1. Não tenho zona de conforto. A minha zona foi desde início uma zona de desconforto. Ninguém tem culpa. Sou o único responsável. Há diferentes práticas musicais no mundo e a partir dos anos 70 fui eu que me coloquei sempre na posição instável entre as categorias, os géneros, os modos.
2. Pior ainda: se cada uma dessas zonas, dessas categorias, tem os seus habitantes próprios, o facto de ter mantido de forma razoavelmente intactas as fronteiras de cada uma, sendo habitante de várias, só agravou o problema-desconforto.
3. O conceito de persona de Jung pode ajudar-me a tornar-me mais claro. As personas eram as máscaras dos actores nas tragédias gregas. Cada máscara / persona, era o rosto provisório de cada personagem da tragédia no palco. Segundo Jung, na vida real, a primeira persona cola-se ao rosto verdadeiro do homem público. Qualquer alteração posterior do seu território, da sua zona principal de actividade, depara com a coexistência do novo território e da imagem persistente da anterior máscara / persona. Aqui reside um conflito entre o novo rosto e a velha máscara, sedimentada, tornada granítica, ao olhar dos outros. Alguns viveram situações com alguns pontos de contacto com este problema. Stravinsky criou para si próprio três personas: o russo, o neo-clássico e o serial. A cada uma destas imagens corresponde uma zona geográfica diversa: o russo, na Rússia com Diagilev e em Paris; o neo-clássico na Suiça e depois nos Estados Unidos; o serial nos Estados Unidos depois de 1951. Este facto motiva a entrada em acção dos psicanalistas. O preço é visível: são as 3 obras russas que são tocadas com maior frequência, com algumas obras neoclássicas em segundo plano. Do período serial, pelo contrário, a raridade é a característica dominante: são tocadas raramente. Stravinsky criou a sua própria zona de desconforto por razões específicas que foram as dele e da sua geografia.
4. Nos ano 1970 estudei música clássica e composição em escolas de música e conservatórios ao mesmo tempo que com Rão, José Eduardo e os meus grupos do Porto estudei jazz de forma autodidacta mas em conjunto com este grupo de pessoas que foi variando. Mais tarde em 1983 gravei o primeiro disco Outros Lugares, continuando a estudar piano e composição com Cândido Lima Álvaro Salazar tendo feito um seminário com Jorge Peixinho, por volta de 1980. As duas práticas musicais coexistiram desde inicio e, do meu ponto de vista (que outro poderia ser?) eram incomensuráveis entre si, apesar de nos anos 70 haver uma enorme curiosidade e cruzamentos mútuos. Esse tempo acabou por volta de 1980. Regresso a cada uma das diferentes tribos.
5. Mesmo do ponto de vista técnico as primeiras músicas que fui capaz de compor não tinham em geral a sequência harmónica mais elementar típica dos standards do jazz (II-V-I) que muitas vezes toquei com todos aqueles músicos e alguns americanos ou de outras nacionalidades. Como se o meu corpo, marcado pelo estudo da música clássica que se inscrevia no corpo, tanto como a aprendizagem da improvisação do jazz e, antes, do free jazz, no momento da criação manifestasse mais a primeira do que a segunda do ponto de vista da estrutura do composto. Sendo isto patente, o facto real é que em 1983 escrevi um obra para flauta solo a pedido de Cândido Lima para um concurso no Conservatório de Braga. A zona de desconforto ou de cesura de vários modos num só homem estava definitivamente instalada. Mais expressiva ainda é a composição em 1985 de Três Fragmentos para clarinete solo, já durante a frequência de seminários de Emanuel Nunes de 1982 a 1988, estreada por António Saiote no Conservatório de Lisboa - não estive presente - aconteceu no mesmo ano em que gravamos Cores e Aromas e a sua música principal A Dança dos Pássaros. Este disco teve dois efeitos: em