O artigo de hoje de Rui Tavares trouxe à colação alguns aspectos relacionados com as conclusões do meu livro Música e Poder. A ausência de música portuguesa no contexto europeu verifica-se fundamentalmente por duas razões. Primeiro o dispositivo de poder activo no campo musical dos países centrais – termo que, quando o comecei a usar na tese entre 2006 e 2009 não era usado no espaço público como é hoje – revela-se como um poder de exclusão dos produtos artisticos das periferias, entre as quais está naturalmente Portugal, preferindo prosseguir com êxito a exportação dos seus próprios produtos. Em segundo lugar e com estreita relação com o primeiro factor, esse dispositivo de poder, dispondo de meios de divulgação da ideologia que consagra os seus produtos – a música dos seus países – como “naturalmente de superior qualidade”, consegue disseminar essa ideologia já com séculos de existência – a primazia da modernidade dos países do norte – e fazê-la interiorizar pelos próprios agentes culturais dos países periféricos, que se tornam assim “agentes activos” da persistente produção activa de inexistência nos seus próprios paises. Como se produz essa inexistência? Um exemplo referido há uma semana por Mário Laginha no Programa Autores II na TVI24 que passo a descrever pelas minhas palavras. Há cada vez mais músicos de jazz portugueses de qualidade da nova geração. Há cada vez mais festivais de jazz no país todo. Pois bem. Os programadores desses festivais – começando naturalmente me Lisboa - atingidos pelo vírus pseudo-cosmopolita, mas no fundo profundamente provinciano e revelador de complexo de inferioridade, que atribui ao “lá fora” – na expressão de Eduardo Lourenço – a tal superioridade “natural” inculcada pelas vias conhecidas, optam sistemáticamente e há longo tempo por “trazer cá” – outra expressão corrente no seu vocabulário – artistas de “lá fora”, uma expressão simétrica de “cá dentro”. Resultado: o jovem artista português de qualidade não tem grandes possibilidade de se apresentar nesses festivais que se tornam deste modo produtores activos da sua “inexistência”. É relativamente fácil de analisar e quaquer pessoa dentro deste meio ou do meio da música erudita sabe que é assim que as coisas funcionam.
Se isto funciona desta forma no interior do país é necessário considerar igualmente a resistência dos países centrais, as suas estruturas de poder e as suas convicções ideológicas. Antes da crise, a minha análise sobre a ausência seria facilmente considerada como “um delírio” de um compositor que se sente maltratado (e sente, dentro de alguns limites). Mas a crise trouxe ao de cima, aspectos que, estando presentes no campo cultural, não se manisfestavam com a clareza que as diferentes esferas da politica e da economia lhes veio trazer.
É por isso que trancrevo o artigo de hoje de Rui Tavares, no jornal Público. Claro que não aborda nenhum aspecto da ausência da música portuguesa “lá fora ou cá dentro”. Mas aborda um tipo de funcionamento que lhe está subjacente e a que, antes da crise, ninguém prestava a menor atenção.
A nossa tarefa é ser capaz de estabelecer relações entre as diversas esferas da actividade e, pelo menos, admitir que, em áreas onde nunca nos interrogamos sobre nada, há coisas para discutir, coisas para transformar, coisas para contestar.
Os indígenas
Por Rui Tavares
Acontece de vez em quando chegar um jornalista do Centro da Europa, incumbido de ouvir uns quantos portugueses, que me pede a opinião sobre a crise da zona euro. E eu, ingénuo, dou-lhe a minha opinião sobre a crise da zona euro. E depois, mais ingénuo ainda, digo-lhe que o tema não acaba ali, e que é importante que falemos, enquanto europeus, sobre o futuro da União Europeia. E, tonto que sou, dou-lhe também as minhas opiniões sobre isso.
Grave erro! O jornalista centro-europeu quer saber duas coisas, e duas coisas apenas. A primeira interessa-lhe enquanto centro-europeu: saber se os portugueses aguentam as reformas da troika, as implementam todinhas, e não chateiam mais. Caso contrário, quer saber se há possibilidade de os portugueses saírem da toca, revoltarem-se, quebrarem umas montras e incendiarem uns carros - e isto interessa-lhe já por motivos profissionais.
