quinta-feira, 28 de julho de 2011

Trabalho depois das férias

Novo disco em Setembro de 2011 na Editora Althum.

António Pinho Vargas (piano solo)
Concerto do IST - Improvisações
Setembro de 2011, Editora Althum
Integrado nas comemorações dos 100 anos do Instituto Superior Técnico

Obras de Outubro a Dezembro: estreia e concertos


Onze Cartas
para Orquestra Sinfónica, electrónica e três narradores (pré-gravados), 2011

Textos de Italo Calvino, Jorge Luis Borges e Bernardo Soares ditos nas línguas originais por Giacomo Scalisi, Roberto Perez e António Pinho Vargas.
Electrónica: António Pinho Vargas com assistência de Ricardo Guerreiro.
Assistência e dispositivo informática musical de José Luís Ferreira.

Primeira audição absoluta dia 1 de Outubro na Casa da Música no Porto; Orquestra Sinfónica Casa da Música, dir. Christopher Konig
Primeira audição em Lisboa dia 19 de Novembro no Teatro de São Carlos; Orquestra Sinfónica Portuguesa, dir. Diego Masson

Encomenda da Casa da Música, do Centro Cultural de Belém e do Teatro Nacional de São Carlos.

Six Portraits of Pain (2005)
para Violoncelo Solo e Ensemble
Primeira audição em Lisboa dia 21 de Outubro no PA do Centro Cultural de Belém.
OrchestrUtópica dir. Cesário Costa, violoncelo, Marco Pereira
Concerto comemorativo dos 10 anos da OrchestrUtópica

Duas Peças para Orquestra de Cordas
(1992-99)
dia 9 de Novembro na Centro Cultural de Belém.
Orquestra Metropolitana de Lisboa dir. Cesário Costa
integrado da série Estreia Outra Vez

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Nota a Obra Completa para Piano de Schoenberg, para o CD de Madalena Soveral, Açor, 2009

During his lifetime and even – astonishingly – in the half-century
since his death, the music of Arnold Schoenberg
has been influential and controversial out of all proportion
to the frequency with which it has ever been performed
or otherwise disseminated

