quarta-feira, 20 de junho de 2012

"Julgo que estamos apenas no início deste combate", disse em 2005 nas Cinco Conferências da Culturgest sobre Música do Século XX

Uma parte da 5ª Conferência da Culturgest, em Abril de 2005.

           "Na verdade, o facto que de repente se torna evidente é que, durante os anos 80, se desmantelou aquele edifício que tinha dominado o universo da música contemporânea; tinha sido rico, muitas boas peças foram compostas nas duas décadas anteriores, mas sobretudo do ponto de vista dos princípios base deixou de haver apenas uma posição dominante e passou a haver uma grande diversidade de opiniões e de práticas. 
         A União Soviética implodiu entre o ano de 1989 e 1991. Até então o Ocidente tinha vivido sem questionar grandemente o papel dos artistas nem o seu contributo. Como vimos a partir dos anos 80 verificou-se a ruptura definitiva entre a arte de vanguarda como resistência contra o público, de acordo com os paradigmas dos anos 1910, de acordo com as teorias de Adorno, e surgiram outras perspectivas sobre como compor. Alguns compositores assumiram querer recuperar a possibilidade da comunicação, o que evidentemente irritou ferozmente os artistas da outra corrente. Dá-se esta grande divisão no campo musical, mas há outras coisas que interessa igualmente questionar. É neste período que, na sequência do fim da União Soviética, de Reagan e Thatcher, do novo tipo de política que coloca o mercado como o único critério da vida económica e, consequentemente, do começo do desmantelamento ainda em curso do Welfare State e do modelo social europeu, as artes – até então importantes no quadro do confronto da Guerra Fria, como vimos –começam igualmente a ser alvo de ataques de um novo tipo. As artes de vanguarda, anteriormente fortemente apoiadas no Ocidente pelo Estados e pelos financiamentos político-culturais americanos em nome da liberdade cultural, da liberdade da criação artística, começam a ser questionadas noutros termos muito diferentes: há público? alguém percebe? porque é que se deve apoiar manifestações artísticas minoritárias? Chegaram críticas cada vez mais ferozes contra a arte subsidiada provenientes dos mesmos países que, de 1945 até 1980, as tinham subsidiado fortemente.
            Em Portugal, julgo que a primeira pessoa a assumir este tipo de posições foi o escritor e político Vasco Graça Moura; começou a questionar o cinema de Manoel de Oliveira, a questionar os subsídios aos escritores, a arte subsidiada em geral; mais tarde é acompanhado por Pacheco Pereira. Uma parte da direita culta – estes dois homens são homens muito cultos – interrogaram  todo o modelo que tinha existido e funcionado nos anos anteriores, e começam a colocar em questão o papel do Estado na relação com a vida cultural. São os intérpretes locais da estratégia global que se começou a definir no chamado Consenso de Washigton em 1983: aplicar à vida cultural a estratégia neo-liberal de atribuir ao mercado o único, ou quase único, critério de validade ou de avaliação da actividade artística.
            É evidente que aparece a tentação de interpretar historicamente a conjugação destes factos na seguinte  perspectiva: depois de ter terminado o Império Soviético, o Estalinismo e aquilo que ele representava em termos culturais, a ideologia da liberdade do artista deixou de ser necessária estrategicamente do ponto de vista do Ocidente. Poderá dizer-se – e este será o meu ponto principal – que as críticas e as interferências do regime estalinista nas artes e no trabalho dos artistas estão a ser neste momento “traduzidas” noutro tipo de formulações, transplantadas para outro tipo de discurso, para outro tipo de racionalidade que se expressa já não em