Ai se esse jornalista nos visse hoje. Neste dia mesmo, lá vamos nós aprovar mais uma medidinha da troika: despedir gente vai passar a ser um terço mais barato. Porque aquilo de que nós precisamos agora, imaginaram alguns centro-europeus (e acreditam alguns portugueses) é de mais desempregados, com menos dinheiro no bolso, para contrair o consumo e gerar mais futuros desempregados.
Segue-se esta medida ao corte de metade do subsídio de Natal. E antecederá a venda da RTP, da TAP e da Águas de Portugal, três crimes de lesa-pátria. E tudo isto os portugueses, que não são gregos nem espanhóis (e nem sequer franceses ou ingleses!), aguentarão estóica e pacificamente.
Insisto eu: mas isto não era uma entrevista sobre o euro e a União?
A essa altura, já o centro-europeu apanhou o avião para o Centro da Europa, onde a divisão de tarefas é bem clara. O futuro da União é coisa para perguntar a um francês ou uma alemã, de preferência a esses dois que o leitor está a pensar. Berlim e Paris mandaram fazer uma sangria; de Lisboa só é preciso saber se vai esbracejar demasiado ou esvair-se em sangue.
Às vezes passo-me e digo que este neocolonialismo intraeuropeu é que está a matar a União. Que aquilo que tiverem a dizer os portugueses, irlandeses e gregos não é só importante porque estes países estão na linha da frente da crise, mas simplesmente porque eles são membros de pleno direito da União, e não países de segunda categoria. Que, em democracia - a que ainda estamos apegados, por a termos há uma geração apenas -, os remédios só funcionam quando são decididos por todos.
Mas, sabem? Não é fácil. Em parte porque temos um Governo, aqui em Portugal, que não só aceitou o neocolonialismo intraeuropeu como fez dele o seu ideal. Se nos receitarem uma sangria, diz a doutrina, a nossa melhor opção é sorrir enquanto esticamos o pescoço. A docilidade ainda vai mais longe: escolhemos não ter opinião sobre para onde vai a União Europeia. Governo económico? Metas de inflação? Eurobonds? Portugal não tem posição. Disso sabe Berlim e Paris, que são coisas muito complicadas para a cabecinha de Lisboa.
Isto vai acabar mal. À força de não emitir opinião sobre as questões mais cruciais do nosso futuro ainda chegará o dia em que, num Conselho Europeu qualquer, Passos Coelho não será ouvido nem se quebrar uma montra ou incendiar um carro. Historiador. Deputado independente ao Parlamento Europeu (http://twitter.com/ruitavares); a pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico
quarta-feira, 31 de agosto de 2011
sábado, 6 de agosto de 2011
Entrevista completa ao Ypsilon sobre o livro "Música e Poder", 29-7-2011.
A música portuguesa nunca existiu [na Europa] - esta era a proposta de título segundo fui informado por Cristina Fernandes.
António Pinho Vargas andava há tanto tempo inquieto com esta questão que decidiu trocar as ferramentas do compositor pelas do sociólogo e escrever "Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu". Uma obra apaixonante, e particularmente polémica, sobre os mecanismos da nossa subalternidade.
Por Cristina Fernandes e Pedro Boléo (texto) e Miguel Manso (fotos)
Como é possível que nenhuma obra portuguesa tenha alguma vez integrado o cânone da música ocidental? Os mais cépticos dirão talvez que a razão seja o facto de nenhuma ter qualidade suficiente, mas essa é uma resposta simplista, desmentida quer pelo facto de algumas obras portuguesas não serem piores do que outras estrangeiras que integram o referido cânone, quer por muitos dos grandes monumentos desse "museu imaginário de obras musicais", como lhe chamou Lydia Goehr, terem sido noutros momentos históricos excluídos. Basta pensar nas Sinfonias de Mahler, olhadas de lado até aos anos 60. António Pinho Vargas não se contenta com respostas simples. Há muito que se dedicava a reflectir sobre o tema, mas só a partir de 2005 iniciou uma pesquisa sistemática no âmbito de um doutoramento.
