A economia destituiu a política e essa é a grande crise política.
Um dos lados que mais (me) perturba na situação actual é o facto de, como resultado da crise dos bancos de 2008, da crise da UE e das suas instituições mal pensadas e pior desenhadas, e ainda da forma brutal como este governo se atirou à governação, empobrecendo e dividindo o país, fracturando fortemente a própria direita, é o facto, dizia, de me parecer que vivo em dois países simultâneos que não tem relação entre si, sem pontos de contacto, como se fossem duas realidades diversas: o do governo e dos seus apoiantes e o dos seus opositores (cada vez mais, sem dúvida, mas muitas vezes impotentes ou sem meios de agir).
Esta fractura que se traduz numa espécie de guerra civil discursiva - na qual tomo parte como posso por um dos lados - manifesta-se frequentemente por uma esquizofrenia de desejos opostos, por leituras da realidade diárias e opostas, de medidas legislativas e discursos violentos de quem tem poder que alternam com apelos à demissão igualmente dramáticos de quem não tem poder. É uma guerra civil à qual falta apenas a própria guerra, como se a representação dela fosse o palco da luta ou o campo de batalha tivesse passado a ser apenas o mediático, o das declarações e, intermitentemente, das manifestações da rua.
A questão é que governar pela força - mesmo que desta ordem "legal" - contra a vontade de largas camadas da população é possível durante um certo tempo mas não é possível de manter "sempre". Até Maquiavel sabia disto. Por isso apelava nem que fosse à "aparência de um afecto" entre o Príncipe e os governados.
Hoje, aqui, não há sombra de afecto, nem sequer sombra de uma representação de afecto. Há representações sucessivas de brutalidade e ameaças veladas de rostos fechados ou esclerosados. Reino da falta total de afecto. A crise da democracia de que muitos falam há longo tempo - inegável - conduziu à crise da caricatura da democracia na qual o poder do dinheiro substituiu tudo o resto, sem saída. Os apelos, os manifestos, as cartas multiplicam-se na Europa, reclamando um mundo onde não se fale apenas de economia e de dinheiro. Onde se possa voltar a falar de projectos de sociedade, de ideias sobre o mundo, de uma felicidade possível, de outros possíveis. Nada parece dar nenhum resultado. A Europa da finança esmaga tudo à volta com a força da Wehrmacht. O lado que bloqueia, paralisa e congela toda a situação é ainda mais forte do que o lado que deseja uma mudança (que tende a evoluir para um desejo difuso de uma mudança "qualquer", fonte de perigos como se sabe). Sinto que descrevo uma guerra à qual só falta ser mesmo guerra. Uma guerra é sempre uma sucessão de horrores. O que se passa hoje é, psicologicamente e não só, como toda a gente sabe, de grande, de enorme violência.
A economia destituiu a política e essa é a grande crise política.
António PInho Vargas