A questão do futuro é talvez a que mais nos atormenta. Antes de mais nada porque, apesar da profusão de previsões de todo o tipo, o futuro caracteriza-se por não ser conhecido. Logo do ponto de vista existencial. Temos um prazo de vida. Não sabemos quando irá terminar o nosso prazo. Cada um de nós vive como se não houvesse prazo ou fim. Se calhar deve ser assim, sob pena de se tornar demasiado angustiante. Ao mesmo tempo, seguindo Immanuel Wallerstein, o futuro do mundo depende de nós, das pessoas do mundo. Aceito esta ideia sobretudo naquilo em que ela afasta do horizonte os determinismos históricos que durante muito tempo alimentaram optimismos sem sentido (sabemos hoje) ou crenças em futuros radiosos. Não é assim, como fomos vendo dolorosamente.
Mas para todos os efeitos, no que me diz respeito, há uma série de aspectos em relação aos quais, um mínimo de modéstia me obriga a considerar para além da minha acção, da minha capacidade de acção. Começando pela música, a área principal da minha actividade, são mais as dúvidas do que sequer as convicções.
Mas para todos os efeitos, no que me diz respeito, há uma série de aspectos em relação aos quais, um mínimo de modéstia me obriga a considerar para além da minha acção, da minha capacidade de acção. Começando pela música, a área principal da minha actividade, são mais as dúvidas do que sequer as convicções.
Em primeiro lugar a temática da minha tese Música e Poder, segue impávida: os dispositivos de poder quer internos quer externos ou transnacionais. Não espero nada. Luto, como é minha obrigação de estar-vivo, mas a lucidez impede-me que cair no erro de pensar que haverá mudanças de fundo. Penso que alguns colegas lutam pelo seu trabalho (como eu) mas com as antigas convicções ou com um optimismo que gostaria de partilhar mas não consigo. Há duas razões para isso. Em primeiro lugar, o facto de ter sido músico (de jazz ou lá o que aquilo era), mostrou-me duas coisas: uma real inscrição no social, uma sensação de vida vivida. Daí decorre uma segunda consequência: ter subido a palcos muitas centenas de vezes deu realidade a uma experiência prática do que é tocar música para pessoas, do que é marcar presença, uma presença. Julgo que se pode aplicar o conceito de inscrição a tal passado. Daqui não deve retirar-se nenhuma noção de maior (ou menor) competência ou capacidade. Trata-se apenas de um vivido biográfico. Mas dá-me uma perspectiva das coisas que nenhum outro pode ter, porque não a viveu. Em segundo lugar conheço bem o que posso fazer e aquilo que não posso nem quero fazer. Nunca soube ou quis fazer grandes "contactos". Nada a fazer.
A música escrita que fiz até hoje, nos casos mais importantes - não considero tudo o que fiz do mesmo modo, nem tenho grande apreço por catálogos de desperdícios - destina-se a efetivos muito grandes, orquestras, óperas, coros e orquestras, movimentando por vezes mais de uma centena de pessoas. É justamente nessas obras - Judas, Requiem, Magnificat, Os dias levantados, Outro Fim, Grafitti, Six Portraits of Pain e algumas mais - que a ideologia dominante das estreias as coloca perante um futuro problemático, mesmo apenas no interior do país. Dado o facto de haver um forte centralismo e de, no segundo centro, a cidade do Porto, a direcção artística da Casa da Música não manifestar nenhum interesse em as apresentar para além do que já o fez (3 encomendas) - não posso obrigar a sua direcção artística a gostar da minha música e, como tal, a sentir nenhuma obrigação institucional de incluir essas obras na sua programação. Reclamando bastante gente custariam dinheiro, para além do resto. E o resto é que o lema das instituições é sempre a estreia e a mostra cosmopolita - necessária não fora excessiva, nem implicasse uma exclusão sistemática de compositores e músicos - de artistas e obras provenientes dos centros donde irradia a dominação criada pela história (antes) e pelos meios de difusão e autoridade de que dispõem (hoje). Não sendo estreias nem sendo provenientes dos centros não me restam grandes hipóteses. Sei que outros colegas (e muitos músicos) - que, ou nunca lá foram ou que foram em tempos mas deixaram de ir - olham para essa orientação de forma muito negativa. Muito bem, têm esse direito. Sei que outros me vêem com cheio de uma sorte invejável. Será sorte, talvez.