O compositor nunca quis que a sua tese ficasse esquecida nas estantes das bibliotecas e pensou-a como um livro, agora disponível na Almedina, com o título "Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu". Um livro polémico, em que nenhuma instituição está a salvo. Pinho Vargas, compositor e intérprete, pôs-se a fazer sociologia porque estava cansado das mesmas perguntas e das mesmas respostas sobre o suposto "atraso" e a irrelevância da música portuguesa. O resultado é uma crítica profunda da vida musical portuguesa e dos mecanismos que reproduzem a subalternidade, em particular no subcampo da nova música. O autor assume que o livro é polémico e devia ajudar a gerar um intenso debate mas, com uma certa melancolia, pensa que só será discutido pelas gerações futuras. Porque "ninguém se quer incomodar" e este livro é, certamente, incómodo.
Como é que um compositor se põe a fazer sociologia?
O projecto inicial foi sempre a música portuguesa hoje e alguns dos seus problemas, mas não estava decidido se iria desviar-me mais para o lado da sociologia ou da estética. Em 2005, quando comecei a investigação, era claro que havia uma dominação dos países centrais e uma extrema desigualdade em relação às várias periferias europeias. "A Europa vai à frente e Portugal tenta recuperar o atraso" é uma afirmação que percorre todas as áreas da vida portuguesa. O meu orientador era o professor Max Paddison, da Universidade de Durham, e tinha como co-orientador Boaventura Sousa Santos. Paddison desconhecia não só toda a música portuguesa como toda a cultura portuguesa. No livro, relato a estupefacção de um musicólogo inglês quando lhe expliquei o tema e lhe falei de Lopes-Graça. Ele comentou: "Qquem havia de dizer, Portugal tem um Béla Bartók!" Este tipo de discurso começou a ser um obstáculo à investigação, tinha de estar sempre a fazer "papers" a explicar quem era quem. Acabei por inverter os supervisores e ficar com Boaventura como orientador principal, o que levou à sociologia e ao trabalho com conceitos como a "produção activa de inexistência".
O que é a "produção activa da inexistência" no campo da música?
É encomendar uma peça, fazer a estreia e deixá-la cair para todo o sempre. É um conceito aplicado às coisas que são feitas, mas que já se sabe que não vão existir. Boaventura refere-se ao facto de os países mais pobres e periféricos muitas vezes produzirem objectos que, não sendo reconhecidos pelas instâncias de consagração do centro, acabam por ser considerados inexistentes. A cultura portuguesa tem esse problema no seu todo. Há um artista que emerge aqui e ali, mas no geral não conta para o centro.
O reconhecimento internacional dos artistas portugueses é uma ilusão?
Nos anos 80, os músicos que viviam em Portugal viam Emmanuel Nunes como um exemplo de reconhecimento internacional. Mas, ao sair do país, reparei que fora de Paris ninguém conhecia Nunes. Há um artigo do José-Augusto França que fala da "mais-valia geo-artística" e que diz: "Se eu, como crítico de um país periférico, disser que tenho um pintor lá em Portugal tão bom como aqueles que eles estão a mostrar em Paris ou em Londres, por princípio ninguém me acreditará". Um dos conceitos principais da minha tese é a localização, ou seja, o lugar de enunciação. Cada país tem uma agenda específica. O que se toca em Londres não é Philippe Manoury e em Paris não se ouve música dos ingleses, a não ser talvez Thomas Adès ou dos que passaram pelo IRCAM. O centro nem sequer é monolítico. A Europa só é una para o olhar do periférico. Quando se diz "a cultura portuguesa não é reconhecida lá fora", pressupõe-se que o lá fora é tudo. Não é tudo, é Paris e alguns arredores.
A situação da música é diferente da das outras artes?
A música é talvez a arte onde o cânone ocidental se manifesta com maior poder. A vida musical internacional corresponde a um museu imaginário, à arte de interpretação viva da repetição de peças de compositores mortos. Depois, de vez em quando, há uma estreia. A vida musical tornou-se no prazer do reconhecimento do já conhecido. É o que fazem os melómanos. Mas não foi assim sempre, porque não havia discos. O uso de uma linguagem mais acessível também não resolve o problema. Quantas óperas compôs o Philip Glass? E quantas estão no repertório? O que se passa em Portugal não é diferente, mas é agravado pela condição periférica. O país onde a música contemporânea está menos isolada talvez seja a França, por causa daquilo que o Jean-Jacques Nattiez classificou como "a mais gigantesca operação de salvamento desencadeada por um Estado para salvar uma arte", referindo-se ao IRCAM.
