Uma mudança de paradigma: I, II e III
1.
Uma reflexão breve: as relações entre as músicas escritas e orais sofreram uma inversão, no que respeita ao seu tempo de existência real, após 1900. Até então as músicas de tradição oral desapareciam, excepto da memória dos que tinham, ao longo dos séculos, transportado a sua vaga recordação e, por vezes, a sua transmissão. A sua evolução foi, por isso, lenta. Pelo contrário, a música escrita da tradição europeia, tendo um suporte de sobrevivência no tempo, a partitura, foi guardada em bibliotecas, foi mudando muito mais rapidamente a cada século e, no século XIX, desenvolveu-se a prática de um "museu imaginário" dessa música do passado: a sala de concertos regulares, que ainda vigora. Hoje, com o advento da gravação no início do século passado, todas as músicas do mundo são preservadas em gravações. Assim, cada vez mais é patente que, estando todas de algum modo preservadas, a dominação se inverteu definitivamente, sendo, muitas vezes, a música escrita que, face à regulação actual do mundo musical, fica quase só na memória dos que assistem aos concertos e nas salas de aula onde são estudadas. Mas a sua presença em concertos rarefez-se e verifica-se uma espécie de retorno do modo de audição aristocrático. Mesmo existindo gravações de tudo, nem tudo está disponível do mesmo modo; é a cultura-pop global que exerce uma dominação de forma avassaladora e omnipresente, enquanto a música escrita da tradição europeia regride para uma existencia efémera, apesar de ainda ter um estatuto dotado de prestígio social, marginal e minoritário. Verificou-se uma mudança histórica de paradigma nas práticas musicais que não é passível de qualquer regresso ao passado. Como irá evoluir não sabemos.
2.
Outro aspecto da mudança de paradigma remete para uma reconfiguração da vida musical "clássica", termo usual para tudo o que diz respeito à música escrita da tradição europeia. Se considerarmos, com Lydia Goehr, que o conceito de obra se tornou fulcral e novo regulador da música ocidental a partir de 1800 podemos dividir dois períodos: o anterior que designamos de pré-moderno e o o moderno que se forma nesse período e acaba por se tornar dominante até hoje.
No período anterior, pré-moderno, os compositores compunham certamente peças de música, mas o conceito de obra era-lhes estranho, bem como o conceito decorrente de história da música, tal como o entendemos hoje. Assim a sua actividade musical dirigia-se para a composição de peças sucessivas sem qualquer "imaginário" histórico de sobrevivência, de repertório, de reposição. Cada peça era composta para uma circunstância determinada e, uma vez feita e apresentada, partia-se para outra com total naturalidade, sem nenhuma angústia de "vir a integrar o repertório das salas de concertos". Não só não existia o conceito de repertório como nem sequer salas de concertos no sentido inaugurado pela Gewandhaus de Leipzig, na sua segunda construção no século XIX. Só isso permite compreender que compositores que hoje vemos à luz do conceito de obra e do conceito de história da música modernos, como Bach, Vivaldi, Telemann e muitos outros tenham composto quantidades gigantescas de cantatas, concertos, óperas, etc. Na verdade as 600 cantatas de J.S. Bach só se compreendem se considerarmos que, no seu tempo, tratava-se de cumprir a função requerida e no fim de cada execução nos domingos não se tratava de a repetir mas de compor outra para o seguinte. Nem sequer conceitos posteriores como o de originalidade tinham importância. Os compositores podiam usar partes de outras peças suas integradas noutras. Assim Handel, em 1733 usou em Water Music, partes das suas óperas anteriores Esther e Athalia; Bach usou temas de Vivaldi, Albinoni, Corelli e Legranzi; Corelli adaptou para sonatas suas, temas de óperas de Lully. Esta era a prática corrente. Por essa razão e pelo lado funcional que presidia à sua atitude, vários outros compositores chegaram a números impressionantes: Vivaldi compôs, em 40 anos, 845 peças; Scarlatti, escreveu 550 sonatas, além de óperas e de música sacra. (Goehr: 181-182) Partes de peças podiam ser usadas de modo a adequarem-se a uma nova ocasião necessária. No entanto o nosso imaginário actual - formado sob a força do conceito regulador moderno, de obras, de integral, de repertório, todos formados no século XIX - a questão histórica da perenidade das "obras" assumiu, naturalmente, uma importância de não tinha antes do século XVIII e, além disso, aplicou os seus conceitos posteriores a todo este repertório anterior.
Mas a realidade apresentamos evoluções insuspeitadas e surpreendentes.
Se nos séculos anteriores a 1800 as peças compostas não se destinavam a reposições, nem a uma presença habitual nos repertórios (que não existiam), hoje, há efectivamente repertório repetido regularmente nas salas de concertos do mundo, no qual a música entretanto integrada no cânone construido ao longo do século XIX e XX, na sua grande maioria composta antes de 1900,ocupa cerca de 90% da percentagem das obras apresentadas. Um simples olhar pelos programas das instituições musicais confirma, ano após ano, estes dados.
