Alguns pontos para reflexão dos "jovens" compositores
Irei publicar aqui um conjunto de opiniões/ conselhos a jovens
compositores, o que a minha idade já permite fazer sem grandes
paralisias. O primeiro é paradoxal à primeira vista.
1. O
compositor não compõe para os colegas gostarem, nem os professores
gostarem, nem para os críticos elogiarem. Deve compor, primeiro, para a
coisa em si, segundo, de acordo com as suas convicções e capacidades actuais e, finalmente, para essa abstracção chamada "público".
No início não há propriamente público: há outros membros do meio -
colegas, professores - o que, dada a sua pequenez, se configura como
constituído por "outros produtores pertencentes ao campo restrito". Mais
tarde, quando houver público propriamente dito, esse estará ali porque
quis ir, porque tem curiosidade ou interesse genuíno e não está movido
por outras razões obscuras. Nesse momento "é um público" e teremos a
grande vantagem de nunca sabermos quem o constituiu. A reacção do
público será importante de considerar se o público for um público. Se o
for apenas na aparência, na verdade não conta.
Mas, ao mesmo tempo -
e aqui reside o aparente paradoxo - o jovem compositor deve manter a
atenção desperta para filtar - da multiplicade de opiniões que colegas, professores e músicos estão sempre prontos a dar, no fim, no
meio, e até antes dos concertos - filtrar e considerar com atenção
aquelas que vale a pena reter por serem honestas e aptas para fazer
pensar e evoluir. De modo inverso, deve filtrar aquelas que podem
ocultar um preconceito, uma imaturidade ou um objetivo secreto
destrutivo, movido pelas mais variadas razões, e ser capaz de, uma vez
identificadas as do segundo tipo, as enviar para a espécie de caixote do
lixo de onde não deviam ter saído. Mas a estrutura dos campos
artísticos é como é e será melhor conhecer bem as regras do seu
funcionamento.
A capacidade de distinguir a diferença entre os dois
tipos de "opiniões", sendo muito difícil no início, vai-se tornando
cada vez mais clara com o tempo. Do mesmo modo, é no tempo, com a sua passagem, que se
pode constituir uma individualidade.
2.
O segundo ponto que quero partilhar mantém alguma tensão com o primeiro
já escrito, senão uma aparente contradicção. Enquanto o primeiro se
dirige à possibilidade da individuação - criação de um ser autónomo,
capaz de administrar o seu próprio auto-criticismo produtivo - o segundo
dirige-se à consciência indispensável de que "não se está sozinho no
mundo".
A capacidade última da individuação será a capacidade de "assinar".
Mas, dizem-me na Escola e já pude verificar por mim mesmo, que existe
uma tendência crescente para a inversão do problema, ou seja, a crença
demasiado precoce de que "Já existe" uma tal capacidade individual. A
manifestação dessa crença verifica-se em dois aspectos: a aparição -
antes do tempo - da expressão discursiva "a minha música" no discurso do
jovem compositor, e de forma concomitante um desinteresse pelo trabalho
dos colegas/concorrentes, dos professores, e mesmo dos mestres
sacralizados pelas narrativas dominantes ou emergentes- que se traduz na
ausência dos concertos com música de outros. Tenho alguma dificuldade
em imaginar um poeta que não gosta de ler poesia, um romancista incapaz
de ler outros romancistas. É óbvio que este fenómeno resulta do
individualismo que se foi alargando nas nossas sociedades a partir dos
anos 1980. O lema publicitário "be yourself", destinado a vender
bebidas, automóveis ou telemóveis, transmite essa ideologia há décadas.
Mas se o "jovem compositor" deve prosseguir o objectivo de criar uma
individualidade não forçoso que esse fim implique nem auto-encantamento,
nem isolamento-do-mundo, factores produtores de várias formas de
autismo. Para usar a metáfora do arquipélago, a constituição do sujeito
criativo como único habitante da sua ilha. O risco de uma tal atitude -
por vezes, apenas semi-consciente - será que o único habitante da sua
ilha criativa pode tornar-se igualmente o único espectador e admirador
da "sua" música. A atenção ao mundo implica necessariamente uma atenção
ao outro-compositor, diferente, diverso, dotado de uma outra
individualidade, é certo, mas eventualmente capaz de desencadear
estímulos, impulsos propulsores de respostas criativas.
O
equilibrio entre a busca-de-si-próprio e a atenção-ao-outro e o
respeito por ele - é fulcral para evitar o autismo em torno de si
próprio e eventualmente a constituição de um autor imaginário. A extrema
divisão actual em múltiplas tribos favorece subrepticamente o
aparecimento desta tentação. Mas o compositor que não ouve música dos
outros vai a meio caminho de criar o facto inverso: não ter ninguém para
ouvir "a sua própria música" (no caso de ela existir).
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