Porque é que o cânone se impõe tanto?
Porque tem dispositivos de poder, que são as narrativas que herdámos, as que ouvi no conservatório e que as gerações mais novas continuam a ouvir. O que está em causa não é o cânone, mas a sua pretensão à exclusividade. O que é criticável não é contar-se uma história da música em que Bach, Mozart, Beethoven são importantes, é não contar o que se passava no mundo na mesma altura e que outros criaram obras que ficaram de fora por determinadas razões. O que vou dizer é forte, para mim próprio: nós conhecemos melhor o cânone do que a música portuguesa. E por isso temos mais facilidade em ler em função das narrativas e das influências. O Alexandre Delgado é um grande lutador pela música portuguesa, mas quando quer elogiá-la usa termos como "o primeiro tema sofre um desvio brahmsiano e depois um desvio wagneriano"... O cânone é o espelho face ao qual nós estamos permanentemente a avaliar aquilo que é feito. Agir de outro modo implica um esforço da nossa parte. No livro faço esse esforço. Não me ponho fora da crítica que faço ali.
No livro, o papel da Gulbenkian é visto de forma bastante crítica...
A criação da Gulbenkian é referida nas histórias da música portuguesa como um momento da maior importância. O que é sublinhado é que finalmente Portugal tinha uma instituição com uma temporada ao nível das grandes capitais europeias. Como diz José Gil, a "pequena montra da Europa na Avenida de Berna". No entanto, como é apontado nos polémicos artigos do Mário Vieira de Carvalho nos anos 70 e por João Paes no "Dicionário de História de Portugal" (1998), quando se dá a abertura do edifício com uma temporada regular, a Gulbenkian já tinha enfraquecido todas as outras instituições através do peso dos festivais - as orquestras da rádio, as pequenas sociedades de concertos - e a sua hegemonia era total. No campo da criação, foi relativamente fácil, com os Encontros de Música Contemporânea, instalar em Portugal a hegemonia dos seguidores da Escola de Darmstadt, não nos anos 50, mas dez anos mais tarde, a partir das viagens de Jorge Peixinho, de Emmanuel Nunes e dos seus discípulos. A partir dos anos 80, os seminários do Nunes (que se prolongaram por 20 anos) e o tipo de encomendas levaram ao afunilamento estético em torno da corrente pós-serial. O favoritismo em relação a Nunes é também visível nas encomendas [23 encomendas entre 1967 e 2007, seguindo-se Peixinho com apenas 12]. Aplica-se aqui o que António Pinto Ribeiro escreveu no livro comemorativo dos 50 anos da fundação: "A Gulbenkian tornou-se uma instituição pesada, a vanguarda no mundo todo explodiu em múltiplas diversidades e a Gulbenkian não acompanhou esse movimento."
Mas hoje a situação mudou...
Grandes acontecimentos como a Europália, Lisboa 94, a Expo 98 e o Porto 2001-Capital Europeia da Cultura foram acompanhados pela abertura de uma série de novas instituições: Centro Cultural de Belém, Culturgest, Museu de Serralves, Casa da Música... Estas instituições terminaram com a hegemonia total da Gulbenkian, começaram a fazer encomendas e começou a haver maior diversidade.
Portugal não acompanhou os mesmos tempos da Europa?
Portugal andou a contraciclo. Construiu estruturas do Estado que terminaram com a hegemonia da Gulbenkian no momento em que a crise começou a instalar-se no centro. De repente começam a aparecer imensos compositores portugueses, a ter encomendas e estreias umas atrás das outras. Este é o aspecto positivo que ressalta da minha investigação. A diversidade interna neste momento é um factor positivo porque corresponde à diversidade interna do mundo. É uma coisa pela qual é preciso lutar politicamente. Não gosto de impérios.
A diversificação não é oportunidade para a mudança?
