Os outros termos, pelo contrário, fazem parte de um arsenal discursivo diverso, directamente proveniente do pensamento associado a uma certa visão das qualidades ou das deficiências das obras musicais. Partem de vários pressupostos: a obra deve ter equilíbrio de proporções - entre as diversas secções - a linguagem musical deve ser voltada para o futuro - ou por outras palavras de ser "de vanguarda" ou "progressiva" - a vulgaridade deve ser evitada como sendo sinal da perda de requinte espiritual, deve-se usar materiais "nobres", sendo os vulgares sempre sinais da contaminação com as artes populares, vistas como inferior, e, finalmente, a coerência, conceito igualmente corrente na linguagem comum, é muitas vezes usado nos tratados, nos textos musicológicos ou críticos como signo demonstrável de organicidade, princípio enunciado por Goethe e continuado nos discursos sobre música durante o século XIX por von Bulow e Hanslick e transmutado mais tarde em princípio composicional pelos serialistas. Todos estes conceitos foram sendo disseminados em numerosos livros, artigos, histórias da música, ao ponto de ter sido quase impossível durante muitas décadas falar ou escrever sobre música sem usar esses conceitos, entretanto tornados lugares-comuns e, por isso, aceites como naturais.
Alguns tiveram desenvolvimentos particulares durante o século XX. A coerência, para um compositor serial, é um facto demonstrável pela análise de uma partitura ou pela descrição dos procedimentos composicionais, coisa que os compositores desta corrente fazem frequentemente ou, para facilitar, disponibilizam aos seus musicólogos de serviço. Estes escrevem então os seus textos "analíticos" -na verdade não analisam nada; descrevem procedimentos anteriormente conhecidos - que, na maior parte dos casos, assentam sobre aquilo que Taruskin designa como falácia poiética. Ou seja, mostrando os esquissos, descrevendo os procedimentos, incluindo uma página da partitura com sublinhados para este acorde, ou aquele aspecto rítmico, que revele com clareza que existe "coerência" entre todos os passos da composição, entre o esquisso, os materiais produzidos e o resultado final.
Estes escritos destinam-se a funcionar como legitimação das obras e os seus exemplos são inúmeros.
A falácia reside no facto de todo este arsenal argumentativo - e derivativo - ser baseado não naquilo que a obra é enquanto realidade sonora destinada à percepção sensível do ouvinte, mas naquilo de a obra contém que, estando lá, como nos foi mostrado pelos autores, devia ser forçosamente ouvido exactamente nos termos em que é descrito.
Este exagero optimisma, querer mostrar - através de procedimentos de tipo lógico ou pseudo-científico, como isto deriva daquilo, como esta célula contamina toda a obra, como o número 5 é central em todo o material utilizado, etc. - que, assim sendo, a obra é, sem dúvida nenhuma, boa música, bem composta e por aí fora, embate muitas vezes - infelizmente para quem gosta de música - no facto de, com surpresa paradoxal do atento leitor dessas análises, depois de ouvida, a obra afinal não ser boa ou não ter sido bem composta.
Quanto isto ocorre no final da sessão pedagógica - em várias circunstâncias do ensino dominante das décadas de 50/60 até hoje, primeiro "fazia-se" ou lia-se a análise ou a autodescrição e só no final, às vezes vários dias depois, se ouvia a peça propriamente dita, a surpresa é inaudita.
De facto qual será o factor decisivo que, afinal, destrói em alguns minutos - a audição da peça - aquilo que tão elaboradamente nos tinha sido apresentado como sendo tão bem feito?
Neste caso, tal como nos lugares comuns do discurso crítico, o que está em causa são os pressupostos recebidos, aceites e não interrogados.
Wolfgang Rihm escreve que é compreensivel que o compositor procure defender o seu trabalho mas, para ele infelizmente, não há nada que ele possa dizer ou fazer que garanta que a peça é ou será boa.
É por isso que compor é um acto contingente. A única solução é lançar as peças no mundo.
Um discurso crítico que acredite na falácia poiética irá reproduzir aquilo que lhe foi inculcado como sendo o mais importante.
Um discurso crítico autónomo colocar-se-á na posição de total disponibilidade para o que vier.
Penso que isso é mais fácil no público - dito não preparado ou não especializado - do que no círculo restrito dos campo culturais compostos pelos próprios produtores culturais.
Se realmente é verdade que o "público não preparado" tem menos contingências para se abrir a um "julgamento" sensível de uma obra, por outro lado há que não esquecer que esse mesmo "público" é o que ouve 8 horas de rádios que passam sempre "a melhor música..." durante o dia inteiro e cuja sensibilidade auditiva não está habituada a uma "dissonância" mais forte que uma 7ª num acorde diminuto...
ResponderEliminarAssim, uma obra pode ser vista como boa ou má segundo os seguintes paradigmas: à procura de uma coerência "formal" possibilitada por uma instrução na linguagem musical, mas esquecendo o resultado auditivo final; à procura de uma coerência auditiva, mas por comparação com aquilo que já conheço; abrindo-me a um esforço de compreensão e fascínio, que provavelmente não irá oferecer uma opinião sincera e fundamentada até ouvir a peça umas quantas vezes...
E creio que é esta "abertura a um esforço de compreensão e fascínio" que me parece ser o mais problemático actualmente: quem se quer desinstalar daquilo que sabe, daquilo que já é confortável, nos dias que correm?
Ou seja, é minha opinião que o caminho para encontrar uma solução para todos estes problemas e questões que os compositores e músicos enfrentam, passa muito por uma educação (e não um ensino) musical que se esforce por elevar o nível cultural da nossa sociedade.
Mais do que uma reacção "contra", a mim interessa-me mais uma posição de aproximação, ajudando cada um a poder pensar por si e dar as suas opiniões pessoais (e não as opiniões que leio na "Bola" ou no "Jogo").
Por isso, deixo um agradecimento ao Prof. António Pinho Vargas por esta sua partilha neste blog.