termos de objectivos ideológicos a atingir, mas em termos mais subtis de análise económica de gastos v.s. custos, de “sustentabilidade”, “rentabilidade”, que evitando o recurso à censura directa acaba por chegar a resultados semelhantes: os artistas, tal como sob Estaline, têm dificuldade em trabalhar. Não irão para o Gulag, é certo, irão simplesmente para o desemprego ou para um tipo de desemprego simbólico que é a irrelevância resultante da restrição brutal do espaço público. Ainda mais perigoso, este tipo de discurso eufemístico consegue aparentemente retirar-se do campo da política, da ideologia, e surge como um discurso de pura racionalidade económica e esta é a sua grande perversidade. O que digo é radical, extremo, mas talvez não seja estúpido e permita interpretar muitas coisas que já são claras e vislumbrar um dos horizontes que se perfilam.
            Desde os finais dos anos 80 temos assistido a frequentes discussões em torno desta problemática das artes. Qualquer investimento público feito em equipamentos culturais, nomeadamente agora na Casa da Música, é sempre muito discutido, argumenta-se que se gastou dinheiro a mais em relação ao previsto; mas às vezes também se gasta dinheiro a mais em relação ao orçamentado nas auto-estradas, por exemplo. Apesar dos países europeus estarem sempre presentes nos discursos políticos – a necessidade de acompanhar o “desenvolvimento”, “o crescimento”,”os índices económicos”, etc. – não se tem em conta que na maior parte desses países muitos dos equipamentos culturais já tinham sido construídos há muito mais tempo. Gastar no equipamento cultural é sempre mais discutível para esta orientação política, o que deriva muito directamente da qualidade cultural da burguesia dos vários países. Em Portugal é péssima. A nossa elite é muito inculta, passe o aparente contra-senso. No quadro de discussão pública sobre estas matérias os média têm um faro assassino – de acordo com a perspectiva de Chomsky, pré-programado, interiorizado – para tudo aquilo o que eventualmente pode provocar discussão ou combate que interesse à opinião dominante. Mas penso que, neste momento em Portugal, o PS e alguns sectores do PSD assumem que o Estado deve assegurar uma zona da actividade cultural, nesse sentido uma posição mais moderada em relação ao radicalismo neo-liberal, eu ia dizer selvagem, um termo que se usa em relação ao próprio capitalismo – o capitalismo selvagem – segundo a qual o Estado deve cumprir uma função de regulação.
            Mas julgo também que estamos apenas no início deste combate. Actualmente trava-se uma discussão na Europa e no mundo todo; discute-se, por exemplo, em Berlim. A cidade estava dividida por isso há três teatros de ópera; é necessário poupar dinheiro, tem que se fechar um. Nas grandes instituições culturais, nomeadamente na discussão que agora está em curso em relação à Casa da Música, há duas posições: uma quer integrar a Orquestra Nacional do Porto naquele equipamento, como parte da estrutura; mas algumas reservas por parte de alguns privados, na medida em que a presença de uma orquestra implica salários mensais para mais 150 pessoas. Há uma discussão sobre o papel do Estado nestas questões, mas julgo que, infelizmente, a tendência neste momento aponta cada vez mais para o triunfo progressivo da visão economicista pura e dura – fazer contas, ver qual é o prejuízo, e se for prejuízo a mais, então fechar, acabar, privatizar.
            Não me parece que esteja completamente assumido, nem completamente claro que a arte seja um bem inestimável para a vida das pessoas. É uma coisa que será necessário explicar a alguns dos mecenas e mesmo a alguns artistas que terão já esquecido as suas motivações juvenis."


