Estado e mercado hoje: Articulações e problemáticas da criação musical
DOSSIER | 16 SETEMBRO, 2011 - 14:31
Não será necessário que uma nova política de esquerda seja capaz de reinventar o papel do estado na cultura para além do que ele tem sido até hoje? Texto de António Pinho Vargas.
A questão das relações entre o Estado e a Cultura é hoje um factor de divisão entre duas opções que, apesar de algumas variantes, se podem resumir ao seguinte: a esquerda até à social democracia defende a acção do Estado na actividade cultural como forma que assegurar a diversidade da produção e a diversidade da oferta. A direita, da neoliberal até aos movimentos emergentes de extrema-direita contestam esta visão e reclamam que, neste como noutros aspectos, o Estado deve retirar-se desse papel e deixar ao mercado a tarefa de levar a cabo as suas escolhas.
Um exemplo recente do crescente radicalismo das posições da direita vem da Holanda, do líder do partido que naquele país subiu bastante nas últimas eleições, uma frase na qual, segundo me transmitiu um compositor holandês meu amigo, terá defendido que “o estado não tinha nada que se ocupar dos hábitos de uma minoria de esquerda snob”.
Entre os vários partidos que defendem a acção cultural do Estado há, no entanto, uma divisão entre uma visão da cultura como principalmente património monumental do passado e outra que considera igualmente as artes performativas do presente como merecedoras da acção do Estado. O debate em Portugal até hoje circunscreve-se a esta divisão e as diferentes práticas governativas mostram de alguma forma esta divisão. Os ataques à política cultural do estado normalmente dirigem-se às artes performativas.
Feita esta distinção deve-se interrogar se os termos em que a questão tem sido posta não traduzem, de alguma forma, o resultado de uma política seguida desde o 25 de Abril e nesse sentido, se não será forçoso no seio da esquerda uma nova discussão aberta destes problemas e de algumas perversões que podem ter ocorrido durante estes anos. A questão é portanto a seguinte: a Esquerda que aqui se procura repensar globalmente pode ou deve manter inalteradas as posições-tipo que se têm mantido até aqui ou deve igualmente repensar a sua posição?
Vou procurar colocar algumas questões que poderão contribuir para esse eventual debate.
Os apoios do Estado à cultura na Europa, associam-se normalmente aos ministros franceses André Malraux e Jack Lang mas, na verdade, deve-se recuar até ao inicio da Guerra Fria para os compreender cabalmente. Sendo a auto-descrição do Ocidente democrático e capitalista uma descrição que nessa altura incluía a “liberdade dos artistas” contra a visão oposta do regime soviético, no qual um conjunto de regras formais e determinações ideológicas eram impostas aos artistas para cumprirem a função que lhes era atribuída pelo estado totalitário, em duas palavras, “por a arte ao serviço do povo” e erradicar os modernismos e a experimentação como uma degenerescência elitista das “democracias burguesas”. Foi este o quadro geocultural e geopolítico que explicou os investimentos que foram feitos no Ocidente no pós-1945. Radica neste período o início de muitos festivais de música na Europa e eventos similares noutras artes que ainda hoje existem. Uma vez que se alterou o quadro geopolítico, com a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética e a emergência triunfante das ideias neoliberais no Ocidente, alterou-se igualmente o discurso ocidental sobre o papel do Estado como vimos no início. O discurso habitual da esquerda considera que a acção do Estado no apoio às actividades culturais é fulcral para preservar a diversidade do mundo face à dominação global exercida pelo do mercado – entretanto ele próprio tornado global – e os seus enormes dispositivos de poder. Penso que esta ideia é consensual e que a esquerda pode reconhecer-se nela sem grandes problemas.
Se eu continuasse com este discurso apenas desta maneira não suscitaria nenhuma reflexão particular. É um discurso repetido e aceite. Mas alguns problemas práticos (e talvez teóricos) se devem colocar, mesmo correndo o risco de dividir os meus ouvintes. Penso que é necessário ir mais além.
Convido por isso as pessoas a pararem um momento e pensarem no que é que acontece de cada vez – e são muitas – que os sucessivos governos do PS ou do PSD até agora anunciaram através dos seus Ministros da Cultura ou dos seus Secretários de Estado, cortes nas verbas, nos subsídios ou mudanças nos regulamentos que vão sendo refeitos de cada vez que muda um ministro, o que, por si só, não é um bom sinal.
Neste circunstâncias recorrentes – os momentos dos cortes – deparamos com uma fissura, com uma patente desigualdade entre diversas áreas artísticas e vários outros aspectos.