O público, aí como noutros locais, não se manifesta, aceitando aquilo que lhe é dado como natural. "Este ano vem cá o Berio ou o Stockhausen" (se fossem vivos). Como não são vivos, vêm os seus sucessores nos locais de enunciação que determinam as escolhas nestas práticas musicais.
No meu caso, um entre outros, considero a questão praticamente encerrada. Nem Judas, nem Requiem, nem Magnificat, serão ouvidos alguma vez na cidade onde vivi 40 anos da minha vida e na qual vivem muitos dos melhores amigos que tenho. Está dito.
Dado o centralismo típico do resto do país é melhor nem falar. Terei a estreia de Quadros (de arte moderna) na próxima semana (dia 4-7-14) pela OCS em Faro. Mesmo nesta dimensão de orquestras clássicas, não há muitas cidades do país onde tal possa ocorrer. O panorama é pouco animador em muitos locais e cidades do país, apesar de alguns municípios se destacarem pela positiva, com festivais e apoios a iniciativas.
Julgo que a sociedade portuguesa põe em acção mecanismos subtis de destruição ou de desqualificação lenta ou rápida mas sempre inexorável do nosso trabalho e de muitos outros artistas. Posso ver isso com alguma clareza no destino dos compositores que já morreram. Na melhor das hipóteses ocupam um lugar simbólico, ilustre, mas pouco mais. O caso de Emmanuel Nunes é paradigmático. Em vida, teve presença regular nos Encontros da Gulbenkian, teve dela um número de encomendas que será incomparável por muitos anos (23 obras) e, nos últimos dez anos da sua vida, o seu lugar privilegiado desviou-se para a Casa da Música. Tudo isto mesmo considerando que o seu lugar de enunciação era Paris, onde vivia desde 1964. Aliás, após a sua morte, foi no IRCAM que lhe foi realizado um concerto de homenagem. Nem na Gulbenkian nem na Casa da Música houve espaço ou vontade para um acontecimento similar. Se fui crítico do seu estatuto anterior e excessivo de "favorito" durante muitos anos, devo dizer que sou igualmente crítico do seu rápido esquecimento posterior. Nem o 80 era correcto, nem o 8 é digno. No entanto o Remix Ensemble continua a fazer algumas obras suas nos locais dos países centrais que sempre foram os seus. Essa é a razão principal. A autoridade decide e determina as escolhas.
Verifica-se deste modo o processo atávico de anulação do que foi feito (da memória recente) nesta área onde "nada se inscreve". A leitura das entrevistas do livro de Sérgio Azevedo de 1998 "A invenção dos sons", mesmo passados já mais de 15 anos, será ainda útil para identificar esse estatuto de "não-inscrição" que marca, no essencial, esta prática musical na sua relação com a sociedade e os discursos de vários compositores.
Há o público. Aquele que esteve presente nas estreias das minhas peças e nas dos outros compositores. Esse público existe. Ouviu as obras, comoveu-se com elas ou não se sentiu tocado por elas. Que assim seja é normal. Existe o plural para irritação dos que vêem o mundo a preto e branco. O que aconteceu, aconteceu. Não pode ser apagado. Pode é ser desqualificado, por acção ou omissão.
Na área política a situação tem traços de bloqueio, de permanência, de estabilidade-instável da qual não se vislumbra saída, que são igualmente preocupantes. Por agora deixo esse problema para mais tarde.
António Pinho Vargas, 26-6-2014