in Cinco Conferências sobre a História da Música do Século XX (Culturgest, 2008)

quarta-feira, 13 de junho de 2012

José Afonso e a pluralidade dos saberes musicais: discursos e lugares comuns eurocêntricos


  “Saber música” é uma frase corrente nos discursos quotidianos mas envolve muito maior complexidade do que parece à primeira vista. Em primeiro lugar porque música, no singular, é uma coisa que não existe: há múltiplas práticas musicais, muitas músicas diferentes, com diferentes modos de aprendizagem e modos de inserção social. Sempre houve, mas a primazia da cultura ocidental na construção do nosso imaginário falsamente universalista impediu-nos de considerar a pluralidade das expressões e das práticas musicais do resto do mundo até há um século. As “Histórias da Música” publicadas até 1950 e mesmo depois, ostentavam esta designação e a leitura desse livros mostrava-nos que aquele termo designava apenas a história de música ocidental da tradição erudita europeia. Aqui radica a primeira forma do eurocentrismo enraizado nos discursos sobre música nos países ocidentais. Destas histórias ficavam de fora todas as outras músicas pertencentes às outras civilizações do mundo, pertencentes a outras culturas musicais, diferentes da música europeia, que se caracteriza antes de mais nada pelo uso da escrita desde o ano 1000, da notação musical que aqui teve um desenvolvimento extraordinário mas particular. Justamente sublinhando a importância decisiva nessa tradição musical da notação, Richard Taruskin usa, na sua Oxford History of Western Music de 2003, o termo “literate” para distinguir o seu traço fundamental.
Mas não foi apenas o não-ocidental que foi apagado destas narrativas. Na própria Europa e em simultâneo com a história da música escrita, ligada quase sempre às elites culturais e sociais, sempre existiu uma outra música de tradição oral, tanto rural, de raízes ancestrais, como, a partir de certa altura urbana. Estas tradições orais da Europa e do resto do mundo tiveram uma evolução lenta, sendo transmitidas de geração em geração pela via da aprendizagem pela via da transmissão oral  e da memória.
Estas músicas “sem história”, por inexistência de suporte de sobrevivência material, não foi considerada nas narrativas senão sob a designação de “música popular”, uma espécie de Outro inferior, no interior das próprias sociedades europeias. É apenas no século XIX e XX que surge um estudo e recolha sistemática destas tradições orais dos diversos países, quase sempre rurais, associado aos chamados nacionalismos musicais, formas peculiares de encontrar motivos e temática diversa daquela entretanto tornada canónica, dominada em larga medida pela música alemã, como, aliás, ainda hoje se verifica.
ria﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽ da memanslitidas ela mns musicais, formas peculiares de encontrarEstes factos são conhecidos mas continuam relativamente negligenciados, mesmo nas escolas de música, de tal forma estas se restringiram durante pelo menos 200 anos ao estudo da “música clássica”, designação errada, mas cujo erro passou para a linguagem corrente da mesma forma que uma série de equívocos associados ao domínio eurocêntrico do mundo, até à segunda metade do século XX. Essa dominação verificou-se não apenas no domínio político e militar de vastas regiões como no próprio plano epistemológico. O saber ocidental via-se como o único “avançado” e vê-se ainda a si próprio como superior face a outros saberes. A disciplina universitária musicologia, criada na Alemanha no século XIX, destinava-se ao estudo da música europeia mas, já mais tarde, foi necessário criar outra disciplina, a etnomusicologia, para estudar a música dos diversos Outros.  O europeu via-se a si próprio como não tendo etnia. Esta era apenas a dos outros. Este quadro epistemológico marca ainda hoje as disputas pela primazia dos saberes e o diálogo entre eles é uma das tarefas fulcrais da fase atual, a partir da assunção crítica de que nem só o saber técnico-científico,  nem a visão da alta cultura ocidentais são válidos. Mas esta hegemonia resiste e persiste sob numerosas formas. Daí que surja nos discursos correntes a expressão “saber música” como algo exclusivamente referido a uma outra coisa: “saber ler música escrita”. Saber música é muito mais do que apenas isso. Caso contrário teríamos de considerar que a maior parte das práticas musicais realmente existentes no mundo seriam realizadas por pessoas que “não sabem uma nota de música”. O século XX alterou todas as ontologias da música ao obrigar a considerar tudo aquilo que antes tinha sido excluído das narrativas eurocêntricas, fundamentalmente escritas a partir do século XIX na Europa. A invenção da gravação deu a estas músicas existentes para além do seu suporte escrito outro tipo de suporte tecnológico – a gravação – que demonstrou não apenas a sua existência mas assegurou a sua perenidade, anteriormente dependente quase em exclusivo do suporte da “notação musical”.
A partir dessa transformação tecnológica assistiu-se durante todo o século passado a uma multiplicação de expressões musicais, a um aparecimento de numerosos géneros novos que agregaram de formas inusitadas algumas destas tradições e as prolongaram até hoje de tal modo que se torna apropriado falar de uma tribalização plural de muitas expressões musicais a par com a dominação global dos produtos da indústria cultural anglo-americana pop-rock.  A crise da chamada música clássica, que tem preocupado vários autores sobretudo nos países de língua inglesa, não pode ser dissociada destas transformações. A ideia base destas preocupações é o progressivo deslocamento da tradição erudita para “as margens ilustres da atividade cultural”.  A sua anterior hegemonia, baseada na existência da partitura como único suporte de sobrevivência histórica é ameaçada pela existência do disco e da sua crescente importância no lugar da música nas nossas sociedades, inclusivamente na própria área da “música clássica” na qual a existência de gravações passou a ser o veículo primeiro de afirmação e disseminação dos artistas tanto os que se dedicam ao repertório histórico, a grande maioria, como os que se dedicam à criação de novas obras. 
É por isso que afirmar que José Afonso “não sabia uma nota de música” traduz, de forma clara, uma incompreensão das múltiplas formas dos saberes musicais, muito vastos e variados, incomensuráveis, e uma aceitação acrítica dos discursos e dos lugares comuns eurocêntricos que ainda existem fortemente enraizados. José Afonso sabia aquilo que precisava de saber e quando queria colaboradores já com uma formação compósita entre as tradições orais e escritas, coexistentes, arranjou-os. O seu instrumento principal era a voz inesquecível e a extraordinária invenção musical e poética.

António Pinho Vargas
Artigo publicado no Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, nº 68, Junho 2012