1. Em primeiro lugar ressalta à evidência uma diferença entre várias áreas na capacidade de tornar público o seu protesto, a sua reivindicação; isto nota-se na publicação nos jornais de tomadas de posição em textos assinados em defesa da razão de ser do subsídio ou na crítica da indignidade do seu corte. Os artistas que têm maior capacidade de acção no espaço público são os do cinema, os do teatro e alguns da dança.
2. Em segundo lugar o que foi referido é complementado por outro aspeto que é simplesmente a capacidade muito diferenciada de se associarem ou levarem a cabo alianças tácticas. No cinema há uma Associação de Realizadores que assina manifestos mas sabemos que não incluiu todos os realizadores. É uma facção larga mas não é a totalidade da classe profissional. No teatro avultam as companhias há mais tempo no activo e os seus directores/encenadores. Estes agentes culturais promovem por vezes encontros e acções conjuntas.
3. Em terceiro lugar há que admitir – sob pena de se considerar apenas quem tem voz no espaço público e não quem faz parte realmente do real no seu todo – que artistas de outras áreas não se fazem ouvir e raramente participam nos manifestos. Quero referir duas áreas, antes de avançar com uma hipótese explicativa. Os músicos em geral e os compositores, normalmente não estão representados nesse protestos. Também os artistas plásticos raramente se manifestam desse modo, para não falar de escritores, poetas ou arquitectos. Quando tomam posições públicas fazem-no individualmente, em peças jornalísticas a respeito da inacção do Estado no que respeita às representações nacionais e presenças nas várias Bienais de Arte, actualmente uma base importante de circulação das obras. No campo musical, ainda a propósito da capacidade de ter voz no espaço público, neste quadro da problemática Estado/Arte, verifica-se que as únicas coisas capazes de despertar um interesse jornalístico cultural, são o momento da substituição de um director do Teatro de São Carlos, a saída de um conselho de Administração de uma instituição, ou uma guerrilha qualquer a propósito de uma Capital Cultural. Questões de carácter administrativo e não artístico.
Quase sem darmos conta passamos dos artistas eles-próprios para a figura do intermediário cultural.
Esta figura tem assumido crescente importância, e essa importância pode ser vista em si mesmo como um problema. Veremos mais adiante de que forma alguns intermediários culturais revelam não apenas uma tendência de “autor” como muitas vezes esse programa se traduz numa exclusão de artistas portugueses ou de artistas fora do âmbito dos seus gostos estéticos – a estética não passa de uma determinada política do gosto, como escreveu Georges Steiner – e, pior ainda, hoje para justificar uma opção, já não é necessário escrever nenhum Tratado de Estética, nem nenhuma Crítica da Faculdade de Julgar para que uma determinada hegemonia de um gosto se afirme na prática. Basta acreditar em dois ou três lugares comuns e, sobretudo, ter o poder real de os pôr em prática.
As diferenças que identificámos até aqui podem servir para desocultar outras. Julgo que no centro dessas diferenças e desigualdades entre as artes está um conjunto de articulações mais complexas entre o Estado e o mercado em relação às quais pensar apenas com essa dicotomia tradicionalmente aceite não é suficiente para chegar muito longe.
As artes plásticas, por exemplo, articulam-se de um modo complexo e, por vezes, pouco visível, com várias estruturas diferentes: museus de arte contemporânea, galeristas e coleccionadores privados, compras ou Prémios atribuídos por Bancos – sendo que por vezes se verifica uma teia de interesses pouco clara ou transparente entre interesses do Estado e interesses privados do mercado da arte. Tornou-se difícil distinguir nesta actividade artística, onde acaba um e começa o outro. O crítico Augusto M. Seabra escreveu há já alguns anos, alguns textos no jornal Público, sobre a ambivalência ou talvez mesmo sobreposição de interesses entre directores de museus de arte contemporânea tutelados pelo estado que desempenham, ao mesmo tempo, o papel de membros de júris financiados por entidades bancárias e outras instituições privadas que, para ele, tem todo o interesse clarificar e separar. Como já disse nesta área o papel do Estado tem sido assegurar o funcionamento dos museus e organizar (ou não) as representações nacionais nas mostras internacionais. No campo musical o papel do estado é algo semelhante, apesar de não haver nada de parecido com representações nacionais em Mostras Internacionais. Na música o papel do Estado tem sido o de assegurar o funcionamento das Orquestras nacionais ou regionais, a manutenção do funcionamento do Teatro Nacional de Ópera ou da Casa da Música e outras instituições públicas com parcerias com autarquias ou com entidades privadas – em Fundações mistas – e finalmente a atribuição de subsídios pontuais ou para períodos de 4 anos. Estes subsídios são relativamente reduzidos por vezes incluem apoios a festivais de música, a edições de partituras ou a gravações. Não é necessário sequer acrescentar que os valores envolvidos nestes diferentes casos é muito variado, como é óbvio.
