Como se manifesta quase todas as semanas a ideologia dos dispositivos de dominação cultural?
O novo maestro titular da Orquestra Gulbenkian, o inglês Paul McCreesh, diz hoje (13-10-12) no Actual do Expresso na sua entrevista sobre as suas novas funções "que Portugal não tem ainda uma produção musical extraordinária e internacional" e que "espera que não o prendam por isto". Poderá desde já ficar descansado. Não só não será preso como até corre o risco de ser condecorado, como aconteceu com René Martin, condecorado por Jorge Sampaio perto do final das suas Festas da Música, que teve como característica mais notória neste aspecto, ter apresentado em todas as festas da música juntas apenas uma peça contemporânea, encomendada ao igualmente francês e seu amigo Pierre Henri. Dizem-me que essa peça, uma colagem sobre Beethoven era muito má. Regressemos a McCreesh.
Apesar de não ser preso pode ser criticado e sobretudo interrogado. Poder-se-ia perguntar se assim sendo porque é que vem para este país? Mas seria demasiado fácil: o cargo de maestro titular da prestigiada Orquestra Gulbenkian é um lugar apetecível e bem pago.
Paul McCreesh tem razão: Portugal não tem o que ele diz - nunca teve - e prossegue: "em 50 encomendas pode haver duas realmente boas. Não temos de fazer música portuguesa apenas por ser portuguesa." Ao contrário do que ele poderá pensar este discurso é absolutamente corrente e, não apenas isso, é uma prática secular das instituições e das orquestras portuguesas. Mas as perguntas são as seguintes: Poderá ele afirmar quais são as duas peças boas dentre as 50 encomendas? Alguma vez terá ouvido alguma que seja, das boas ou das más? Porque é que, dentre as música actuais a música inglesa é hoje tão pouco tocada fora de Inglaterra, porque é que a música francesa é tão pouco tocada na Alemanha ou, mesmo, em França? Porque é que na Holanda, continuam a ser tocadas regularmente novas encomendas, que virtualmente, até à excepção de Andriessen a partir de 1995 - e exclusivamente nos EUA e UK - não teve, em todo o século XX anterior, virtualmente nenhuma presença em nenhum outro país? Zero. Será porque é toda má ou porque, tirando o repertório canónico alemão do século XVIII-XIX, algumas óperas italianas do século XIX e algumas obras francesas deste ou daquele - é isto o cânone - o que se pratica nesses países centrais é, com extrema clareza e, ao lado do repertório canónico, uma apresentação menor, mas regular, de música local desses países para além do tudo o resto? É de sublinhar que este tipo de argumentos contra o que designam de "particularismo" está sempre associado aos detendores do poder estabelecido. Nas discussões do acordos GATT o americano Frederik Jameson refere que face à defesa da necessidade de subsídios dos governos da Alemanha, França, Inglaterra, na criação de uma indústria cinematográfica nacional e independente, os lobbies americanos procuraram desmantelar estas subsídios locais ou nacionais como forma de competição "injusta". Ou seja, os americanos tentaram e conseguiram usar argumentos contra a defesa de expressões artísticas locais - incluindo a da Inglaterra - como particularismos provincianos para favorecerem a dominação cultural das corporações americanas do cinema.
No caso da música dita "clássica" europeia, as hegemonias mudam de lugar mas os argumentos dos hegemónicos não. A fractura encontra-se entre os paises centrais da Europa e os periféricos.
Ah, grandes provincianos! Os ingleses encomendam e apresentam várias óperas de Harrison Birtwistle, sem se preocuparem com o facto de raramente ser apresentada fora da Inglaterra (saberá isso?); os alemães apresentam óperas de Wolfgang Rihm, sem vacilar perante o facto de, em França, serem rarissimamente tocadas. Em França prosseguem as encomendas aos numerosos compositores do grupo dominante instalado no IRCAM apesar de a música de Philipe Manoury, por exemplo, não ser praticamente executada fora de França.
Seria importante saber o que pensa McCreesh destas obras: considera-as boas, más, ou talvez ainda melhor, conhece-as sequer? As inglesas talvez, mas, as outras? Alguma vez as ouviu? Ou apenas se limita a repetir a mais difundida banalidade que todos os maestros repetem quando assumem novas funções para depois fazerem o mesmo que todos os seus antecessores nesses cargos (posso dizer ter ouvido este tipo de discurso nas últimas décadas dezenas de vezes) Apresentar maioritariamente repertório con"sagrado", canónico e muito semelhante em todos os países ocidentais e uma ou duas vezes por ano, produção nacional actual que, fora de redes europeias como o Réseau Varèse, dominado pelos países centrais, raramente circulam sem esse aval (e mesmo assim muito pouco).