Richard Taruskin, The Musical Times, 2004

A história das gravações da obra completa de Schoenberg confirma em absoluto a frase de Taruskin em epígrafe. Não sendo de modo nenhum conforme ao seu estatuto mítico de compositor fulcral do Século XX será mais conforme à dificuldade habitualmente associada à sua música. Essa dificuldade é antes de mais nada verificada na recepção da sua obra por parte dos frequentadores de concertos, que vê em Schoenberg o primeiro e fundamental responsável pelo esoterismo isolacionista que marcou o modernismo musical durante todo o Século XX. Para além disso, a relativamente reduzida discografia da obra para piano releva uma segunda dificuldade: não só provocou a problemática recepção pública como não foi propriamente adoptada pelos pianistas. Os casos que se podem apontar revelam em primeiro lugar o facto de terem sido já “especialistas de música contemporânea” – como, por exemplo, Claude Hellfer em França – aqueles que se tornaram intérpretes da música dos compositores da Segunda Escola de Viena. As duas notáveis excepções na sua discografia confirmam esta regra pela sua particularidade. Glenn Gould, o genial e excêntrico pianista canadiano editou em 1968 as cinco peças que constituem o legado pianístico de Schoenberg. Alguns anos mais tarde, Maurizio Pollini fê-lo igualmente; o grande pianista italiano pertencia ao grupo de amigos de Claudio Abbado e de Luigi Nono, aliás, genro de Schoenberg. Pollini teve sempre interesse por alguma música do século XX ao contrário de pianistas de estatuto equivalente que normalmente se circunscreveram ao “grande” repertório canónico clássico-romântico acrescentado nalguns casos por obras de Prokofiev e poucos mais. Não se cumpriu a profecia-expectativa de Schoenberg que esperava que o tempo viesse a permitir a aceitação geral da sua música.
Para já algumas informações sobre as datas da composição destas obras: as três peças Op. 11 foram compostas em 1909; as Seis pequenas peças Op. 19 em 1911; as Cinco peças para piano Op 23 em 1921 e completadas em 1923, data composição da Suite Op 25. As duas peças Op 33a e 33b são de 1930.
A primeira ideia associada a Schoenberg é a da invenção da série de doze sons. Este procedimento técnico, que visava obter uma forma de organizar o total cromático de acordo com princípios lógicos, sobretudo no que respeita às deduções a partir de uma forma serial original, surgiu após uma longa maturação durante a qual Schoenberg viveu uma crise criativa que o impediu de completar sequer uma peça durante uma década. As Suites Opus 23 e Opus 25 são justamente das primeiras peças a serem compostas já com a nova técnica e se confrontadas com o Opus 33a e 33b, publicadas já durante o seu exílio nos Estados Unidos, permitem vislumbrar a evolução das técnicas seriais de Schoenberg. No entanto, mais rico ainda para os ouvintes será comparar as peças Opus 11 e Opus 19 da chamada fase da atonalidade livre com as outras três obras seriais. Para além das comparações tradicionais entre estes dois grupos de peças, que abordaremos mais adiante, foi de certo modo preciso esperar por Wolfgang Rihm para voltar a olhar para as obras da fase atonal de Schoenberg não como antecipações cromáticas do princípio serial – mas ainda não completamente “organizadas” – mas antes como exemplos prodigiosos de expressão musical intuitiva e livre. Adorno e Boulez marcaram a recepção de Schoenberg nos círculos estreitos da música contemporânea. Enquanto o primeiro, sempre no fio da navalha que caracterizava a sua prosa torrencial e contraditória –de tão dialéctica – considerava que, se o dodecafonismo correspondia às “tendências objectivas do material musical” revelava, simultaneamente, a presença inquietante da racionalidade própria da sociedade administrada, Boulez foi talvez mais claro, sendo as suas preocupações centradas exclusivamente na linguagem musical. Para ele, Schoenberg não teria sido capaz de levar até às últimas consequências a sua descoberta genial original. Assim, Boulez esconjurou o uso das formas barrocas e a rítmica típica das obras seriais de Schoenberg em detrimento da eleição momentânea de Webern como o verdadeiro modelo a seguir por volta de 1950. Enquanto Adorno criticava um excesso de racionalidade, Boulez censurava o defice de aplicação do modulo 12 apenas às “alturas”, como se dizia com o vocabulário da época.
Em todo o caso esta trilogia - Schoenberg, Adorno e Boulez - criou aquilo que se transformou, por um lado, numa vulgata na qual é virtualmente impossível discernir quem disse o quê e, por outro lado, no discurso hegemónica que dominou o ensino da composição e, até certo ponto, o pensamento musical no campo contemporâneo até grosso modo 1980. Um bom exemplo desta posição, entre os muitos possíveis, encontra-se no texto de Henry-Louis de la Grange, incluído no CD de Gould. O autor escreve sobre o Op. 11: “A primeira e a segunda desta peças traem ainda influências nitidamente românticas. Schoenberg permanecerá sempre fiel a certas fórmulas pianísticas herdadas de Brahms, mas que aqui insere num contexto inteiramente novo. Com efeito usa uma linguagem resolutamente atonal, de uma polifonia cada vez mais serrada, ao mesmo tempo que tende para o “total cromático” e a “variação perpétua”, princípios de base da futura técnica serial”.
Um dos erros mais comuns da musicologia e da critica musical é assumir sem hesitações tudo aquilo que Foucault problematizou em torno da noção de autor. É desta assumpção do conceito de autor e do conceito de obra de forma não-interrogada, não questuionada, que deriva a tendência para leituras retrospectivas daquelas duas obras atonais. Nós sabemos efectivamente que, mais tarde, Schoenberg criou os princípios do dodecafonismo serial. Deste conhecimento actual, dá-se o pequeno passo para ouvir e interpretar estas obras como contendo já em si, em germe, o princípio serial. É isto que explica que os teóricos americanos da Set Theory tenham dedicado inúmeros escritos e análises ao estudo das peças atonais de Schoenberg, à procura de princípios intervalares de similitude ou equivalência entre grupos de notas, justamente aquilo que caracterizava, por definição, uma série dodecafónica: ser uma determinada estrutura de notas e intervalos dotada de propriedades invariantes. Este método foi proposto principalmente em The Structure of Atonal Music de Allan Forte, a partir dos escritos seminais de Milton Babbit do final dos anos 1940, mas os seus limites analíticos residem principalmente no facto de se concentrar apenas nas relações entre grupos de notas sem ter em conta sequer o ritmo para não falar de um vislumbre de análise de figuras ou gestos.
O meu ponto principal neste aspecto considera que a noção de autor, com a sua ilusão intrínseca de abarcar “toda a obra”, descarta a contingência humana que, apesar dos lugares comuns das narrativas hegemónicas sobre a história da música do século XX, é absolutamente decisiva na criação artística. O exercício que é necessário fazer é colocar-mo-nos na situação e na circunstância de Schoenberg nesse período atonal. Teria sido absolutamente inevitável para ele evoluir na direcção da criação da série? Teria sido possível, como hipótese técnica, que Schoenberg tivesse prosseguido o seu modo de compor desse período?