Neste campo há no entanto uma diferença fundamental uma vez que o Estado financia instituições e raramente entabula relações directas com artistas. O contacto do Estado é o director da instituição e/ou o programador, mas estes, uma vez acordados os financiamentos anuais, dispõem de grande autonomia. O que se lhes pede é uma “temporada”, de preferência de “nível internacional” eufemismo usado para designar uma certa visão de “qualidade” na prática a contratação sistemática de artistas de outros países, artistas com nomes intimidadores. Este aspecto manifesta-se igualmente em múltiplos festivais de jazz dispersos por todo o país: o intermediário cultural assume muitas vezes uma papel ambíguo: por um lado é o “criador” do evento; por outro, é o produtor activo da ausência de artistas portugueses, apesar de funcionar em contextos financiados pelo estado. Voltarei a este aspecto.
Daqui resulta uma diferença crucial. Quando se fala do cinema, do teatro ou da dança, fala-se de realizadores, encenadores – mais do que de autores teatrais, diga-se – de performers e coreógrafos, em grande maioria portugueses. No campo musical fala-se dos directores das orquestras, dos maestros convidados, dos grandes artistas contratados, na grande maioria não portugueses. O compositor ou o intérprete português de música erudita ou de jazz – já vimos que não há grande diferença entre os géneros deste ponto de vista – pode manter contactos pontuais com essas instituições, obter uma encomenda, conseguir um concerto, de preferência numa sala pequena, mas disto resulta que se vai habituando à sua própria importância residual no quadro do normal funcionamento das instituições; por outro lado, e como alternativa, coloca-se no mercado existente de acordo com a inventividade, a capacidade de resistência e a criatividade que estão normalmente associadas aos artistas, de modo a encontrar oportunidades e mesmo lugares onde possam apresentar o seu trabalho.
É de salientar que essas características associadas ao “carisma do artista”, àquilo que Bourdieu designa como ideologia do artista “carismático” não estão associadas de modo equivalente nos discursos correntes aos ministros, aos programadores ou mesmo aos directores de teatros. A estes, nos meios culturais e de modo muitas vezes surdo – embora audível – associa-se mais facilmente a figura do “conspirador do campo cultural” ou, no mínimo, do detentor de um projecto de poder pessoal. Convém lembrar um exemplo, conhecido de todos, que associava tudo isto numa só pessoa. Chamava-se Richard Wagner.
Para além do que já foi dito, em todas as outras músicas que não a “grande música europeia – o jazz, o rock, as músicas experimentais e mesmo populares de vários matizes - os músicos colocam-se principalmente no mercado: o mercado discográfico, nas salas de concertos (convencionais ou não, tradicionais ou não), por vezes, conseguem inventar lugares abandonados para aí construirem espaços possíveis de apresentação pública e, deste modo, só de forma muito indirecta sentem a “presença do estado” na sua actividade, mesmo nas autarquias que cumprem funções do estado com relevo local fora dos dois grandes centros Lisboa e Porto. A uma macrocefalia dividida entre as duas cidades ao nível nacional, corresponde uma macrocefalia local variada, nas margens das quais são necessárias, para poder trabalhar, formas da tal criatividade que é atribuída aos artistas. E o facto é que ela existe. Daqui decorre uma pergunta inevitável.
Esta existência algo distanciada dos apoios directos do Estado também não explicará a ausência destes artistas nas várias guerras civis contra os cortes recorrentes dos vários ministros? Não traduzirá uma sentimento distanciado do tipo “para mim é igual”? Não será necessário que uma nova política de esquerda seja capaz de reinventar o papel do estado na cultura para além do que ele tem sido até hoje?
Podemos concluir, face ao que foi dito, que as companhias de teatro em geral, as companhias de dança e os seus projectos pontuais e o cinema português, não existiriam tal como têm existido sem os apoios do Estado. O mesmo é válido para as instituições culturais em geral: os museus, as fundações do estado e os teatros nacionais. Mas é nestas artes que a dependência da acção do Estado e da sua política é mais patente. Sem essa participação teriam grandes dificuldades para manter os espectáculos e fazer os filmes. Mas, como em qualquer campo de produção cultural, como Bourdieu nos ensinou, a sua estrutura interna é constituída por disputas internas, por lutas pela primazia, por diversas perspectivas estéticas em confronto. É neste quadro que, nos momentos de combate contra os cortes do Estado, os discursos de alguns artistas, regressa ou regride para o período das vanguardas pós-1950, para a ideologia carismática daquele período. Ouvir hoje um artista dizer que “não lhe interessa que haja um único espectador” é uma manifestação arqueológica de um período já pertencente ao passado e, se não deixa de ser uma expressão do direito à expressão artística, é também uma manifestação algo desrespeitosa e arrogante em relação à própria definição ontológica de “obra de arte” na qual a “recepção” é parte fundamental. Não há obra de arte sem “recepção” sem um outro que a receba.