primeiro lugar A Dança dos Pássaros foi muito tocada nas rádios e por vezes na televisão. Tornou-se muito conhecida até hoje; por outro lado, resultou no inevitável: uma espécie de expulsão dos festivais de jazz com orientação mais tradicional. Na realidade era expectável. Não era propriamente jazz, diziam. Era um objecto entre e nesse sentido, tendo popularidade, cumpria o requisito necessário para a condenação sumária. Como já referi era frequente nas minhas composições-jazz que as sequências harmónicas apresentavam muito mais descidas cromáticas da linha do baixo do que os ciclos de quintas próprias dos standards. Pairava por cima o que na altura se designava por estética da ECM, vista como traição radical ao verdadeiro jazz. Esta visão não foi um acaso. Em 1983 tinha pensado longamente no assunto. Íamos gravar o disco com música minha. Que devia gravar? Um tema com o título Dex - Dexter Gordon evidentemente - ou outras, as tais mais decorrentes da tendência do corpo ligado pelas mãos à música clássica e a outro tipo de harmonia diferente, devedora igualmente sem dúvida de muita música da ECM e, por isso, efectivamente não-jazz de acordo com aquela visão? A minha opção foi a segunda. Dex nunca foi gravado e pouco antes (1982) tinha já decidido que não queria continuar com a vida própria de um músico de jazz (tocar em clubes, viajar para longe, ser sempre mal pago, etc.).
6. Paradoxalmente - talvez não na realidade - a essa opção de recusa, seguida da decisão de continuar a estudar piano no conservatório, só tocar com o meu Quarteto e regressar à Faculdade de Letras para terminar o curso de História (faltavam-me 7 cadeiras) - seguiram-se dois anos mais tarde Outros Lugares (1983 e mais tarde Cores e Aromas (1985) - e as duas obras que referi. Abriu-se um novo contexto do qual emergiu "a minha música", a primeira. Muitas vezes é necessário recusar um caminho para que outro se abra. Isto é fácil de dizer agora. Mas, na altura, uma vez que o futuro não está, nem nunca esteve, escrito seja onde for, a opção teve uma enorme dureza. Não sabia o que se iria seguir por isso foi antes de mais nada uma recusa, um "não quero continuar deste modo de vida".
7. Excurso
Posso dizer que toda a minha vida desde 1969 em diante foi de várias formas um combate contra o conceito de vanguarda e as suas consequências. Em primeiro lugar do ponto de vista político; em segundo lugar do ponto de vista das artes. As vanguardas históricas nas artes podem ter tido razão de ser no início do século XX e algumas das obras desse período e de outros períodos posteriores que se reclamaram do mesmo conceito, são boas obras de arte ou boas obras musicais. Não eram as obras propriamente que estavam em causa, nem sequer a hegemonia que exerceram tanto nas instituições como no ensino. Era o princípio.
O conceito, do ponto de vista político, traduzia-se originalmente enquanto "a vanguarda da classe operária", o partido. Na sua raiz estava, percebi poucos anos mais tarde, a visão de que "as massas" precisavam de ser conduzidas pelo "seu partido" face ao seu atraso, à sua incapacidade, como classe, de por si só conseguir tomada do poder político do Estado. A vanguarda era assim por definição um pequeno grupo que ia à frente, esclarecido, politizado, organizado numa estrutura disciplinada, mas traduz, ao mesmo tempo, uma visão das massas como ignorantes ou incapazes de por si só levarem a cabo essa tarefa. Os perigos desta visão - que muitos dos meus jovens amigos e/ou contemporâneos partilhavam - residiam para mim nessa assumpção de superioridade prévia e nos seus efeitos nefastos posteriores já verificados com Estaline e outros. Argumentar nestes termos era inútil e, alem disso, propiciava a crítica de espontaneísmo ou de desvio anarquizante, entre muitos outros slogans.
