmente sugestões, e que na realidade pôs de pé uma interpretação inteligente, cuidadosa e mesmo afectiva: "Well played" para Tamila, "Well done" para mim, no final do primeiro dos dois ensaios. Mas Scott Walker fê-lo dirigindo um conjunto de músicos da Orquestra Metropolitana que, desde esse primeiro contacto, aderiu à obra e a tocou com grande empenho, arte e competência. Quanto se fala de uma orquestra fala-se de um todo e não meramente de uma soma de muitos músicos.  Quando digo que "a orquestra aderiu" não sei, nem é verdadeiramente importante, que todos eles o tenham sentido da mesma maneira. O que é importante é que, enquanto orquestra, enquanto todo, aderiu, empenhou-se e tocou muito bem.

Finalmente a tudo isto assistiu uma sala cheia. O público é igualmente uma soma de muitos individuos mas, enquanto público, adquire e transforma-se numa outra entidade, colectiva, e penso - ao fim de todos estes anos - que até se ouve como ele respira, como está mergulhado na audição da obra ou não. Neste caso volta a ser enquanto colectivo que o seu comportamento durante e no final, conta e se percepciona: primeiro no silêncio quase religioso nos 25 minutos que a obra dura, depois nos aplausos e nos bravos que nos foram dirigidos com a máxima gentileza do entusiasmo.  

O evento que "uma vez acontecido não pode deixar de ter sucedido" pode ser descrito desta forma quase distanciada. Mas quando uma senhora que não conheço já fora do recinto e a caminho dos carros, depois dos abraços trocados, me diz sem sequer parar "muito obrigado por ser sua contemporânea" e rápido respondo "muito obrigado por me dirigir uma tal frase" tomo, ainda e mais uma vez, uma consciência de que algo aconteceu.  Aconteceu e dado o carácter irrepetível da música - de cada vez que é feita é sempre única - não voltará a acontecer da mesma maneira. Poderá ser de uma outra, mas aquela foi ali e não noutro lugar nem noutro tempo. Daí usar o termo evento.

Tenho o privilégio de ter uma coleccção, já não tão pequena assim, de eventos do mesmo tipo guardados comigo. Estarão presentes em mim e poderei dizer "estive lá". Esta expressão costuma ser usada para grandes comoções colectivas, como por exemplo, ter estado presente no discurso de Martin Luther King ou no dia 25 de Abril. Momentos fora do comum dos dias, momentos plenos de significado profundo que, logo ou mais tarde, se recordam como nenhuns outros. Para Alain Badiou o Evento, com letra maíuscula, que aliás associa à Ideia platónica-hegeliana, representa um acontecimento político que cria uma nova possibilidade da qual a Ideia é o nome. Não é neste sentido que estou a usar o termo. Seria uma enorme estultícia da minha parte pretender qualquer equivalência que não a meramente existencial. Nas nossas vidas, sucedem-se múltiplos acontecimentos quotidianos que não têm todos a mesma importancia simbólica, mas que não obstante existem: tomamos o pequeno almoço, dormimos, etc., e alguns de nós fazem obras de arte.

Nas nossas vidas individuais, menos gloriosas, menos "históricas", mas, em todo o caso, vidas, cada um pode fazer a sua própria selecção do muito que foi vivido e que parece ser, citando Borges, "digno de nos acompanhar até ao fim", enquanto obras de arte, aliás, o objecto (uma linha secreta) da pequena frase de Borges. Mesmo admitindo que, esta sensação de evento de alcance limitado que me domina, certamente com o exagero próprio dos artistas, possa igualmente existir um vislumbre dele em algumas pessoas, de formas privadas dentre aquele vasto conjunto presente, será talvez importante pôr em relevo as diferenças existenciais do que se segue, nos diferentes casos, em nós.