Pelo contrário, decorrendo das duas crises modernistas, a da década de 1910 e a da década de 1950, foram gradualmente transformando o mundo musical, dividindo-o em duas vertentes: a da arte da interpretação de música do passado - uma arte de interpretação viva de um repertório de compositores mortos - e os espaços institucionais entretanto criados, sobretudo a partir de 1960, que se dedicam exclusivamente à criação musical de novas obras. A cisão entre estas duas esferas foi-se agravando, o fosso e a diferença de público foi-se tornando de carácter tribal. Por isso, a música composta hoje - debaixo do imaginário conceptual da "evolução da linguagem musical" e da regulação do conceito de obra - passou a ter uma importância residual nas salas de concertos tradicionais face à dominação da música do passado histórico anterior a 1900 e viu-se primeiro relegada para os Festivais de Música Contemporânea - conceito que nunca existiu anteriormente porque toda a música tinha sido sempre apenas a "contemporânea" em cada fase histórica - e outros eventos especializados.
Deste processo resulta o seguinte paradoxo: a música de hoje é, do ponto de vista do imaginário que preside à sua criação, composta com os olhos postos no futuro, no repertório-por-vir, pelo lugar reservado na história. Mas, do ponto de vista do seu futuro real, a música de hoje acaba por ter em geral, um destino muito próximo daquele que tinham "as obras" compostas antes de 1750-1800: destinam-se a uma ou duas apresentações e, posteriormente, tal como no período pré-moderno, não voltam a ser repostas, nem integram o repertório lugar já ocupado com a música do passado. Os reis, principes ou bispos que eram os comendatários e os proprietários das obras que pediam aos seus empregados-músicos-compositores foram hoje substituídos pelos responsáveis das instituições culturais, directores de orquestras ou teatros de ópera, que fazem as encomendas de novas peças aos compositores actuais. Mas, na verdade, a ideologia da "estreia" assumiu hoje uma função equivalente à cerimónia aristocratica ou religiosa que justificava a composição da peça no século XVII ou XVIII: as novas obras destinam-se à sua estreia e, normalmente, são descartadas pelas próprias instituições que as encomendaram, não integrando concertos posteriores de uma forma geral. A uma estreia, segue-se a próxima estreia. Esta ideologia manifesta-se igualmente na crítica que opta por ter dois critérios contraditórios: quanto se trata de uma obra histórica faz-se crítica "à interpretação" especialmente quando se trata de uma instituição poderosa e um "grande artista" a fazer o concerto; mas quando se trata de uma reposição de uma obra recente, das poucas vezes que tal ocorre, assume outro tipo de critério e considera que, não sendo estreia, não se justifica escrever uma crítica. Desse modo contribuiu para o rápido desaparecimento das obras do espaço público, antes do seu desaparecimento das salas de concertos.
3.
Esta contradição entre o imaginado e o real explica os discursos lamentosos sobre a decadência da vida musical do ocidente, sobre a falta de apoios dos estados e das instituições culturais. Se uma peça ou outra proveniente dos países centrais consegue um conjunto razoável de apresentações este facto surge como excepcional face ao destino genérico da grande maioria das peças compostas recentemente (muitos milhares de facto). Os compositores não aceitam o retorno real à fase quasi-artesanal pré-moderna quando todos os discursos públicos sobre artes são construídos com base em conceitos diversos associados à perenidade das obras, ao património, ao "ficar para a história", à "obra-prima". A realidade pós-moderna, que sobrepõe o novo real "pré-moderno" ao discurso regulador imaginado, mas moderno, cria uma contradição insolúvel que não pode senão angustiar, deprimir, revoltar os compositores de vários modos. Os protestos de vária ordem sucedem-se nas últimas décadas, como se pode ver em múltiplos exemplos que recolhi em Música e Poder (2011).
Não há em geral nenhuma compreensão deste fenómeno, nos termos em que o vejo. A minha posição e os meus argumentos são, que eu saiba, únicos. Sendo o seu lugar de enunciação e a sua expressão a terra e a lingua portuguesa o seu destino é a inexistência que caracteriza muitos dos escritos de hoje, mesmo nas línguas mais fortes. O carácter tribal dos estudos musicológicos, dos estudos artísticos em geral reduzem-lhe o alcance. Não há problema. Existe.
Vivemos um período complexo, turbulento, semi-cego e semi-invisível, que põe em causa todas as categorias herdadas. Coexistem vários tempos num só tempo.
Radica aqui a Babel que caracteriza os discursos actuais sobre música. Ninguém compreende os múltiplos discursos simultâneos.
António Pinho Vargas, 2012
Referências:
Goehr, Lydia (1992) The Imaginary Museum of Musical Works: an essay in the Philosophy of Music, Clarendon Press, Oxford.
Pinho Vargas, António (2011) Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu. Almedina, Coimbra.
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