Claro que estou a ouvir os partidários que restam da noção de “tendência histórica do material” (adornianos orfãos de Adorno) – conceitos aliás idênticos aos conceitos marxistas sobre a evolução das sociedades – afirmarem: “Mas, na verdade, o serialismo já lá estava implicitamente, em estado potencial e, por isso, o percurso de Schoenberg correspondeu efectivamente às tendências históricas do material”. Não creio. Julgo que alguns aspectos de ordem ideológica e, mesmo, psicológica terão sido muito (mais) importantes. Dentro das determinações que conduziram o compositor nessa direcção avulta, por exemplo, a consciência messiânica de uma missão a cumprir. “Alguém tinha de o fazer, ninguém se ofereceu, respondi eu à tarefa”. Esta ideia deriva da sua inserção total no pensamento de raiz hegeliana - “A história do mundo é a do progresso da consciência da liberdade”– e a convicção de que, no campo musical, cabia aos alemães cumprir esse desígnio histórico. Tinha sido Franz Brendel o primeiro autor a publicar, já em 1852, uma Geschiste der Musik in Italien, Deutschaland und Frankreich aplicando conscientemente a dialéctica hegeliana, “que não se limitava a mostrar que as coisas mudam, mas qual era o propósito das mudanças”, ou seja, o seu fim, o seu destino, a sua razão de ser já inscrita na história.
Para Adorno – que via na fase atonal o momento exemplar do percurso criativo de Schoenberg - e a sua tendência para aplicar conceitos da recém-criada psicanálise freudiana às suas análises musicais - uma das razões que levaram à série dodecafónica teria sido “o medo da liberdade”. A fase “da liberdade” atonal – anterior à conceptualização do sistema dos doze sons – tinha sido, no entanto, muito problemática para o compositor. Apesar dos sucessos das suas peças pós-românticas - Gurre-Lieder e Noite Transfigurada – e mesmo de Pierrot Lunaire, obra composta pouco depois do Op. 11 e do Op 19, sobretudo a partir do Quarteto nº 2, Schoenberg foi muito criticado em Viena e radica nesse facto a necessidade que levou à criação de uma Sociedade de Concertos para apresentar em público as obras do seu círculo. Das acusações de caos sonoro derivou para o compositor uma gradual necessidade de, após ter realizado a sua missão destrutiva – consumar o fim da tonalidade - evoluir para um sistema de composição que lhe permitisse organizar o total cromático que tinha atingido o que ele próprio definia como a “emancipação da dissonância”. Para Schoenberg, era agora necessário organizar as dissonâncias que ele próprio tinha “emancipado”. A sua ideia de Grundgestalt – o núcleo original de onde derivasse o todo – concretizava-se na série dodecafónica de uma forma que, para além disso, se inseria na ideia de Goethe da Urpflanz – a planta arquetipal – base do objecto artistico, feito a partirde uma célula original, considerado como organismo, dotado de vida própria, em função das suas virtualidades internas, o chamado organicismo. Segundo Taruskin, Schoenberg escreveu no seu caderno de esquissos, aquando a composição do Quinteto de Sopros Op. 26 o seguinte: “Penso que Goethe estaria muito satisfeito comigo”. A série era a promessa cumprida do perfeito organicismo.
O sucesso desta ideia e destes argumentos foi muito superior ao sucesso da música de Schoenberg propriamente dita. É deveras espantoso – mas é um facto – ouvir ainda hoje a repetição destes argumentos, enunciados com um tom solene de descoberta pessoal pour épater les jeunes compositeurs e vários outros tipos de ignorantes. É igualmente de considerar, finalmente, a obsessão de Schoenberg com o seu próprio lugar na história da tradição alemã da qual resultaram as ambiguidades do seu discurso oscilando entre a recusa radical da tradição tonal – a partir do conceito disseminado do “colapso da tonalidade” - e a tentativa de legitimar o presente justamente no passado, pelo seu uso de motivos e a sua técnica da “developing variation”, por exemplo, no artigo “Brahms, the progressive”.
Face a tudo o foi dito penso não será de todo descabido colocar a hipótese de, apesar de ter sido essa a evolução real que Schoenberg prosseguiu, ela não ter constituído nenhuma resposta obrigatória a uma qualquer necessidade histórica mas ter sido antes uma opção do compositor. Na verdade, muitos outros compositores seus contemporâneos e/ou posteriores a Schoenberg, não partilharam a sua opção e continuaram a compor com base noutros pressupostos. A narrativa hegemónica procurou excluí-los da história, procurou anular ou desqualificar o seu trabalho e é por essa razão que assistimos actualmente a vários esforços no sentido de reescrever a história da música do século XX, definitivamente mal contada durante demasiados anos.
Sublinhar este aspecto – a opção em detrimento da raiz – reconfigura o contexto teórico e ideológico que marcou fortemente a nossa visão da obra de Schoenberg. É nessa perspectiva que se pode e deve voltar a ouvir estas peças. Já não sob o peso das perspectivas anteriores que procurei desmontar, mas simplesmente como peças de um compositor importante. Certamente que todo o contexto descrito é relevante para uma compreensão plena do seu percurso. Mas o tempo e as suas propriedades, tanto escultóricas como assassinas, obriga-nos a recolocar as questões de um outro modo. É nesse sentido que se pode interpretar a posição de Rihm. Ao incluir o Schoenberg da fase atonal como exemplo de liberdade, ao lado do Beethoven dos últimos quartetos, de Debussy, Varèse e, acima de todos, de Robert Schumann, Wolfgang Rihm chama a atenção para aquilo que me parece ser o mais importante: o facto de haver mais “potencial de futuro” nessas obras de Schoenberg do que no seu sistema posterior.
Gostaria de terminar estas notas sobre este excelente e importante disco com interpretações transbordantes de energia e clareza – com uma referência pessoal ao percurso de Madalena Soveral. Esta petite histoire poderia poupar algum trabalho aos musicólogos históricos futuros, que, em Portugal, tem uma existência incipiente e bastante confinada às estufas universitárias onde tem lugar as suas investigações, se o assunto lhes merecesse algum interesse.
Por volta de 1976, Álvaro Salazar iniciou na Escola de Música do Porto, dirigida por Hélia Soveral, um dos primeiros senão o primeiro curso de análise musical em Portugal. Essa disciplina não era então parte do curriculum. A esse grupo de jovens interessados, na descoberta dos mistérios da música contemporânea, do qual fazia parte, juntou-se pouco depois Madalena Soveral. Após uma estadia em Paris a pianista regressou ao Porto onde nos satisfazia a ânsia modernista, até então frustrada, com recitais que incluíam as Klavierstück IX e XI de Stockhausen, a Sonata de Alban Berg e várias das obras incluídas neste CD. Esta gravação, deste modo, não só realiza um documento essencial e inédito na discografia portuguesa – que provavelmente permanecerá único durante muitos anos – como dá materialidade a um percurso artístico exemplar para a nossa geração.
António Pinho Vargas, Outubro de 2008

