Apresento aqui alguns extractos das conclusões gerais do livro Música e Poder.
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Se a diferenciação entre nós e eles é a estratégia identitária básica, então as identidades de fronteira são aquelas em que a diferenciação é sempre problemática, sempre em aberto e nunca resolvida. Talvez aqui radique a permanência de discursos idênticos sobre períodos históricos muito distintos. Esta problemática traduz-se numa ansiedade centrada em dois fantasmas: o do atraso de Portugal em relação à Europa e a recorrente necessidade de uma rápida modernização. Deste ponto de vista, como estado de permanente ansiedade, a música portuguesa e a sua narrativa reflecte em vários graus e escalas a sucessão interminável de períodos de atraso e de períodos de modernização. São dois topoi interligados do ponto de vista da necessária superação: é o diagnóstico do atraso que obriga à necessidade da modernização. Em relação às estruturas-base da actividade musical, músicos, orquestras, partituras, compositores, professores, etc., a cada “modernização” – de alcances variáveis – sucede-se um novo desajuste, um novo atraso, sempre visto em relação à Europa, mítica ou mitificada, o lugar onde existe aquilo que “cá dentro” não existe ou não funciona. A consciência, também variável, desta permanência estrutural cria um dos pólos da identidade de fronteira: aqui, onde vivo e componho é o país onde não há condições, estruturas, apoios, etc. O outro pólo, os “outros”, a “Europa”, “lá fora”, tem duas dimensões: por um lado é-me dado a ver na programação internacional a que posso semanalmente assistir nas suas várias salas de apresentação, o “moderno” que devíamos conseguir ser mas não fomos ainda capazes. Estas salas, com destaque para a Gulbenkian, são o “lá fora” trazido “cá dentro” todas as semanas. O eufemismo corrente “de nível internacional” é o leitmotiv de quase todos os programadores e de quase todas as programações culturais. Todos optam por essa auto-representação individual ou colectiva e é ela que sustenta a produção de inexistências.
Face a essa presença do Outro europeu, do moderno, do avançado, face a esse convívio regular com a pequena europa, o espectador português, especialmente das elites, assume maioritariamente, neste campo musical específico – mais do que em outros – a ilusão de ele próprio “estar na Europa”, de “ser moderno” e de ter um gosto tão requintado como qualquer outro europeu. Deste modo imagina-se no centro, identifica-se com a sua própria imaginação do centro e aprende a desviar o olhar para o outro lado da identidade de fronteira. Poderá até admitir que nós somos nós em vários outros aspectos mas, pela sua vida espiritual, alimentada e realimentada pela vivência da frequência de concertos e dos espectáculos, imagina-se parte desse Outro. A forma que melhor descreve o principal problema que analisámos é essa: na vida musical portuguesa em geral prefere-se desviar o olhar para longe daquilo que se produz aqui. Daí a primazia do “lá fora”.
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Uma das dificuldades desta tarefa analítica é justamente o facto de, em Portugal, como noutros lugares, se olhar a Europa como uma entidade una, sem fracturas, sem desigualdades culturais. Há várias europas, a Europa mítica enquanto centro irradiador de cultura, ciência e poder e as Europas periféricas vivendo simultaneamente à sua sombra e debaixo do seu fascínio. As reflexões sobre a cultura europeia, na actual fase de confronto cultural com a predominância dos Estados Unidos em múltiplos aspectos, inclusivamente a sua predominância a nível dos imaginários culturais, tem sido muitas. Ora este tipo de reflexões, por importantes que sejam, não pode ignorar nem a diversidade nem a desigualdade internas da Europa. Como a tendência principal é, pelo contrário, a de encontrar e unificar os factores que fizeram da Europa o que ela é historicamente, avultando a consideração da cultura europeia vista como um todo, daqui resulta uma negligência patente dos parentes pobres dessa cultura. A questão que tratamos neste trabalho entronca nesta relação entre a Europa forte e a Europa fraca. Como foi bem assinalado por Chakrabarthy, Boaventura de Sousa Santos e Eduardo Lourenço, aquela cultura europeia que nos parece una, que é celebrada como sendo uma, foi formada durante vários períodos históricos recheados de conflitos e através de construções reais ou simbólicas, e essa mitificação ignora os aspectos culturais que foram negligenciados, menorizados, esquecidos pelos vencedores no seio da Europa. O objecto que nos propusemos tratar, a música portuguesa da tradição erudita, é uma das várias expressões artísticas menorizadas pelos vencedores da modernidade do Norte, e a sua subalternidade prossegue até hoje no contexto da União Europeia que evolui “a duas velocidades”. As razões da subalternidade são tanto internas como externas, mas as suas manifestações estão sempre muito interligadas. É na relação desigual de poder entre os agentes activos no campo cultural dos países centrais e os agentes locais que radica o essencial da ausência; incapazes de qualquer negociação em termos de troca cultural e com forte tendência para se auto-inferiorizarem face ao poder/saber que emana do centro, transformam-se em verdadeiros agentes locais do poder do centro, como grandes e infatigáveis compradores. Daqui decorre que aquilo que é visto como “simples característica transitória” do atraso tem-se mantido nos sucessivos períodos históricos. Aquilo que em numerosos textos é referido como “o estrangeiro” é, na verdade, constituído por um campo, um grupo restrito de pessoas e instituições que controla e regula a vida musical chamada internacional: não se pode constituir um campo a não ser a partir de indivíduos, diz Bourdieu. O seu espaço de enunciação localiza-se nos países centrais da Europa forte. Se existe um força centrífuga que atrai para esse espaço localizado numerosos compositores, verifica-se igualmente que o seu espaço de irradiação tende a ser o resto do mundo no qual a cultura ocidental adquiriu presença e primazia.
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Todos estes aspectos configuram um sistema cultural de dominação e hegemonia: tem sido protagonizado por um bloco histórico e estético que entretanto vai perdendo lentamente o seu controle hegemónico sobre a cultura na viragem do século, embora esse processo esteja muito longe de estar consumado. Os agentes, os solistas, os maestros, os compositores, foram criando uma verdadeira tribo que percorre anualmente os diversos festivais associados ao subcampo e, por vezes, são requisitados por instituições mistas. Apesar de o número de espectadores nunca ser grande, sendo muitas vezes mesmo muito reduzido, a independência das estruturas do subcampo é assegurada pelo prestígio simbólico adquirido junto dos ministérios da cultura e outras entidades oficiais que, com maior ou menor dificuldade, continuam a assegurar o seu funcionamento.
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Através da mise en abyme que poderá caracterizar o trabalho do artista, o objectivo central deste trabalho foi o de relacionar a ausência da música portuguesa com a hegemonia do dispositivo cultural formado nos países centrais, com o poder administrativo-cultural das suas instituições. A ausência da música portuguesa não se verifica porque ela seja inferior, sem qualidade, sem interesse – é, antes de mais nada, principalmente ignorada e desconhecida – e não se manifesta num vácuo. A ausência existe porque defronta um dispositivo de poder que não quer deixar de o ser, que nem sequer se vê a si próprio como poder. Vê-se como natural, como produto da relevância adquirida pelas práticas anteriores, relevância verdadeiramente construída ao longo do séculos XIX e XX e nunca questionada, nunca problematizada, traduzida e alicerçada numa visão universalista do campo musical erudito. Esse dispositivo de poder/saber construiu um fosso, uma linha abissal que só é atravessada num dos dois sentidos.
in Música e Poder, Concluões Gerais.
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