Sempre que toma posse um(a) novo(a) ministro(a) da cultura assiste-se, no espaço público, ao aparecimento de tomadas de posição de várias proveniências artísticas. Normalmente é do cinema que surgem os primeiros manifestos, como o recente da Associação Portuguesa de Realizadores, depois artigos nos jornais sobre a diminuição das longas metragens portuguesas ao longo de um certo período, etc. De seguida, caso se verifique alguma nomeação suscetível de desagradar aos membros mais influentes do campo teatral ou alguma decisão polémica - ou, por vezes, qualquer decisão - nos concursos dos Institutos das Artes ou das Direcções Gerais das Artes - os seus nomes vão variando - levanta-se uma enorme contestação nos jornais sobre esses casos.
Estas são formas de presença no espaço público que denotam capacidade de mobilização e agitação mais ou menos colectivas na defesa dos interesses especificos dessas áreas artísticas.
Esta marcação do território - antes ou depois - tem já conduzido a demissões de alguns ministros ou secretários de estado. Traduz por isso uma forma de participação e poder.
Tudo se passa de modo completamente diferente no campo musical. Para começar o que está em causa é principalmente, apenas e quase exclusivamente, o que diz respeito às grandes instituições culturais. O resto vai-se arranjando como pode.
Neste momento verifica-se ainda apenas um vislumbre. A ministra da Cultura anunciou que está em negociações para substituir o director do Teatro Nacional de São Carlos. De facto, tal como referiu Augusto Seabra, e tem referido Jorge Calado ao longo do tempo no Expresso parece que a orientação da direcção de Chritopher Dammann tem desagradado à maioria dos críticos e dos melómanos que frerquentam o Teatro. Não posso dar a minha opinião fundamentada porque só assisti a meia ópera neste período. Mas vou lendo. Assim, li igualmente, em sentido contrário, uma espécie de elogio fúnebre de Dammann escrito por Mário Vieira de Carvalho, secretário de Estado na altura da sua nomeação. O último texto que pude ler foi escrito por Henrique Monteiro, director do Expresso, que surze violentamente a actual direcção e o baixo nível geral das prestações. E compara com a excelência da Gulbenkian onde se pode ouvir boa música interpretada com qualidade. Muito bem. Este será um leque-tipo das posições que são habitualmente tomadas.
Aparentemente o que está em causa é idêntico. Na minha opinião não é nada idêntico.
Quando os realizadores marcam o seu território, fazem-no para defenderem a possibilidade de fazerem os seus filmes. Não o fazem para reclamar que querem ver melhores filmes de Spielberg ou de Lucas.
Pelo contrário, o que está em causa no campo musical é na verdade um equivalente disso. Queremos ver e ouvir melhores Traviatas, melhores Normas. A Traviata de Dammann é um desastre; a Traviata de Pinamonti é melhor.
Ou seja, se existe uma estrutura de dominação cultural que no cinema é representada pelos cineastas americanos - e a sua estrutura de criação e divulgação (em Portugal a Lusomundo) não parece precisar de governos - no campo musical, o que se reclama é que a estrutura de dominação cultural que é representada pelo repertório canónico histórico seja bem defendida em todos os palcos. Queremos melhores Traviatas, melhores Turandots, melhores Siegfrieds. Considerando que de 1990 a 2010 apenas 3 óperas de compositores portugueses vivos foram estreadas no São Carlos, aliás todas rodeadas de polémicas - uma ópera e meia por década não será mau para os compositores portugueses, dirão os melómanos, os coleccionadores da Diapason ou da Grammaphone, ou os directores de jornais portugueses. Na análise de uma direcção do São Carlos nunca se considera se realizou ou não (e como, com que orçamento) obras portuguesas a não ser em nota de pé de página.
Não interessa. Porque para o culto médio português frequentador do São Carlos essa comunidade artística não existe ou não é necessário tomá-la em consideração. Por isso, sigamos o conselho do director do Expresso: faça-se no São Carlos o mesmo que na Gulbenkian. Boa música, bem tocada.
O que é que isto quer dizer "boa música"? É a música canónica histórica que domina os palcos do mundo. É isto que as elites portuguesas querem do São Carlos.
O meu único problema (sendo talvez igualmente médio/culto) é como conceber a aplicação deste critério a outros ramos da actividade pública: queremos melhores directores de jornais, queremos melhores ministros, queremos melhores realizadores. Não se poderá contratar o director do Guardian para o Expresso? Não haverá um ministro das finanças na Finlândia capaz de por em ordem a coisa "cá dentro"? Não se poderá encomendar um filmezito ao Orson Welles? Ah, que pena, já morreu.