O conceito de 'mésentente' de Jacques Rancière parece-me ir bem ao fundo daquilo em que consiste a divergência política, estética ou o que seja. Pode parecer traduzível por desentendimento mas de facto não é. Des-entendimento é um não-entendimento. Ora 'mésentente' não é isso. Rancière explica: "Por 'mésentente' irei considerar um determinado tipo de situação de palavra: aquela na qual um dos interlocutores, ao mesmo tempo, entende e não entende aquilo que diz o outro. A 'mésentente' não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto. É o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco, mas que não entende de modo nenhum a mesma coisa ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa sob o nome da brancura". A 'méconnaisance' é outra coisa. Nessa situação de fala, um não sabe o que diz o outro. Também não é o 'mal entendido' que radica na imprecisão das palavras. Diz-se que as pessoas não se entendem porque as palavras que trocam são equívocas. É um facto que há desconhecimento, mal-entendidos, etc. Agora, segundo Ranciére, "os casos de 'mésentente' são aqueles onde a disputa sobre o que falar quer dizer constitui a própria racionalidade do acto da palavra" embora ela não se refira apenas a palavras mas mais sobre a situação daquele que fala, a qualidade (social) daquele que tem o direito à palavra. A situação extrema da 'mésentente', para Ranciére, diz respeito em primeiro lugar, à política. Os momentos em que os que não tem habitualmente o direito à palavra - os dominados - reclamam o direito e tomam a palavra, são os momentos nos quais surge a "política" na sua acepção radical de evento revolucionário que perturba a distribuição habitual do direito à fala. A política no sentido "normal" do exercício do poder por parte daqueles que, aristocrátas ou oligarcas, estão habitualmente no poder, é designado por Rancière, por 'police'. Dadas as conotações que 'police' trás consigo, talvez seja preferível usar política no sentido da gestão corrente dos negócios do estado e do exercicio do seu poder. Aqui verifica-se a divergência justamente sob a forma de 'mèsentente'. Os contentores, dois, ou cinco, ou quantos forem, sabem exactamente o que os outros dizem, simplesmente não lhes atribuem nenhuma importância. Daí que assistir aos debates parlamentares, por exemplo, seja um exercício fatigante de discursos entre parceiros de instituição que não se vêem como iguais, com igual direito à palavra, a não ser na aparência. Para Ranciére, são as aristocracias e as oligarquias habitualmente no poder que consideram 'normal' serem eles a terem e exercerem o poder. A espressão "os partidos do arco governativo" é uma expressão corrente que assinala justamente essa situação de 'normalidade' do poder. Um governo de um qualquer partido da esquerda fora do arco do poder - onde existe um tal governo, sem imediata violência ou fúria bem pouco democrática? - seria o momento próprio de política enquanto evento e perturbação da normalidade: "agora, nós tomámos a palavra". Por isso é que ocorreu tão poucas vezes na história. A normalidade democrática tem sido a desigual distribuição do direito à palavra. Daqui decorre o desencanto com as instituições ou a alternância. Não muda nada de fundamental. Daí que faça sentido reclamar uma outra democracia mais participativa, em que o direito à palavra seja mais amplamente distribuído. Tornar normal aquilo que tem sido raro e, por vezes, não propriamente exemplar.
António Pinho Vargas
António Pinho Vargas
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