Por outro lado, nas artes, as vanguardas caracterizavam-se por se organizarem igualmente em grupos, redigirem manifestos e declarações de ruptura com as linguagens tradicionais, vistas com alguma razão como conservadoras e académicas. Eram uma coisa e outra, de facto, daí a importância que é hoje atribuída às vanguardas históricas dos anos 1910 e 20 do século XX. No entanto alguns aspectos se manifestavam como igualmente não isentos de perigos.
Tanto Malevich - nos textos do suprematismo - como Trotsky e outros russos revolucionários defendiam a formação do homem novo do futuro. Havia portanto um desejo, enunciado nas duas esferas, de recomposição, de reeducação do próprio humano, tanto no campo das artes como nas sociedades. Contra quem? Contra o burguês, na sua caricatura de gordo com charuto que se tinha criado ao longo do século XIX a par com o grande desenvolvimento do capitalismo nessee período. Muitas lutas justas foram travadas neste quadro e mesmo aquilo que veio a ser o Estado Social Europeu começou inclusivamente ainda com Bismark no século XIX. Os problemas vieram mais tarde e na minha juventude eram já parcialmente claros. A transformação do partido-vanguarda não na fonte da emancipação dos programas mas na reconversão ou na criação de novas formas de repressão e forte opressão era uma evidencia histórica, muitos anos antes de cair o Muro de Berlim. A ilusão de Mao seguiu o mesmo caminho anos mais tarde. Quando só há um partido a luta pelo poder passa a verificar-se no seu próprio seio e todas as divergências terminaram por dar origem às purgas aos julgamentos, condenações e fuzilamentos sob as mais diversas acusações.
Nas artes um outro tipo de processo com alguns pontos de contacto se verificou. Avançando algumas décadas encontra-se o fenómeno global seguinte: as vanguardas artísticas tinham orgulho no seu esplendido isolamento, no seu combate proclamado contra a instituição-arte. Peter Burger na sua Teoria da Vanguarda analisou este processo em profundidade. A sua conclusão fala-nos do falhanço das vanguardas. Porquê? Não apenas o combate contra a instituição-arte falhou como, pior do que isso, ocorreu aquilo que as vanguardas mais temiam: que a massa que vinha atrás, que era necessário educar e tornar culta, na realidade, numa aliança imprevisível de 1950 a 1980 entre a instituição-arte e os novos enriquecidos das grandes empresas de Wall Street e de todo o mundo, simplesmente apreciaram a arte de vanguarda e compraram por alto valor as obras feitas-contra a instituição-arte. Assim esvaiou-se o objctivo antes proclamado e o carácter de mercadoria sobrepôs-se aos manifestos históricos ou das segundas vanguardas pós-1945. Deste modo em lugar de destruir as instituições, de as substituir por outras-por-vir, a arte de vanguarda foi comprada pelo grande capital e exposta no próprios locais que dizia combater, o que provocou uma aceleração sem fim das formas artísticas contra-a-arte, sempre seguidas da sua aquisição e exposição. Como afirma Zygmund Bauman o segui-se o sucesso sem precedentes, em última análise, aquilo que mais temiam.
Porque? Porque aquilo que é comum às duas esferas é o efeito de distinção, o poder olhar para si próprio como superior, à frente do seu tempo, avançado e outras características sempre presentes no argumentário típico desses movimentos, derivado em boa parte da filosofia da história hegeliana, via Adorno e alguns outros. No entanto o prestigio simbólico que lhes ficou associado está ainda operativo mau grado a total inversão que a realidade lhes forneceu. O aspecto que desde novo me incomodou foi, acima de todos - há vários - a arrogância mal disfarçada que presidiu à maior parte destes movimentos, o seu desprezo secreto pelas "massas", mesmo nos casos que diziam defender ou trabalhar em seu nome. De um outro modo, manifestava-se nesta esfera o mesmo fenómeno da "linha justa", do "caminho único em direcção ao futuro", que na politica deu origem aos maiores crimes, como é sabido.