Outro aspecto: refere que "sei que a própria Gulbenkian tem um óptimo acervo de encomendas e já houve discussões sobre algumas voltarem a ser tocadas". Sabe mas não as conhece, nem nunca as ouviu, como é patente. Quando refere que em "50 encomendas 2 serão boas", perante a lista das encomendas da própria Fundação que o contrata, como é que as avalia concretamente?
A lista, publicada pela Fundação em 2009-10 (duas edições), por ordem descendente de número de encomendas, diz-nos: E. Nunes, 23 obras, J. Peixinho, 12, J. Braga Santos, 11, C Capdeville, 10, C. Lima, 9, J. Rafael, 7, Filipe Pires, 7, C.Rosa, 6, Pedro Amaral, 5, M.L. Martins, 4, A.Cassuto, 4, J.P. Oliveira 4, A.Pinho Vargas, 3, M. Azguime, 3, I. Soveral, 3, A.Salazar, 2, A. Delgado, 2 e um vasto número de compositores com 1 encomenda, um dos quais dá pelo nome de F. Lopes Graça. Esta lista - que traduz uma certa orientação em si mesma, que se analisa a si própria - abarca todo o período anterior a 2009. Teria McCreesh um enorme trabalho pela frente se estivesse a falar verdade. Não está.
Gostaria de saber neste vasto número quais são as 2 boas, na opinião do ilustre maestro inglês. Não fora já saber, antecipadamente, que ele não sabe de modo nenhum. Usou apenas uma retórica. O seu mundo é, na verdade, pequeno, muito pequeno. O que é espantoso é isso ser típico. Resta, como mera consolação, saber que o seu âmbito de acção, como maestro titular, não abarca tudo aquilo que se faz e decide na Fundação.
Conclusão 1: É muito mais fácil dizer banalidades que, estando muito disseminadas, correspondem a uma verdadeira "ideologia reguladora", do que fazer decentemente um trabalho de casa. Não é caso único, longe disso.
Conclusão 2: Os melómanos habituais da Gulbenkian podem dormir descansados. Não terão que enfrentar nada que possa fazer vacilar as suas convicções identitárias de discreta autoflagelação . A Gulbenkian - com McCreesh - continuará a ser a sala de visitas da "Europa na Avenida de Berna", como escreveu José Gil.
PS: Até gostaria de abandonar de vez este assunto. O que acontece é que, em cada semana, ele me bate à porta com a violência própria dos dispositivos discursivos de dominação cultural mais arrogantes. Tem como característica principal não se questionar, nem ter dúvidas, mesmo quando fala sobre o que, acima de tudo, não conheçe. O seu lema é "o mundo é aquilo que o meu olhar consegue abarcar".
Paul McCreesh tem razão: Portugal não tem o que ele diz - nunca teve - e prossegue: "em 50 encomendas pode haver duas realmente boas. Não temos de fazer música portuguesa apenas por ser portuguesa." Ao contrário do que ele poderá pensar este discurso é absolutamente corrente e, não apenas isso, é uma prática secular das instituições e das orquestras portuguesas. Mas as perguntas são as seguintes: Poderá ele afirmar quais são as duas peças boas dentre as 50 encomendas? Alguma vez terá ouvido alguma que seja, das boas ou das más? Porque é que, dentre as música actuais a música inglesa é hoje tão pouco tocada fora de Inglaterra, porque é que a música francesa é tão pouco tocada na Alemanha ou, mesmo, em França? Porque é que na Holanda, continuam a ser tocadas regularmente novas encomendas, que virtualmente, até à excepção de Andriessen a partir de 1995 - e exclusivamente nos EUA e UK - não teve, em todo o século XX anterior, virtualmente nenhuma presença em nenhum outro país? Zero. Será porque é toda má ou porque, tirando o repertório canónico alemão do século XVIII-XIX, algumas óperas italianas do século XIX e algumas obras francesas deste ou daquele - é isto o cânone - o que se pratica nesses países centrais é, com extrema clareza e, ao lado do repertório canónico, uma apresentação menor, mas regular, de música local desses países para além do tudo o resto? É de sublinhar que este tipo de argumentos contra o que designam de "particularismo" está sempre associado aos detendores do poder estabelecido. Nas discussões do acordos GATT o americano Frederik Jameson refere que face à defesa da necessidade de subsídios dos governos da Alemanha, França, Inglaterra, na criação de uma indústria cinematográfica nacional e independente, os lobbies americanos procuraram desmantelar estas subsídios locais ou nacionais como forma de competição "injusta". Ou seja, os americanos tentaram e conseguiram usar argumentos contra a defesa de expressões artísticas locais - incluindo a da Inglaterra - como particularismos provincianos para favorecerem a dominação cultural das corporações americanas do cinema.
