O artigo de hoje de Rui Tavares trouxe à colação alguns aspectos relacionados com as conclusões do meu livro Música e Poder. A ausência de música portuguesa no contexto europeu verifica-se fundamentalmente por duas razões. Primeiro o dispositivo de poder activo no campo musical dos países centrais – termo que, quando o comecei a usar na tese entre 2006 e 2009 não era usado no espaço público como é hoje – revela-se como um poder de exclusão dos produtos artisticos das periferias, entre as quais está naturalmente Portugal, preferindo prosseguir com êxito a exportação dos seus próprios produtos. Em segundo lugar e com estreita relação com o primeiro factor, esse dispositivo de poder, dispondo de meios de divulgação da ideologia que consagra os seus produtos – a música dos seus países – como “naturalmente de superior qualidade”, consegue disseminar essa ideologia já com séculos de existência – a primazia da modernidade dos países do norte – e fazê-la interiorizar pelos próprios agentes culturais dos países periféricos, que se tornam assim “agentes activos” da persistente produção activa de inexistência nos seus próprios paises. Como se produz essa inexistência? Um exemplo referido há uma semana por Mário Laginha no Programa Autores II na TVI24 que passo a descrever pelas minhas palavras. Há cada vez mais músicos de jazz portugueses de qualidade da nova geração. Há cada vez mais festivais de jazz no país todo. Pois bem. Os programadores desses festivais – começando naturalmente me Lisboa - atingidos pelo vírus pseudo-cosmopolita, mas no fundo profundamente provinciano e revelador de complexo de inferioridade, que atribui ao “lá fora” – na expressão de Eduardo Lourenço – a tal superioridade “natural” inculcada pelas vias conhecidas, optam sistemáticamente e há longo tempo por “trazer cá” – outra expressão corrente no seu vocabulário – artistas de “lá fora”, uma expressão simétrica de “cá dentro”. Resultado: o jovem artista português de qualidade não tem grandes possibilidade de se apresentar nesses festivais que se tornam deste modo produtores activos da sua “inexistência”. É relativamente fácil de analisar e quaquer pessoa dentro deste meio ou do meio da música erudita sabe que é assim que as coisas funcionam.
Se isto funciona desta forma no interior do país é necessário considerar igualmente a resistência dos países centrais, as suas estruturas de poder e as suas convicções ideológicas. Antes da crise, a minha análise sobre a ausência seria facilmente considerada como “um delírio” de um compositor que se sente maltratado (e sente, dentro de alguns limites). Mas a crise trouxe ao de cima, aspectos que, estando presentes no campo cultural, não se manisfestavam com a clareza que as diferentes esferas da politica e da economia lhes veio trazer.
É por isso que trancrevo o artigo de hoje de Rui Tavares, no jornal Público. Claro que não aborda nenhum aspecto da ausência da música portuguesa “lá fora ou cá dentro”. Mas aborda um tipo de funcionamento que lhe está subjacente e a que, antes da crise, ninguém prestava a menor atenção.
A nossa tarefa é ser capaz de estabelecer relações entre as diversas esferas da actividade e, pelo menos, admitir que, em áreas onde nunca nos interrogamos sobre nada, há coisas para discutir, coisas para transformar, coisas para contestar.
Os indígenas
Por Rui Tavares
Acontece de vez em quando chegar um jornalista do Centro da Europa, incumbido de ouvir uns quantos portugueses, que me pede a opinião sobre a crise da zona euro. E eu, ingénuo, dou-lhe a minha opinião sobre a crise da zona euro. E depois, mais ingénuo ainda, digo-lhe que o tema não acaba ali, e que é importante que falemos, enquanto europeus, sobre o futuro da União Europeia. E, tonto que sou, dou-lhe também as minhas opiniões sobre isso.
Grave erro! O jornalista centro-europeu quer saber duas coisas, e duas coisas apenas. A primeira interessa-lhe enquanto centro-europeu: saber se os portugueses aguentam as reformas da troika, as implementam todinhas, e não chateiam mais. Caso contrário, quer saber se há possibilidade de os portugueses saírem da toca, revoltarem-se, quebrarem umas montras e incendiarem uns carros - e isto interessa-lhe já por motivos profissionais.
Ai se esse jornalista nos visse hoje. Neste dia mesmo, lá vamos nós aprovar mais uma medidinha da troika: despedir gente vai passar a ser um terço mais barato. Porque aquilo de que nós precisamos agora, imaginaram alguns centro-europeus (e acreditam alguns portugueses) é de mais desempregados, com menos dinheiro no bolso, para contrair o consumo e gerar mais futuros desempregados.
Segue-se esta medida ao corte de metade do subsídio de Natal. E antecederá a venda da RTP, da TAP e da Águas de Portugal, três crimes de lesa-pátria. E tudo isto os portugueses, que não são gregos nem espanhóis (e nem sequer franceses ou ingleses!), aguentarão estóica e pacificamente.
Insisto eu: mas isto não era uma entrevista sobre o euro e a União?
A essa altura, já o centro-europeu apanhou o avião para o Centro da Europa, onde a divisão de tarefas é bem clara. O futuro da União é coisa para perguntar a um francês ou uma alemã, de preferência a esses dois que o leitor está a pensar. Berlim e Paris mandaram fazer uma sangria; de Lisboa só é preciso saber se vai esbracejar demasiado ou esvair-se em sangue.
Às vezes passo-me e digo que este neocolonialismo intraeuropeu é que está a matar a União. Que aquilo que tiverem a dizer os portugueses, irlandeses e gregos não é só importante porque estes países estão na linha da frente da crise, mas simplesmente porque eles são membros de pleno direito da União, e não países de segunda categoria. Que, em democracia - a que ainda estamos apegados, por a termos há uma geração apenas -, os remédios só funcionam quando são decididos por todos.
Mas, sabem? Não é fácil. Em parte porque temos um Governo, aqui em Portugal, que não só aceitou o neocolonialismo intraeuropeu como fez dele o seu ideal. Se nos receitarem uma sangria, diz a doutrina, a nossa melhor opção é sorrir enquanto esticamos o pescoço. A docilidade ainda vai mais longe: escolhemos não ter opinião sobre para onde vai a União Europeia. Governo económico? Metas de inflação? Eurobonds? Portugal não tem posição. Disso sabe Berlim e Paris, que são coisas muito complicadas para a cabecinha de Lisboa.
Isto vai acabar mal. À força de não emitir opinião sobre as questões mais cruciais do nosso futuro ainda chegará o dia em que, num Conselho Europeu qualquer, Passos Coelho não será ouvido nem se quebrar uma montra ou incendiar um carro. Historiador. Deputado independente ao Parlamento Europeu (http://twitter.com/ruitavares); a pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico
Como se verá - depois de ler - afinal escrever sobre música, a ausência, sobre os festivais de jazz ou a política e a economia ou a Europa, é escrever sobre o mesmo assunto. As estruturas - sociais e mentais - são muito idênticas nas diversas áreas.
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