É. Seria... Eu tive muitas peças tocadas fora e considero que elas não se implantaram em lado nenhum. O compositor local continua a ser local. Verifico que da parte das instituições portuguesas há mais preocupação em fazer boa figura perante o europeu do centro que tem a autoridade, que "vai à frente", do que com a ideia de que este é um veículo da nossa cultura. A Casa da Música até agora foi ambivalente, tal como a Gulbenkian foi antes. Dá uma no cravo, outra na ferradura. A orquestra da Finlândia vem tocar à Casa da Música e faz um programa todo finlandês: o seu Sibelius e mais uma peça da Kaija Saariaho e outra do Magnus Lindberg. A Orquestra da Coruña vai tocar ao Centro Cultural de Belém Mendelssohn e Haydn, mas na primeira parte dos dois concertos apresenta dois compositores espanhóis, um dos quais galego.
As instituições tentam também por vezes encomendar peças que possam ficar no repertório...
Sim, mas falharam essas tentativas. O D. João V e a Fundação Gulbenkian são muito parecidos: trata-se de contratar grandes artistas. D. João V contratou grandes cantores, músicos e o Scarlatti. E por isso o D. João V é o único português mencionado na história da música do Taruskin e na história do Grout. Revela de uma forma extraordinária o inacreditável grau de ausência, como se durante mil anos as pessoas que aqui estiveram não tivessem feito música. Nós sabemos que não foi assim. Mas ao olhar do outro não conta. Há aqui um lance de exclusão que não passa sequer pelo conhecimento da peça musical. Simplesmente não conta, à partida. E quando ouvem, ouvem com preconceitos em relação aos europeus do Sul.
Mas se essas histórias estão mal contadas, porquê exigir estar presente nelas?
Não posso cair nessa armadilha, não tenho de justificar porque é que um português tem de estar lá, têm é de me justificar a mim porque é que não há-de estar. Não há razão, nem sequer decisão. Há ignorância e desconhecimento.
Um livro sobre a inexistência não corre o risco de reforçar a inexistência?
Nenhum. O livro é contra o lamento, critica o lamento o mais que pode. Mas um livro não muda o mundo. Nós estamos numa posição subalterna. Nós saímos cá para fora e a vida musical vai continuar de acordo com as suas forças internas, com a lógica interna do campo estrutural que se chama vida musical europeia.
Então não pode haver presença da música portuguesa em vez de ausência?
A presença tem primeiro de passar a ser local. O português tem de deixar de ter vergonha de ser português em Portugal. O que se tem sentido, desde os anos 90, é que em grande parte das instituições, não todas, há mais gente a querer música nova portuguesa. O problema não está na primeira audição, está na possibilidade da segunda audição, de reapresentar as peças. Sinto uma enorme diferença de qualidade entre 1992 e 2012. As instituições já perceberam que não é por haver compositores portugueses que o público diminui ou aumenta.
Tem tido reações ao livro, polémicas?
Não, não, ninguém se quer incomodar. O meu livro é incomodativo. Julgo que terá reflexos apenas na geração seguinte. As pessoas dos 50 anos pensam é na sua vidinha de compositores, como eu, que tenho de regressar à minha vidinha de compositor. Intérpretes, compositores e musicólogos são três tribos que se ignoram totalmente. É uma comunidade que não se vive a si própria, que não tem curiosidade mútua. Com excepções, claro, generalizar é sempre um abuso.
E dentro dos meios académicos?
Os cães marcam o seu território. E eu entro por um território onde não devia fazer chichi. O Boaventura Sousa Santos disse-me: "Você fez uma sociologia transgressiva de uma grande importância para a vida cultural portuguesa. Os mecanismos que expõe... há agentes que fazem isso. E esses agentes não vão gostar de ver os mecanismos expostos." E avisou-me que podia contar com detractores. Se se sentem atacados, o que é que se há-de fazer?
António Pinho Vargas andava há tanto tempo inquieto com esta questão que decidiu trocar as ferramentas do compositor pelas do sociólogo e escrever "Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu". Uma obra apaixonante, e particularmente polémica, sobre os mecanismos da nossa subalternidade.