Para concluir, porque é que na música - com as muito raras excepções igualmente ligadas à ideologia vanguardista do pós-guerra – nunca há as verdadeiras guerras civis de protesto que se verificam nestas artes?
Para responder devemos ter em conta dois aspectos. Os músicos que fazem parte das orquestras mantêm uma relação laboral mais ou menos estável com as entidades patronais e nunca ouvi um neo-liberal protestar por haver execuções de Sinfonias de Mahler. Em larga percentagem é este repertório da “grande música” da tradição ocidental que ocupa cerca de 90% dos programas no mundo, o “cânone ocidental” dominante no mundo nenhum compositor, nem nenhuma obra portuguesa faz ou fez alguma vez parte no passado.
Os compositores portugueses – que têm uma ou outra peça tocada por ano neste contexto – tem estado consideravelmente isolados, algumas vezes excluídos por longos anos desta ou daquela instituição ou das várias “Festas da Música” que algumas vezes são criadas por programadores inventivos. Neste sentido, o compositor – apesar do carácter performativo inerente às obras que compõe – estará mais próximo da figura do escritor ou do poeta, fechado no seu quarto de trabalho, em extrema solidão no acto de fazer a obra, só tendo apenas contacto com os músicos que a irão tocar durante os 3 ou 4 dias de ensaios.
Mas os músicos que assumem a dupla função de criador/performer, os músicos de jazz, de rock, das músicas populares de vários matizes do mundo em geral, têm, pelo contrário, uma vida artística muito mais próxima dos actores de teatro os dos performers de dança: fazem parte de grupos de trabalho colectivo. Mas, de outro modo, raramente beneficiam da acção directa do Estado, e, como já disse, colocam-se no mercado e aí vivem como podem. Se desta área emerge um protesto, um lamento, ele dirige-se contra os critérios do programador dominado como é usual pela tarefa de “trazer cá” os artistas “internacionais”. Este facto que é considerado normal nas músicas pela generalidade das pessoas, seria absurdo ou impensável se imaginado noutras áreas. Duas ou três provocações tornam-no claro. O equivalente no teatro seria terminar com o subsídio da Cornucópia, dos Artistas Unidos ou da Escola da Noite, e por aí fora, fechar os teatros nacionais excepto para convites ao Berliner Ensemble ou o Piccolo Teatro de Milão, ou ainda mais, no caso do cinema, usar os dinheiros do Estado para financiar uns filmes de Spielberg ou de Coppola ou Almodovar. Não teria qualquer sentido. No entanto é precisamente isso que acontece às verbas gastas na manutenção das instituições dedicadas à música.
Sabemos que há duas dominações de âmbito global: a da música pop-rock anglo-americana e, no campo da criação erudita, na tradição da música escrita, a dominação do cânone clássico constituído no século XIX e prosseguido até hoje. Para os melónamos das duas grandes cidades portuguesas é assim e está bem, tal como se verifica em muitos países embora com proporções diversas. Nem todos os países vivem esta nossa relação de “ressentimento e fascínio” em relação à Europa, vista como um todo uno, para usar a expressão de Eduardo Lourenço em Nós e a Europa ou as duas razões. Daqui resulta que, durante muitas décadas do século XX, para os compositores e muitos músicos e intérpretes portugueses, este estado de coisas vigente se traduziu por uma espécie de “exílio no próprio país” uma figura retórica que foi ampla e justamente usada durante o regime da ditadura de Salazar e que pode ser usada hoje por outros motivos. Não se trata de regressar ao isolamento do “orgulhosamente sós” desse tempo. Mas seria necessário estabelecer uma outra ordem de proporções menos desigual entre as músicas dominantes e as músicas dos compositores e músicos portugueses.
Julgo ser por este conjunto complexo de razões – nas quais a relação entre o Estado e o mercado nem sempre é bem analisada – que os músicos e os artistas plásticos não se manifestam nos protestos contra os cortes dos subsídios para a cultura.
Embora longe de ter tratado o assunto destas desigualdades exaustivamente, espero ter conseguido colocar alguns problemas merecedores de maior reflexão no futuro.
Texto de António Pinho Vargas, Coimbra, Setembro de 2011.