Público, sábado, 5 JAN 2013: 12-13 - na série 13 pensadores: Que valores para 2013?
"Estás a sofrer?": A solidariedade e os diferentes
tempos simultâneos em que vivemos
Como considerar
a questão da solidariedade? Como é
possível conduzir uma vida com base nesse conceito? Que formas práticas pode
ela assumir? Julgo que há duas formas de pensar este problema.
Podemos
considerar, em primeiro lugar, que a pergunta fulcral para desencadear solidariedade
é a formulada por Richard Rorty: "Estás a sofrer?"
Em segundo
lugar, há uma acepção mais propriamente política, na qual se encara o
sofrimento humano como "a contradição que existe entre a experiência da
vida quotidiana, em muitas partes do mundo, e a ideia, o horizonte, de uma vida
decente" (Santos, 2004). Em que mundo vivemos, sob que hegemonia? Para
Boaventura de Sousa Santos "o neoliberalismo é uma das utopias
conservadoras para as quais o único critério de eficácia é o mercado ou as leis
do mercado." Qualquer outro critério ético é desvalorizado como ineficaz.
Nega-se radicalmente a existência de alternativas à realidade do presente e procura-se
desacreditar quaisquer alternativas precisamente por serem utópicas,
idealistas, irrealistas" (Santos, 2011). Esta "ética" da eficácia
capitalista, é avaliada de forma peculiar pelos detentores do poder - continua
a ser vista pelos conservadores como a única eficaz, mesmo quando falha totalmente - e é justamente no
meio de um processo violento desta natureza que estamos na passagem para 2013,
em Portugal. Na Europa, que se move numa lentidão institucional exasperante e
que, no essencial, se rege pelos mesmos critérios e pelos mesmos valores
conservadores neoliberais, radica a origem do imenso sofrimento humano que
decorre do desemprego galopante, dos salários cada vez mais baixos para as
camadas mais pobres, do aumento das desigualdades, do desmantelamento do Estado
social, visto como insustentável, de acordo com esse critério de análise - o
mercado como única medida de eficácia - e, desse modo, aumenta-se o sofrimento
humano de milhões de pessoas de forma brutal e persistente.
É forçoso sobrepor
os dois planos: ter em conta a pergunta de Rorty "Estás a sofrer?" e
pôr fortemente em questão a pretensão de única via possível atribuída aos
"mercados". É óbvio que há
alternativas, como houve com Lula da Silva no Brasil - muitos milhões de pessoas
retirados da pobreza - como há, mesmo nos EUA, com Obama, como se viu no Obama
Care, apesar do tremendo combate que teve de travar com a direita no quadro do
complexo sistema polítco americano. Mas, na Europa, segue-se o caminho inverso:
empobrecer as populações e retirar-lhes muitos dos sistemas sociais de apoios
estabelecidos. Entre as consequências da acção deste governo e das acções comandadas
pela troika Europeia e o FMI - pretexto ou não - verifica-se um regresso da
pobreza de forma nunca vista desde o regime de Salazar. Mas as alternativas
políticas que existem, ao contrário do que o discurso hegemónico quer fazer
crer, não respondem, por si só e neste momento particular, à pergunta de Rorty.
Vejamos a questão considerando os diferentes tempos simultâneos em jogo.
Do ponto de
vista das necessidades reais do ser
humano em sofrimento, o seu tempo existencial de vida contínua, não se pode
medir apenas no tempo médio das alternâncias politicas, nem no tempo longo das
crises estruturais.
O tempo da
crise é o tempo das crises económicas - que podem durar entre vinte cinco e
cinquenta anos - sem que, no entanto, a sua presença na actualidade mediática
deixe de nos transmitir a sensação de que tudo está por um fio: um tempo médio
ou longo, narrado como tempo frenético. Daí a estranha sensação de
uma imobilidade de fundo e de uma superfície agitada e frenética.
A luta política entre os vários responsáveis pela política global prossegue com
o anúncio de medidas para combater a crise que se revelam ineficazes para
combater a crise e são mesmo criadores de crise. Aquilo que faz a actualidade
das notícias manifesta-se de acordo com os critérios do tempo frenético dos media. Também os famosos "mercados"
financeiros - lugar por excelência da luta dos especuladores - é igualmente
regulado pelo tempo frenético. Na especulação financeira, num só dia, biliões
de dólares ou euros podem mudar de lugar, de proprietário, de banco, de
multimilionário. O tempo da economia, no sentido da acção humana produtora de
bens e mercadorias e das suas trocas, é muito mais lento do que o movimento
acelerado da troca de capitais. A tecnologia e a internet permitiram essa
aceleração brutal.
Mas para um
desempregado - aí colocado pela voragem destrutiva das medidas de austeridade,
até aqui o único remédio erroneamente proclamado para a crise - o tempo que
domina a sua vida é existencial e vive-se de acordo com o ritmo da pulsação
cardíaca, ou seja, não pára, não tem tempo para parar; é regulado pela
necessidade de encontrar todos os dias, no pior dos casos, uma forma de
sobreviver, uma forma de comer, uma forma de manter a vontade de viver. É,
desse modo, o tempo da existência quotidiana dos humanos; em cada
minuto, em cada dia, pode passar do espanto para a revolta, da fúria para um
sossego de fadiga, da luta convicta para a submissão e a desistência. É um
tempo determinado pela crise mas que obriga muitas pessoas a acções diárias de
sobrevivência: como vou arranjar dinheiro para a casa, para dar à mãe, para dar
aos filhos, para pagar a escola, onde vou viver depois de ir entregar a casa ao
banco, etc.
