"Na verdade, o
facto que de repente se torna evidente é que, durante os anos 80, se
desmantelou aquele edifício que tinha dominado o universo da música
contemporânea; tinha sido rico, muitas boas peças foram compostas nas duas
décadas anteriores, mas sobretudo do ponto de vista dos princípios base deixou
de haver apenas uma posição dominante e passou a haver uma grande diversidade
de opiniões e de práticas.
A União Soviética
implodiu entre o ano de 1989 e 1991. Até então o Ocidente tinha vivido sem
questionar grandemente o papel dos artistas nem o seu contributo. Como vimos a
partir dos anos 80 verificou-se a ruptura definitiva entre a arte de vanguarda
como resistência contra o público, de acordo com os paradigmas dos anos 1910,
de acordo com as teorias de Adorno, e surgiram outras perspectivas sobre como
compor. Alguns compositores assumiram querer recuperar a possibilidade da
comunicação, o que evidentemente irritou ferozmente os artistas da outra
corrente. Dá-se esta grande divisão no campo musical, mas há outras coisas que
interessa igualmente questionar. É neste período que, na sequência do fim da
União Soviética, de Reagan e Thatcher, do novo tipo de política que coloca o
mercado como o único critério da vida económica e, consequentemente, do começo
do desmantelamento ainda em curso do Welfare
State e do modelo social europeu, as artes – até então importantes no quadro
do confronto da Guerra Fria, como vimos –começam igualmente a ser alvo de
ataques de um novo tipo. As artes de vanguarda, anteriormente fortemente
apoiadas no Ocidente pelo Estados e pelos financiamentos político-culturais
americanos em nome da liberdade cultural, da liberdade da criação artística,
começam a ser questionadas noutros termos muito diferentes: há público? alguém
percebe? porque é que se deve apoiar manifestações artísticas minoritárias?
Chegaram críticas cada vez mais ferozes contra a arte subsidiada provenientes
dos mesmos países que, de 1945 até 1980, as tinham subsidiado fortemente.
Em Portugal, julgo que a primeira
pessoa a assumir este tipo de posições foi o escritor e político Vasco Graça
Moura; começou a questionar o cinema de Manoel de Oliveira, a questionar os
subsídios aos escritores, a arte subsidiada em geral; mais tarde é acompanhado
por Pacheco Pereira. Uma parte da direita culta – estes dois homens são homens
muito cultos – interrogaram todo o
modelo que tinha existido e funcionado nos anos anteriores, e começam a colocar
em questão o papel do Estado na relação com a vida cultural. São os intérpretes
locais da estratégia global que se começou a definir no chamado Consenso de
Washigton em 1983: aplicar à vida cultural a estratégia neo-liberal de atribuir
ao mercado o único, ou quase único, critério de validade ou de avaliação da
actividade artística.
É evidente que aparece a tentação de
interpretar historicamente a conjugação destes factos na seguinte perspectiva: depois de ter terminado o
Império Soviético, o Estalinismo e aquilo que ele representava em termos
culturais, a ideologia da liberdade do artista deixou de ser necessária
estrategicamente do ponto de vista do Ocidente. Poderá dizer-se – e este será o
meu ponto principal – que as críticas e as interferências do regime estalinista
nas artes e no trabalho dos artistas estão a ser neste momento “traduzidas”
noutro tipo de formulações, transplantadas para outro tipo de discurso, para
outro tipo de racionalidade que se expressa já não em termos de objectivos
ideológicos a atingir, mas em termos mais subtis de análise económica de gastos
v.s. custos, de “sustentabilidade”, “rentabilidade”, que evitando o recurso à
censura directa acaba por chegar a resultados semelhantes: os artistas, tal
como sob Estaline, têm dificuldade em trabalhar. Não irão para o Gulag, é
certo, irão simplesmente para o desemprego ou para um tipo de desemprego
simbólico que é a irrelevância resultante da restrição brutal do espaço
público. Ainda mais perigoso, este tipo de discurso eufemístico consegue
aparentemente retirar-se do campo da política, da ideologia, e surge como um
discurso de pura racionalidade económica e esta é a sua grande perversidade. O
que digo é radical, extremo, mas talvez não seja estúpido e permita interpretar
muitas coisas que já são claras e vislumbrar um dos horizontes que se perfilam.
Desde os finais dos anos 80 temos
assistido a frequentes discussões em torno desta problemática das artes.
Qualquer investimento público feito em equipamentos culturais, nomeadamente
agora na Casa da Música, é sempre muito discutido, argumenta-se que se gastou
dinheiro a mais em relação ao previsto; mas às vezes também se gasta dinheiro a
mais em relação ao orçamentado nas auto-estradas, por exemplo. Apesar dos
países europeus estarem sempre presentes nos discursos políticos – a
necessidade de acompanhar o “desenvolvimento”, “o crescimento”,”os índices
económicos”, etc. – não se tem em conta que na maior parte desses países muitos
dos equipamentos culturais já tinham sido construídos há muito mais tempo.
Gastar no equipamento cultural é sempre mais discutível para esta orientação
política, o que deriva muito directamente da qualidade cultural da burguesia
dos vários países. Em Portugal é péssima. A nossa elite é muito inculta, passe
o aparente contra-senso. No quadro de discussão pública sobre estas matérias os
média têm um faro assassino – de acordo com a perspectiva de Chomsky,
pré-programado, interiorizado – para tudo aquilo o que eventualmente pode
provocar discussão ou combate que interesse à opinião dominante. Mas penso que,
neste momento em Portugal, o PS e alguns sectores do PSD assumem que o Estado
deve assegurar uma zona da actividade cultural, nesse sentido uma posição mais
moderada em relação ao radicalismo neo-liberal, eu ia dizer selvagem, um termo
que se usa em relação ao próprio capitalismo – o capitalismo selvagem – segundo
a qual o Estado deve cumprir uma função de regulação.
Mas julgo também que estamos apenas
no início deste combate. Actualmente trava-se uma discussão na Europa e no
mundo todo; discute-se, por exemplo, em Berlim. A cidade estava dividida por
isso há três teatros de ópera; é necessário poupar dinheiro, tem que se fechar
um. Nas grandes instituições culturais, nomeadamente na discussão que agora
está em curso em relação à Casa da Música, há duas posições: uma quer integrar
a Orquestra Nacional do Porto naquele equipamento, como parte da estrutura; mas
algumas reservas por parte de alguns privados, na medida em que a presença de
uma orquestra implica salários mensais para mais 150 pessoas. Há uma discussão
sobre o papel do Estado nestas questões, mas julgo que, infelizmente, a
tendência neste momento aponta cada vez mais para o triunfo progressivo da
visão economicista pura e dura – fazer contas, ver qual é o prejuízo, e se for
prejuízo a mais, então fechar, acabar, privatizar.
Não me parece que
esteja completamente assumido, nem completamente claro que a arte seja um bem
inestimável para a vida das pessoas. É uma coisa que será necessário explicar a
alguns dos mecenas e mesmo a alguns artistas que terão já esquecido as suas
motivações juvenis."
in Cinco Conferências sobre a História da Música do Século XX (Culturgest, 2008)
in Cinco Conferências sobre a História da Música do Século XX (Culturgest, 2008)