terça-feira, 5 de julho de 2011

Os discursos sobre arte e os limites da linguagem a partir de George Steiner

Sobre a questão dos juizos de valor estéticos talvez o pedaço de prosa mais importante que li nos largos últimos anos está no livro “Paixão Intacta” de George Steiner (em francês “Passions Impunies” e em inglês “No Passion Spent”).
Fiquei em estado de choque quando li por duas razões: primeiro, porque pude avaliar retrospectivamente de que forma era verdade para mim o que estava escrito; segundo, porque tomei consciência de quanto tempo tinha perdido em discussões infinitas na expectativa de convencer o adversário momentâneo das minhas razões com resultados nulos.
Diz então Steiner: “A relatividade, a arbitrariedade de todas as propostas estéticas de todos os juizos de avaliação é inerente à percepção humana e ao discurso humano. Pode-se dizer seja o que for a respeito do que quer que seja. A asserção de que Rei Lear de Shakespeare “não merece uma criíica séria (Tolstoi) , e a descoberta de que Mozart compõe apenas trivialidades são totalmente irrefutáveis. Não podem ser desmentidas nem numa base formal (lógica) nem na sua essência existencial. As filosofias estéticas, as teorias críticas, as construções do “clássico” ou do “canónico” nunca podem ser senão mais ou menos persuasivas, mais ou menos abrangentes, mais ou menos descrições derivadas deste ou daquele processo de preferência. Uma teoria crítica, uma estética, é uma política do gosto. Procura sistematizar [... mas] não pode haver prova nem refutação. […] Nenhuma proposta estética pode ser designada como “certa” ou “errada”. A única reacção adequada é a concordância ou a discordãncia pessoal". (38)

Julgo que Steiner está certo nesta posição, tanto como creio que ninguém a aplica na sua vida quotidiana. Esta posição contraria a posição implícita que motiva milhares de debates que ocorrem diariamente; toda a gente parte e pratica o ponto de vista contrário: confia no discurso como meio de rebater as posições diversas e atingir a "vitória" através da retórica usada. Penso que nunca dá resultado senão por desistência passageira do opositor (que no fundo continua convencido da justeza das suas posições). Este lado óbvio dos limites da linguagem humana tem algo de assustador e contraria as nossas práticas quotidianas de tentativas sucessivas de persuasão através do uso dos argumentos.
Mas, como diz Steiner, “pode-se dizer” (e diz-se) “seja o que for a respeito do que quer que seja” sem nenhumas consequências para o próprio, por maior que seja o disparate dito, do nosso ponto de vista.
Não há senão a opção de viver com isto.