A próposito da estreia de Requiem em 2012 - um outro evento talvez similar - pude falar umas semanas depois com uma cantora do Coro Gulbenkian, da diferença, do peso diverso para os vários intervenientes activos e os espectadores, divisíveis em numerosas formas de "lá ter estado". Na altura o meu argumento foi o seguinte: enquanto que para o maestro, os membros do Coro e da Orquestra, aquilo que para mim, o compositor foi um evento ao qual se sucede um vazio apenas explicável pelo "ter sido" e nunca mais recuperável enquanto vivido, para todos eles, por maior que tenha havido uma emoção particular, sucede-se a continuação quase imediata, na semana seguinte, da actividade normal da vida musical. O maestro terá um outro programa para dirigir, o Coro uma outra obra para começar a preparar, a Orquestra, um outro programa para iniciar ensaios. Em todos eles a continuação da actividade musical sucede-se praticamente sem interrupção e, este facto das suas vidas profissionais, verifica-se semana após semana. É a ausência dessa continuidade imediata que força o compositor a ficar retido naquele momento particular de forma muito mais intensa (mesmo que tenha na sua agenda uma outra obra para compor; se não tiver o vazio torna-se com facilidade um autêntico temor).  Alguns dos próprios membros dos Coros, das Orquestras, etc., têm os seus grupos de música de câmara, ou carreiras solísticas, nos quais podem ter seguramente manifestações desse vazio de que venho falando, dado o conjunto de dificuldades que nessa esfera se verificam. Os compositores não têm o exclusivo dos vazios. 


Esse abismo do já acontecido e não repetível que, no caso de muitos dos compositores portugueses e de outras periferias, conforme funciona a vida musical nos seus países, se torna absolutamente literal - a obra não será repetida - é vivido, por mim e talvez por outros compositores da mesma forma (possibilidade que não posso nunca saber nem confirmar), como um evento que contém em si o seu próprio fim, o seu carácter único e irrepetível. Ficam portanto em paralelo duas formas quase opostas de viver o depois do evento: neste caso, o do compositor, como exaltação e perda (já foi), fundidas num único sentimento, no caso dos músicos, como um dos muitos momentos de actividade musical ininterrupta própria das instituições culturais. O mesmo se verifica no caso dos administradores culturais que, depois de cada evento, dirigem a sua energia para o próximo. Há sempre o próximo, o que nem sequer dá tempo para vazios de nenhum tipo se instalarem.

Prosseguindo neste caso mais recente, o da estreia do Concerto para Violino, o maestro Garry Walker regressa ao seu país e à sua carreira, a Orquestra inicia o estudo do próximo programa em agenda, Tamila prosseguirá a sua vida musical talvez guardando com especial afecto aquela sua performance e tudo isto é perfeitamente normal. Posso admitir que para alguns dos músicos terá ficado uma memória talvez especial daquele dia, daquele concerto (como um jovem violinista que já no átrio me disse que queria apenas dizer-me que gostou muito do concerto, com a mão no coração). Mas será em todo o caso incomparável com o do compositor. Porque este foi o criador da coisa-ela-mesmo. Uma parte de si ficou na obra enquanto coisa-feita e é por isso que advém uma dor.

No caso do público haverá uma infinidade de formas de memória, desde o esquecimento rápido de um incómodo, por parte de quem não gostou da obra, o que sempre acontece, até uma sensação de ter estado presente no momento único que foi vivido e mesmo retido por alguns com grande intensidade. Esta disparidade, esta diversidade de recepções está sempre presente e verifica-se com todos os compositores e com todas as obras, apesar de convicções erróneas em contrário.

Regressando à frase de Aristóteles, não há forma de apagar aquele momento, aquele concerto, aquele dia. Uma vez acontecido, prossegue de acordo com as múltiplas formas da sua recepção e da sua memória. Tendo acontecido não há nenhuma possibilidade de não ter acontecido. O que haverá é toda uma prática social instalada que o valoriza ou desvaloriza, sendo importante sublinhar que, em todo o caso, este aspecto se coloca sempre no depois-do-evento, na sua relação ou não-relação como ele.
 
Por maior que seja a produção activa de inexistências que caracteriza muita da nossa vida cultural face ao trabalho dos artistas locais, facto empírico de séculos demonstrável, aqueles que fazem surgir as obras neste lugar, neste espaço de enunciação nacional, mesmo esse poderoso mecanismo social que torna irrelevante muito do nosso trabalho - afecta não apenas este artista, mas a maior parte deles em todas as expressões artísticas - não poderá ir além da sua não-consideração do evento. Não pode, nem esse mecanismo interiorizado, anulá-lo, apagá-lo, fazer com que não tenha acontecido depois de ter acontecido. Pode constituir-se como obstáculo em relação ao seu destino futuro, o que sucedeu muitas vezes no passado com muitos compositores portugueses e de outros países. Mas é esse o seu grande limite e a sua incapacidade: nunca conseguirá alterar o vivido dos muitos Seres-o-aí. Esses dispositivos fazem parte de uma outra esfera da actividade social: o da política geocultural que não era o tema deste texto. 