Os políticos,
os cientistas sociais, os economistas, os intelectuais, vivem numa espécie de
tempo intermédio: analisar, escrever, decretar, interpretar diariamente aquilo
que envia sinais provenientes da profundeza do tempo longo da economia, da
rapidez dos movimentos rápidos das bolsas financeiras e, nos casos mais
lúcidos, interpretar igualmente os sinais inquietantes enviados para o ambiente,
pelos movimentos lentíssimos do planeta, na sua rejeição imparável da agressão
violenta dos humanos das sociedades capitalistas industriais do mundo. A acção
deste vasto grupo, em particular dos políticos, sendo diária, só manifesta
mudanças de vulto nos períodos eleitorais-atualmente-carnavalescos ou nos
períodos de crise política aparente ou eventual. Daí, desse tempo intermédio da
democracia-actualmente-existente, saem, por vezes, sinais de alguma esperança para os que sofrem a crise e sinais de
preocupação para os que lucram com ela. Os sinais
são os mesmos; a sua interpretação é que varia conforme são vistos por pobres,
motivados pela pulsão da sobrevivência, ou por ricos, motivados pela pulsão destrutiva
da acumulação de capital. Esta divisão não é retórica, é real.
Esta
multiplicidade de tempos simultâneos parece mostrar que a tese de Walter
Benjamin de que, nas revoluções, "o tempo sai dos eixos" - de Hamlet,
"the time is out of joint" - se tornou o nosso tempo diário
"normal", tal como na sua outra brilhante intuição de que nas
sociedades capitalistas "o estado de excepção é a regra". Na crise
todos estes tempos se misturam e interligam.
Entronca neste
ponto a divergência entre duas tradições de solidariedade: a católica
progressista - existente desde o antigo regime - sob múltiplas formas e a
solidariedade no sentido político mais lato, vista como horizonte político
futuro de uma sociedade mais justa. Esta visão política, sobretudo a da
tradição marxista-leninista, tinha em tempos uma tal confiança no determinismo
histórico, que punha em causa toda e qualquer accção passivel de ser criticada
como "reformista", ou mesmo, "solidária". Corria, em
1970-71, entre os movimentos associativos estudantis de Lisboa, uma anedota,
provavelmente inventada - mas lúcida na sua invenção - sobre um dirigente
associativo do qual se dizia que dava pontapés no engrachador para agudizar as
contradições de classe e, desse modo, favorecer a vinda do socialismo, o
desenrolar mais rápido do processo histórico já conhecido. Hoje sabemos que não
existe determinismo histórico algum que conduza necessariamente a um destino já
previamente conhecido. Apenas a acção das pessoas do mundo permitirá sair desta
crise pelo lado da emancipação e da solidariedade.
Nesse sentido,
regressa aqui uma forma de tempo frenético
que talvez afecte também os partidos das esquerdas: a luta parlamentar diária,
a luta pelo poder entre si e a luta contra o governo de direita que absorve, de
forma diária, a sua concentração e a sua acção, imersa na vida política
aparentemente rápida. Essa actividade, certamente importante, poderá, talvez,
fazer esquecer o tempo presente em favor do tempo médio ou longo, no qual se
trava a luta fundamental que comanda a evolução das sociedades. Ora, para muitas
pessoas em sofrimento, não há tempo para esperar pela História.
Sendo certo
que, durante o regime de Salazar, "a caridade cristâ" pôde ser vista
como uma forma de eternizar o estado de coisas e que essa memória ainda nos
afecta, o facto é que, no seu tempo existencial de vida quotidiana, os excluídos,
os pobres, os desempregados, os que recorrem ao Banco Alimentar e às
Misericórdias, às Sopas dos Pobres, etc., não têm tempo para esperar pelo
desenlace da luta política, pela queda do governo, pelo fim da crise, ou outras
projecções que se podem desejar ou especular.
A atitude a
tomar será considerar que, enquanto não chega o momento da rebelião - como passo para "o momento da
solidariedade na construção de uma tópica para a emancipação" - e se está
no momento do sofrimento humano, é
necessário considerar a pergunta de Rorty e responder-lhe com acções imediatas,
independentemente dos eventuais pressupostos ideológicos que presidem àqueles
que as desencadeam. É necessário sobrepor os dois momentos: o momento político das lutas de médio e longo
prazo e o momento de solidariedade activa face ao sofrimento humano,
evitanto colocá-los como alternativas opostas e contraditórias entre as quais é
forçoso escolher.
Agir agora: "Estás
a sofrer?"
António Pinho
Vargas
Compositor,
músico, investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Rorty, Richard
(1992), Contigência, Ironia e
Solidariedade. Presença
Santos,
Boaventura de Sousa, (2004), A Crítica da Razão Indolente. Afrontamento
Santos,
Boaventura de Sousa, (2011), Ensaio
contra a autoflagelação. Almedina
Excelente !
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