“Saber
música” é uma frase corrente nos discursos quotidianos mas envolve muito maior
complexidade do que parece à primeira vista. Em primeiro lugar porque música,
no singular, é uma coisa que não existe: há múltiplas práticas musicais, muitas
músicas diferentes, com diferentes modos de aprendizagem e modos de inserção
social. Sempre houve, mas a primazia da cultura ocidental na construção do
nosso imaginário falsamente universalista impediu-nos de considerar a
pluralidade das expressões e das práticas musicais do resto do mundo até há um
século. As “Histórias da Música” publicadas até 1950 e mesmo depois, ostentavam
esta designação e a leitura desse livros mostrava-nos que aquele termo
designava apenas a história de música ocidental da tradição erudita europeia.
Aqui radica a primeira forma do eurocentrismo enraizado nos discursos sobre
música nos países ocidentais. Destas histórias ficavam de fora todas as outras
músicas pertencentes às outras civilizações do mundo, pertencentes a outras
culturas musicais, diferentes da música europeia, que se caracteriza antes de
mais nada pelo uso da escrita desde o ano 1000, da notação musical que aqui
teve um desenvolvimento extraordinário mas particular. Justamente sublinhando a
importância decisiva nessa tradição musical da notação, Richard Taruskin usa,
na sua Oxford History of Western Music
de 2003, o termo “literate” para distinguir o seu traço fundamental.
Mas
não foi apenas o não-ocidental que foi apagado destas narrativas. Na própria Europa
e em simultâneo com a história da música escrita, ligada quase sempre às elites
culturais e sociais, sempre existiu uma outra música de tradição oral, tanto
rural, de raízes ancestrais, como, a partir de certa altura urbana. Estas
tradições orais da Europa e do resto do mundo tiveram uma evolução lenta, sendo
transmitidas de geração em geração pela via da aprendizagem pela via da
transmissão oral e da memória.
Estas
músicas “sem história”, por inexistência de suporte de sobrevivência material, não
foi considerada nas narrativas senão sob a designação de “música popular”, uma
espécie de Outro inferior, no interior das próprias sociedades europeias. É
apenas no século XIX e XX que surge um estudo e recolha sistemática destas
tradições orais dos diversos países, quase sempre rurais, associado aos
chamados nacionalismos musicais, formas peculiares de encontrar motivos e
temática diversa daquela entretanto tornada canónica, dominada em larga medida
pela música alemã, como, aliás, ainda hoje se verifica.
Estes
factos são conhecidos mas continuam relativamente negligenciados, mesmo nas
escolas de música, de tal forma estas se restringiram durante pelo menos 200
anos ao estudo da “música clássica”, designação errada, mas cujo erro passou
para a linguagem corrente da mesma forma que uma série de equívocos associados
ao domínio eurocêntrico do mundo, até à segunda metade do século XX. Essa
dominação verificou-se não apenas no domínio político e militar de vastas
regiões como no próprio plano epistemológico. O saber ocidental via-se como o
único “avançado” e vê-se ainda a si próprio como superior face a outros
saberes. A disciplina universitária musicologia, criada na Alemanha no século
XIX, destinava-se ao estudo da música europeia mas, já mais tarde, foi
necessário criar outra disciplina, a etnomusicologia, para estudar a música dos
diversos Outros. O europeu via-se a si
próprio como não tendo etnia. Esta era apenas a dos outros. Este quadro epistemológico
marca ainda hoje as disputas pela primazia dos saberes e o diálogo entre eles é
uma das tarefas fulcrais da fase atual, a partir da assunção crítica de que nem
só o saber técnico-científico, nem a
visão da alta cultura ocidentais são válidos. Mas esta hegemonia resiste e persiste
sob numerosas formas. Daí que surja nos discursos correntes a expressão
“saber música” como algo exclusivamente referido a uma outra coisa: “saber ler
música escrita”. Saber música é muito mais do que apenas isso. Caso contrário
teríamos de considerar que a maior parte das práticas musicais realmente
existentes no mundo seriam realizadas por pessoas que “não sabem uma nota de
música”. O século XX alterou todas as ontologias da música ao obrigar a
considerar tudo aquilo que antes tinha sido excluído das narrativas
eurocêntricas, fundamentalmente escritas a partir do século XIX na Europa. A
invenção da gravação deu a estas músicas existentes para além do seu suporte
escrito outro tipo de suporte tecnológico – a gravação – que demonstrou não
apenas a sua existência mas assegurou a sua perenidade, anteriormente
dependente quase em exclusivo do suporte da “notação musical”.
A partir dessa transformação tecnológica assistiu-se durante
todo o século passado a uma multiplicação de expressões musicais, a um
aparecimento de numerosos géneros novos que agregaram de formas inusitadas
algumas destas tradições e as prolongaram até hoje de tal modo que se torna
apropriado falar de uma tribalização plural de muitas expressões musicais a par
com a dominação global dos produtos da indústria cultural anglo-americana
pop-rock. A crise da chamada música clássica,
que tem preocupado vários autores sobretudo nos países de língua inglesa, não
pode ser dissociada destas transformações. A ideia base destas preocupações é o
progressivo deslocamento da tradição erudita para “as margens ilustres da
atividade cultural”. A sua anterior
hegemonia, baseada na existência da partitura como único suporte de
sobrevivência histórica é ameaçada pela existência do disco e da sua crescente
importância no lugar da música nas nossas sociedades, inclusivamente na própria
área da “música clássica” na qual a existência de gravações passou a ser o
veículo primeiro de afirmação e disseminação dos artistas tanto os que se
dedicam ao repertório histórico, a grande maioria, como os que se dedicam à
criação de novas obras.
É por isso que afirmar que José Afonso “não sabia uma nota de
música” traduz, de forma clara, uma incompreensão das múltiplas formas dos saberes
musicais, muito vastos e variados, incomensuráveis, e uma aceitação acrítica
dos discursos e dos lugares comuns eurocêntricos que ainda existem fortemente
enraizados. José Afonso sabia aquilo que precisava de saber e quando queria
colaboradores já com uma formação compósita entre as tradições orais e escritas,
coexistentes, arranjou-os. O seu instrumento principal era a voz inesquecível e
a extraordinária invenção musical e poética.
António
Pinho Vargas
Artigo publicado no Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, nº 68, Junho 2012
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