Por Cristina Fernandes e Pedro Boléo (texto) e Miguel Manso (fotos)
Como é possível que nenhuma obra portuguesa tenha alguma vez integrado o cânone da música ocidental? Os mais cépticos dirão talvez que a razão seja o facto de nenhuma ter qualidade suficiente, mas essa é uma resposta simplista, desmentida quer pelo facto de algumas obras portuguesas não serem piores do que outras estrangeiras que integram o referido cânone, quer por muitos dos grandes monumentos desse "museu imaginário de obras musicais", como lhe chamou Lydia Goehr, terem sido noutros momentos históricos excluídos. Basta pensar nas Sinfonias de Mahler, olhadas de lado até aos anos 60. António Pinho Vargas não se contenta com respostas simples. Há muito que se dedicava a reflectir sobre o tema, mas só a partir de 2005 iniciou uma pesquisa sistemática no âmbito de um doutoramento.
O compositor nunca quis que a sua tese ficasse esquecida nas estantes das bibliotecas e pensou-a como um livro, agora disponível na Almedina, com o título "Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu". Um livro polémico, em que nenhuma instituição está a salvo. Pinho Vargas, compositor e intérprete, pôs-se a fazer sociologia porque estava cansado das mesmas perguntas e das mesmas respostas sobre o suposto "atraso" e a irrelevância da música portuguesa. O resultado é uma crítica profunda da vida musical portuguesa e dos mecanismos que reproduzem a subalternidade, em particular no subcampo da nova música. O autor assume que o livro é polémico e devia ajudar a gerar um intenso debate mas, com uma certa melancolia, pensa que só será discutido pelas gerações futuras. Porque "ninguém se quer incomodar" e este livro é, certamente, incómodo.
Como é que um compositor se põe a fazer sociologia?
O projecto inicial foi sempre a música portuguesa hoje e alguns dos seus problemas, mas não estava decidido se iria desviar-me mais para o lado da sociologia ou da estética. Em 2005, quando comecei a investigação, era claro que havia uma dominação dos países centrais e uma extrema desigualdade em relação às várias periferias europeias. "A Europa vai à frente e Portugal tenta recuperar o atraso" é uma afirmação que percorre todas as áreas da vida portuguesa. O meu orientador era o professor Max Paddison, da Universidade de Durham, e tinha como co-orientador Boaventura Sousa Santos. Paddison desconhecia não só toda a música portuguesa como toda a cultura portuguesa. No livro, relato a estupefacção de um musicólogo inglês quando lhe expliquei o tema e lhe falei de Lopes-Graça. Ele comentou: "Qquem havia de dizer, Portugal tem um Béla Bartók!" Este tipo de discurso começou a ser um obstáculo à investigação, tinha de estar sempre a fazer "papers" a explicar quem era quem. Acabei por inverter os supervisores e ficar com Boaventura como orientador principal, o que levou à sociologia e ao trabalho com conceitos como a "produção activa de inexistência".
O que é a "produção activa da inexistência" no campo da música?
É encomendar uma peça, fazer a estreia e deixá-la cair para todo o sempre. É um conceito aplicado às coisas que são feitas, mas que já se sabe que não vão existir. Boaventura refere-se ao facto de os países mais pobres e periféricos muitas vezes produzirem objectos que, não sendo reconhecidos pelas instâncias de consagração do centro, acabam por ser considerados inexistentes. A cultura portuguesa tem esse problema no seu todo. Há um artista que emerge aqui e ali, mas no geral não conta para o centro.
O reconhecimento internacional dos artistas portugueses é uma ilusão?
Nos anos 80, os músicos que viviam em Portugal viam Emmanuel Nunes como um exemplo de reconhecimento internacional. Mas, ao sair do país, reparei que fora de Paris ninguém conhecia Nunes. Há um artigo do José-Augusto França que fala da "mais-valia geo-artística" e que diz: "Se eu, como crítico de um país periférico, disser que tenho um pintor lá em Portugal tão bom como aqueles que eles estão a mostrar em Paris ou em Londres, por princípio ninguém me acreditará". Um dos conceitos principais da minha tese é a localização, ou seja, o lugar de enunciação. Cada país tem uma agenda específica. O que se toca em Londres não é Philippe Manoury e em Paris não se ouve música dos ingleses, a não ser talvez Thomas Adès ou dos que passaram pelo IRCAM. O centro nem sequer é monolítico. A Europa só é una para o olhar do periférico. Quando se diz "a cultura portuguesa não é reconhecida lá fora", pressupõe-se que o lá fora é tudo. Não é tudo, é Paris e alguns arredores.
A situação da música é diferente da das outras artes?