António Pinho Vargas

Concerto para Violino e 9º Sinfonia de Beethoven, Crítica de Pedro Boléo: A estreia e milionésima vez

"Uma estreia tem sempre aquele sabor de “pela primeira vez”? Nem sempre. O novo Concerto para violino de António Pinho Vargas parecia uma obra estreada há muitos anos e já plenamente integrada no reportório de violinistas e orquestras. Talvez esta sensação venha da forma como a violinista Tamila Kharambura pegou na obra, numa ligação profunda com ela, como se a conhecesse desde sempre. Talvez venha também de um diálogo consciente com a história da música que esta obra suscita, não por citação ou referência directa, mas como se citasse gestos que o violino e a orquestra incorporaram. O que é especial no concerto de Pinho Vargas é que esse diálogo não estabelece uma relação objectivista (nem “burocrática”) com a história, mas ganha uma dimensão íntima.

Este Concerto para violino é dedicado ao violinista arménio Gareguin Aroutiounian, falecido em 2014. Uma dedicatória a um amigo músico e professor, um cúmplice da aventura musical e do ensino. Em jeito melancólico (como podia ser doutra forma?), mas sem choradinhos, a obra parte em busca de traços da presença desse amigo. Ele está no violino, mas está também num carácter melódico (vindo de leste?) e nalguns elementos orquestrais como o peso das cordas, ou os elementos de percussão. E esteve sobretudo nas mãos da violinista, Tamila Kharambura, que brilhou com uma sobriedade imensa, se é que isso é possível.

Kharambura foi aluna de Gareguin Aroutiounian, “sua discípula predileta nos últimos anos”, como se podia ler no programa. Ela participou na revisão da parte solista desta obra, trabalhando com o compositor. E foi aí que este concerto em quatro andamentos, de desenho aparentemente convencional, partiu para outra dimensão. No primeiro andamento o violino ainda estava dentro da orquestra, como se o som não saísse ainda completamente para fora. Mas depois, a pouco e pouco, com Tamila Kharambura, o concerto viajou para uma beleza, aí sim, inaudita. Nas partes solistas paira uma emoção suspensa, com surpreendentes inserções, como uma referência a Bach lá no meio, como se a aluna lembrasse aquela partita daquela aula de violino. E o Lamento Largo final, onde a dimensão de homenagem fica clara: lamento enorme, mas catarse contida.

Na segunda parte, a Nona Sinfonia de Beethoven. E aqui foi ao contrário. A obra arqui-famosa e tantas vezes tocada parecia fresquinha, acabada de nascer. É que, apesar da fama, a Nona é uma estranha sinfonia, cheia de cortes, recomeços, interjeições, coisas aparentemente fora do lugar. O Beethoven excessivo, intransigente, inquieto do fim da vida. A Orquestra Metropolitana de Lisboa, com Garry Walker na batuta, conseguiu fazê-lo muitíssimo bem. Com a participação empenhada e colorida (não falo dos trajes, mas das vozes) do Coro Voces Caelestes e de um sólido conjunto de solistas que cumpriu a tarefa difícil de ir directo ao assunto, porque é assim que tem de ser no último andamento – não há tempo para aquecer.

Beethoven tinha confiança na Humanidade inteira: Irmãos! Milhões! Alegria! Há qualquer coisa disso que, apesar das desilusões ou apesar da morte dos amigos, permanece e vive. Está ali, naquela voz, naquela frase da trompa, num violoncelo que fala, num fagote que canta. Não é o busto surdo de Beethoven, mas a música fazendo-se, desafiando o tempo. Estreia ou milionésima vez: a música é sempre gerúndio."

Pedro Boléo, Público, 9.2.16

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

António Pinho Vargas, Concerto para Violino à memória de Gareguin Aroutiounian, Tamila Kharambura, violino, OML Gary Walker


http://www.metropolitana.pt/Default.aspx?ID=4354&CalendarEventID=2868

Estreia, domingo dia 7, CCB 17.00
António Pinho Vargas, Concerto para Violino à memória de Gareguin Aroutiounian,
Tamila Kharambura, violino
Orquestra Metropolitna de Lisboa, dir. Gary Walker
+ Beethoven Sinfonia nº 9 c/ Coro Voces Caelestes