domingo, 26 de fevereiro de 2017

A obra de arte musical e tudo aquilo que se lhe adere do exterior (pencil-effects)

Podemos exaltar-nos com a nossa obra-de-arte-em-si, podemos recordar a emoção que sentimos quando foi tocada, quando um conjunto de músicos e/ou cantores lhe deram vida e realidade sonora, podemos sentir o calor dos aplausos entusiásticos (se foi o caso) do público ali presente, podemos até ficar de rastos uma semana ou mais tempo face ao vazio que se segue, que algo ainda indefinível vem ligar-se a essa sucessão de eventos, de sentimentos, de emoções.  

O que se vem ligar à nossa excelente obra-de-arte-em-si é sempre o lugar onde tudo isso ocorreu. Esse lugar chama-se instituição cultural e apresenta-se perante nós como uma estrutura organizada numa hierarquia de prestígios simbólicos.

O renitente olhar de Bourdieu, que se recusa a olhar exclusivamente para a nossa obra-de-arte-em-si e nunca abandona a societates onde tudo sempre acontece, faz-nos a sua pergunta mortal: "e quem criou o criador?"

Esta pergunta incómoda vem-nos lembrar, impor, obrigar a considerar o lugar complexo onde tudo aconteceu e, desse modo, força-nos à desditosa conclusão: a nossa obra-de-arte em-si ocorreu num determinado tempo - cuja passagem nos aflige - e num determinado lugar - cuja existência se manifesta de um modo institucional hierarquizado.

Esse conjunto de lugares dotados de um prestígio simbólico particular - cada um deles ocupa um ponto dessa hierarquia, seja qual for a prática musical em questão, o que, aliás, conforme ela varia, pode mesmo inverter ou alterar os termos e a ordem da hierarquia simbólica em questão - é muito vasto e, pela sua própria natureza e poder simbólico adere à obra e somos obrigados a admitir que o em-si da obra - ela permanece igual ao que sempre foi - se tornou real num determinado espaço, numa determinada instituição, uma fundação, uma sala de concertos, um teatro de ópera, um centro cultural, um espaço informal ou discreto que, naquele momento e não obstante, se transforma enquanto lugar passando como todos os outros a institucional, no qual a obra-em-si obteve a sua realidade sempre em adesão, em simultaneidade, em associação  - como quisermos - ao lugar que, afinal, sabíamos bem que existia, mas que o nosso desejo artístico de permanecer no em-si da obra-de-arte que miraculosamente nos foi dado fazer - com os outros - não queria nem quer reconhecer como existente, como importante, como determinante, mesmo como mera condição de possibilidade. Sem ele, o lugar, não teria havido obra de arte-em-si-e-ali (temos de acrescentar).

Não existe nenhuma prática musical que não contenha em si esse "contexto", palavra que todos os formalistas e adeptos da music-itself gostariam que não viesse manchar com a sua vulgaridade sem requinte a nossa ilusão inicial. Este será o olhar sociológico: priveligia o contexto. Mas devemos prosseguir. 

Dois últimos pontos: múltiplas articulações da obra, do lugar, do objecto e do ser ou considerar os pencil-effects (Harman).

A obra de arte é uma coisa. Uma peça musical é uma coisa. Nesse sentido é lançada no mundo como qualquer outro utensílio que resulte do trabalho humano. Mas Heidegger distingue utensílio e obra de arte. Será no seu ser-obra algo que, para além disso - ser coisa - contém em si um mundo, a posição de Gadamer anos mais tarde.
No seu livro Hermenêutica, Richard E. Palmer comenta de perto as posições de Gadamer e sublinha que, perante uma obra de arte, "é toda a nossa autocompreensão que é avaliada, que é posta em risco. Não somos nós que interrogamos um objecto; é a obra de arte que nos coloca uma questão, a questão que provocou o seu ser".
Em Verdade e Método, Gadamer apresenta uma visão da arte como transformação numa forma, realizada pelo artista, que é verdadeiramente a verdade do ser: "O que antes foi já não é, mas aquilo que agora é, aquilo que se apresenta na interpretação da arte é a verdade que agora perdura". (106). Portanto, a obra de arte interpela os que a observam, a olham, a ouvem, etc. Não se trata de 'mero' prazer estético - como foi pensado durante muito tempo até Kant - mas antes algo que acrescenta mundo ao mundo, sob a forma dessa interpelação irredutível do sujeito ao ser colocado perante a obra: um conhecimento  / mundo partilhado que nos interroga. 