A música é talvez a arte onde o cânone ocidental se manifesta com maior poder. A vida musical internacional corresponde a um museu imaginário, à arte de interpretação viva da repetição de peças de compositores mortos. Depois, de vez em quando, há uma estreia. A vida musical tornou-se no prazer do reconhecimento do já conhecido. É o que fazem os melómanos. Mas não foi assim sempre, porque não havia discos. O uso de uma linguagem mais acessível também não resolve o problema. Quantas óperas compôs o Philip Glass? E quantas estão no repertório? O que se passa em Portugal não é diferente, mas é agravado pela condição periférica. O país onde a música contemporânea está menos isolada talvez seja a França, por causa daquilo que o Jean-Jacques Nattiez classificou como "a mais gigantesca operação de salvamento desencadeada por um Estado para salvar uma arte", referindo-se ao IRCAM.
Porque é que o cânone se impõe tanto?
Porque tem dispositivos de poder, que são as narrativas que herdámos, as que ouvi no conservatório e que as gerações mais novas continuam a ouvir. O que está em causa não é o cânone, mas a sua pretensão à exclusividade. O que é criticável não é contar-se uma história da música em que Bach, Mozart, Beethoven são importantes, é não contar o que se passava no mundo na mesma altura e que outros criaram obras que ficaram de fora por determinadas razões. O que vou dizer é forte, para mim próprio: nós conhecemos melhor o cânone do que a música portuguesa. E por isso temos mais facilidade em ler em função das narrativas e das influências. O Alexandre Delgado é um grande lutador pela música portuguesa, mas quando quer elogiá-la usa termos como "o primeiro tema sofre um desvio brahmsiano e depois um desvio wagneriano"... O cânone é o espelho face ao qual nós estamos permanentemente a avaliar aquilo que é feito. Agir de outro modo implica um esforço da nossa parte. No livro faço esse esforço. Não me ponho fora da crítica que faço ali.
No livro, o papel da Gulbenkian é visto de forma bastante crítica...
A criação da Gulbenkian é referida nas histórias da música portuguesa como um momento da maior importância. O que é sublinhado é que finalmente Portugal tinha uma instituição com uma temporada ao nível das grandes capitais europeias. Como diz José Gil, a "pequena montra da Europa na Avenida de Berna". No entanto, como é apontado nos polémicos artigos do Mário Vieira de Carvalho nos anos 70 e por João Paes no "Dicionário de História de Portugal" (1998), quando se dá a abertura do edifício com uma temporada regular, a Gulbenkian já tinha enfraquecido todas as outras instituições através do peso dos festivais - as orquestras da rádio, as pequenas sociedades de concertos - e a sua hegemonia era total. No campo da criação, foi relativamente fácil, com os Encontros de Música Contemporânea, instalar em Portugal a hegemonia dos seguidores da Escola de Darmstadt, não nos anos 50, mas dez anos mais tarde, a partir das viagens de Jorge Peixinho, de Emmanuel Nunes e dos seus discípulos. A partir dos anos 80, os seminários do Nunes (que se prolongaram por 20 anos) e o tipo de encomendas levaram ao afunilamento estético em torno da corrente pós-serial. O favoritismo em relação a Nunes é também visível nas encomendas [23 encomendas entre 1967 e 2007, seguindo-se Peixinho com apenas 12]. Aplica-se aqui o que António Pinto Ribeiro escreveu no livro comemorativo dos 50 anos da fundação: "A Gulbenkian tornou-se uma instituição pesada, a vanguarda no mundo todo explodiu em múltiplas diversidades e a Gulbenkian não acompanhou esse movimento."
Mas hoje a situação mudou...
Grandes acontecimentos como a Europália, Lisboa 94, a Expo 98 e o Porto 2001-Capital Europeia da Cultura foram acompanhados pela abertura de uma série de novas instituições: Centro Cultural de Belém, Culturgest, Museu de Serralves, Casa da Música... Estas instituições terminaram com a hegemonia total da Gulbenkian, começaram a fazer encomendas e começou a haver maior diversidade.
Portugal não acompanhou os mesmos tempos da Europa?