No caso da música dita "clássica" europeia, as hegemonias mudam de lugar mas os argumentos dos hegemónicos não. A fractura encontra-se entre os paises centrais da Europa e os periféricos.
Ah, grandes provincianos! Os ingleses encomendam e apresentam várias óperas de Harrison Birtwistle, sem se preocuparem com o facto de raramente ser apresentada fora da Inglaterra (saberá isso?); os alemães apresentam óperas de Wolfgang Rihm, sem vacilar perante o facto de, em França, serem rarissimamente tocadas. Em França prosseguem as encomendas aos numerosos compositores do grupo dominante instalado no IRCAM apesar de a música de Philipe Manoury, por exemplo, não ser praticamente executada fora de França.
Seria importante saber o que pensa McCreesh destas obras: considera-as boas, más, ou talvez ainda melhor, conhece-as sequer? As inglesas talvez, mas, as outras? Alguma vez as ouviu? Ou apenas se limita a repetir a mais difundida banalidade que todos os maestros repetem quando assumem novas funções para depois fazerem o mesmo que todos os seus antecessores nesses cargos (posso dizer ter ouvido este tipo de discurso nas últimas décadas dezenas de vezes) Apresentar maioritariamente repertório con"sagrado", canónico e muito semelhante em todos os países ocidentais e uma ou duas vezes por ano, produção nacional actual que, fora de redes europeias como o Réseau Varèse, dominado pelos países centrais, raramente circulam sem esse aval (e mesmo assim muito pouco).
Outro aspecto: refere que "sei que a própria Gulbenkian tem um óptimo acervo de encomendas e já houve discussões sobre algumas voltarem a ser tocadas". Sabe mas não as conhece, nem nunca as ouviu, como é patente. Quando refere que em "50 encomendas 2 serão boas", perante a lista das encomendas da própria Fundação que o contrata, como é que as avalia concretamente?
A lista, publicada pela Fundação em 2009-10 (duas edições), por ordem descendente de número de encomendas, diz-nos: E. Nunes, 23 obras, J. Peixinho, 12, J. Braga Santos, 11, C Capdeville, 10, C. Lima, 9, J. Rafael, 7, Filipe Pires, 7, C.Rosa, 6, Pedro Amaral, 5, M.L. Martins, 4, A.Cassuto, 4, J.P. Oliveira 4, A.Pinho Vargas, 3, M. Azguime, 3, I. Soveral, 3, A.Salazar, 2, A. Delgado, 2 e um vasto número de compositores com 1 encomenda, um dos quais dá pelo nome de F. Lopes Graça. Esta lista - que traduz uma certa orientação em si mesma, que se analisa a si própria - abarca todo o período anterior a 2009. Teria McCreesh um enorme trabalho pela frente se estivesse a falar verdade. Não está.
Gostaria de saber neste vasto número quais são as 2 boas, na opinião do ilustre maestro inglês. Não fora já saber, antecipadamente, que ele não sabe de modo nenhum. Usou apenas uma retórica. O seu mundo é, na verdade, pequeno, muito pequeno. O que é espantoso é isso ser típico. Resta, como mera consolação, saber que o seu âmbito de acção, como maestro titular, não abarca tudo aquilo que se faz e decide na Fundação.
Conclusão 1: É muito mais fácil dizer banalidades que, estando muito disseminadas, correspondem a uma verdadeira "ideologia reguladora", do que fazer decentemente um trabalho de casa. Não é caso único, longe disso.
Conclusão 2: Os melómanos habituais da Gulbenkian podem dormir descansados. Não terão que enfrentar nada que possa fazer vacilar as suas convicções identitárias de discreta autoflagelação . A Gulbenkian - com McCreesh - continuará a ser a sala de visitas da "Europa na Avenida de Berna", como escreveu José Gil.
PS: Até gostaria de abandonar de vez este assunto. O que acontece é que, em cada semana, ele me bate à porta com a violência própria dos dispositivos discursivos de dominação cultural mais arrogantes. Tem como característica principal não se questionar, nem ter dúvidas, mesmo quando fala sobre o que, acima de tudo, não conheçe. O seu lema é "o mundo é aquilo que o meu olhar consegue abarcar".
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