Julgo ser útil, instrutivo, passar pela posição dos filósofos chamados realistas especulativos de hoje (Manuel DeLanda e Graham Harman) ou realistas críticos (Roy Bhaskar) sobre os objectos existentes no mundo, objectos fabricados, criados pela actividade humana, tal como as obras de arte. 
Diz Harman "um lápis é irredutível aos seus átomos, mas também é irredutível à sociedade que o produziu e à gama completa de efeitos-de-lápis [pencil-effects] que gera". 
Esta posição permite regressar à obra de arte - sempre enquanto artefacto humano - mas considerar de outro modo os seus efeitos-de-obra

Nesse modo de ser obra - uma coisa - ela adquire uma independência total do seu criador. Feita a obra, não importa a sua própria opinião sobre ela. Pode guardar afectos ou encantamentos ou insatisfações privadas. Mas está separado dela para sempre. A obra existe enquanto obra que se manifesta e será perene. O público satisfeito ou não com ela - que o interpelou - o crítico indeciso, insatisfeito ou impressionado - na sua própria e particular reacção à interpelação, estão tão distantes daquele ser-obra como o criador. Este fez o seu trabalho artístico que, uma vez terminado, o distancia do resultado: está perante uma coisa lançada no mundo como os outros.  

Diz esta posição que não há contexto? De modo nenhum. Os pencil-effects são gerados no mundo, têm lugar nele, mesmo que não se tenha acesso a, nem conhecimento d'os efeitos, de tudo aquilo que é gerado. O que nos diz é que sendo obra ela persiste como tal de forma independente face aos mundos-da-arte que regulam e organizam a vida cultural e que, desse modo - mas apenas desse modo - interferem com o seu destino. Esta interferência verifica-se, não na obra-em-si - permanece igual - mas no seu momento histórico de recepção e de todas essas consequências particulares. Concluindo a sociologia analisa os lugares e a recepção; a filosofia poderá analisar e normalmente fá-lo apenas em geral, analisa a obra enquanto obra de arte.

Uma consciência da importância do lugar onde a obra se enuncia, se realiza, se apresenta pela primeira vez, pode não alterar o modus vivendi criativo, secreto ou público, solitário ou partilhado, de cada artista. O lugar e as suas implicações no seu destino de obra, no quadro dos poderes que regulam o mundo musical, são contextuais e determinados de cada vez, em cada momento histórico, existem tanto como outras coisas do mundo: uma sociedade, uma cultura, uma dominação global, uma subalternidade local, etc. Tudo isto existe. Mas nem tudo é passível de ser reduzido por uma ciência que apresente resultados numa lista, nem por uma hegemonia historicamente provisória. É importante saber e considerar esses efeitos na medida em que são reais. Mas, na obra, sendo irredutível a esses efeitos sociais, historica e geoculturalmente definidos, tal como a diagramas de frequências que possam ser feitos dela e servir um qualquer objectivo cientifico, é fulcral considerar com Gadamer, o mundo criado, o algo que lá permanece, ou seja, a sua irredutibilidade singular. Ninguém pensará que as Paixões de Bach, nos seus mais de oitenta anos de silêncio entre as duas primeiras e únicas execuções até à terceira já nos anos 1830 do século XIX, terá perdido alguns dos seus atributos enquanto obra de arte. Permaneceram sempre - no silêncio - iguais ao que sempre foram uma vez criadas. O modo histórico  de recepção é que, pelo contrário, sofreu alterações e mudou.  

A obra gera efeitos, tal como o lápis: work-of-art-effects.
 
A obra-em-si existe, depois daquele momento inicial descrito. É uma coisa, um artefacto humano. 
Existe a ideologia da music-itself - as ideologias são factos da realidade - que gostaria e pretende retirar a obra do mundo e fazê-la descer de um limbo inexistente. Mas é a obra como objecto-de-arte-singular - cada uma é sempre uma única - que tem ou pode ter a capacidade de inversamente poder criar um mundo em si mesmo e pela sua própria existência. Nenhuma obra de arte é sem consequência - outro facto da realidade.
A geopolítica cultural no interior de uma cidade, de um país, de um continente, do mundo, ao aderir à obra, ao colar-se a ela, marca, abre ou fecha, expande ou reduz, o seu destino posterior. Mas - e este é o ponto principal - não tem a possibilidade de fazer dela uma coisa diferente daquilo que ela é e sempre foi, a partir do momento em que é, em que existe.

Nesse sentido toda a descrição inicial da nossa exaltação pode regressar - no seu carácter particular, subjetivo e intersubjetivo (a enorme multiplicidade sensível entre quem faz, quem realiza e quem ouve, etc) - agora talvez consciente do que significa ser-obra, tanto para o criador-criado como para o espectador-emancipado. O mundo deixou de ser o que era até então.

António Pinho Vargas, Fevereiro, 2017