Portugal andou a contraciclo. Construiu estruturas do Estado que terminaram com a hegemonia da Gulbenkian no momento em que a crise começou a instalar-se no centro. De repente começam a aparecer imensos compositores portugueses, a ter encomendas e estreias umas atrás das outras. Este é o aspecto positivo que ressalta da minha investigação. A diversidade interna neste momento é um factor positivo porque corresponde à diversidade interna do mundo. É uma coisa pela qual é preciso lutar politicamente. Não gosto de impérios.
A diversificação não é oportunidade para a mudança?
É. Seria... Eu tive muitas peças tocadas fora e considero que elas não se implantaram em lado nenhum. O compositor local continua a ser local. Verifico que da parte das instituições portuguesas há mais preocupação em fazer boa figura perante o europeu do centro que tem a autoridade, que "vai à frente", do que com a ideia de que este é um veículo da nossa cultura. A Casa da Música até agora foi ambivalente, tal como a Gulbenkian foi antes. Dá uma no cravo, outra na ferradura. A orquestra da Finlândia vem tocar à Casa da Música e faz um programa todo finlandês: o seu Sibelius e mais uma peça da Kaija Saariaho e outra do Magnus Lindberg. A Orquestra da Coruña vai tocar ao Centro Cultural de Belém Mendelssohn e Haydn, mas na primeira parte dos dois concertos apresenta dois compositores espanhóis, um dos quais galego.
As instituições tentam também por vezes encomendar peças que possam ficar no repertório...
Sim, mas falharam essas tentativas. O D. João V e a Fundação Gulbenkian são muito parecidos: trata-se de contratar grandes artistas. D. João V contratou grandes cantores, músicos e o Scarlatti. E por isso o D. João V é o único português mencionado na história da música do Taruskin e na história do Grout. Revela de uma forma extraordinária o inacreditável grau de ausência, como se durante mil anos as pessoas que aqui estiveram não tivessem feito música. Nós sabemos que não foi assim. Mas ao olhar do outro não conta. Há aqui um lance de exclusão que não passa sequer pelo conhecimento da peça musical. Simplesmente não conta, à partida. E quando ouvem, ouvem com preconceitos em relação aos europeus do Sul.
Mas se essas histórias estão mal contadas, porquê exigir estar presente nelas?
Não posso cair nessa armadilha, não tenho de justificar porque é que um português tem de estar lá, têm é de me justificar a mim porque é que não há-de estar. Não há razão, nem sequer decisão. Há ignorância e desconhecimento.
Um livro sobre a inexistência não corre o risco de reforçar a inexistência?
Nenhum. O livro é contra o lamento, critica o lamento o mais que pode. Mas um livro não muda o mundo. Nós estamos numa posição subalterna. Nós saímos cá para fora e a vida musical vai continuar de acordo com as suas forças internas, com a lógica interna do campo estrutural que se chama vida musical europeia.
Então não pode haver presença da música portuguesa em vez de ausência?
A presença tem primeiro de passar a ser local. O português tem de deixar de ter vergonha de ser português em Portugal. O que se tem sentido, desde os anos 90, é que em grande parte das instituições, não todas, há mais gente a querer música nova portuguesa. O problema não está na primeira audição, está na possibilidade da segunda audição, de reapresentar as peças. Sinto uma enorme diferença de qualidade entre 1992 e 2012. As instituições já perceberam que não é por haver compositores portugueses que o público diminui ou aumenta.
Tem tido reações ao livro, polémicas?
Não, não, ninguém se quer incomodar. O meu livro é incomodativo. Julgo que terá reflexos apenas na geração seguinte. As pessoas dos 50 anos pensam é na sua vidinha de compositores, como eu, que tenho de regressar à minha vidinha de compositor. Intérpretes, compositores e musicólogos são três tribos que se ignoram totalmente. É uma comunidade que não se vive a si própria, que não tem curiosidade mútua. Com excepções, claro, generalizar é sempre um abuso.
E dentro dos meios académicos?
Os cães marcam o seu território. E eu entro por um território onde não devia fazer chichi. O Boaventura Sousa Santos disse-me: "Você fez uma sociologia transgressiva de uma grande importância para a vida cultural portuguesa. Os mecanismos que expõe... há agentes que fazem isso. E esses agentes não vão gostar de ver os mecanismos expostos." E avisou-me que podia contar com detractores. Se se sentem atacados, o que é que se há-de fazer?
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