Verifica-se um equívoco relativamente ao ritmo, à actual visão que se tem do ritmo, na música, que, por um lado me diz respeito, mas por outro diz respeito a todos, na medida em que se espalhou como um vírus de percepção errónea.
Vou por partes. Em primeiro lugar tendo sido músico de jazz muitos anos, sei o que é o ritmo nesse tipo de música. Até sei que, no jazz que pratiquei anos, e se continua a praticar, - antes portanto da música de jazz composta por António Pinho Vargas - o lugar do pianista, raramente era manifestar o ritmo base no seu jogo instrumental, mas pelo contrário, articular esse ritmo regular de base, expresso pelo baixo e pela bateria, com o jogo de ora estar com ele, ora estar contra ele, com síncopas e muitos outros tipo de figuras. Jogar com o ritmo regular tocando irregularidades. Por isso nem sempre o que parece, é.
Em segundo, verifica-se na música do século XX, nos comentários e nas críticas, uma espécie de atribuição, de uma vez por todas, a Stravinsky, especialmente ao elemento acorde repetido tipo Sagração, da "propriedade" desse elemento. Em todas as circunstâncias em que um compositor usa uma acorde repetido o crítico, entusiasmado por ter captado "uma influência", escreve imediatamente Stravinsky! ou stravinskiano. Como se o russo tivesse sido o único a usar um tal recurso. Como se não tivesse existido um compositor chamado Bartok que igualmente usou diversas formas de ritmos pulsados e mesmo em vários e certos casos com acordes repetidos. Mas não. É sempre Stravinsky. É certo que a famosa passagem da Sagração é conhecida de todos. Mas talvez muitas outras passagens dele e sobretudo de outros não sejam assim tão conhecidas. Trata-se de um equívoco que persiste por via da "canonização" daquele famoso elemento, da sua interpretação como sendo um exclusivo de Stravinsky, quando na verdade há numerosíssimos exemplos do mesmo tipo tanto na música do século XX como mesmo na música anterior. Sabemos que este fenómeno - o presente ou futuro reescrevem o passado e desfiguram-no com o objectivo de tornar simples aquilo que foi e é complexo - se verifica com mais frequência do que parece. Um caso da literatura frequentemente citado é o de Kafka. O checo teria escrito todos os horrores-por-vir na história posterior do século XX, teria antecipado os acontecimentos que não tinham ainda acontecido. Um outro é uma passagem de uma novela de Guy de Maupassant na qual o escritor se fixa no olhar de objectos que o remetem para o passado, um momento fora do seu tipo de narrativa habitual. O futuro, a existência de um escritor chamado Marcel Proust transformou aquela passagem de Maupassant num passagem proustiana avant-la- lettre. Esta leitura não tem sentido rigoroso excepto no quadro em que vivemos no qual "o arquivo" que constituiu toda a cultura ser uma instituição histórica que pratica uma narrativa de hoje fixa no ir e vir no tempo que os especialistas e historiadores praticam diariamente.
Vou por partes. Em primeiro lugar tendo sido músico de jazz muitos anos, sei o que é o ritmo nesse tipo de música. Até sei que, no jazz que pratiquei anos, e se continua a praticar, - antes portanto da música de jazz composta por António Pinho Vargas - o lugar do pianista, raramente era manifestar o ritmo base no seu jogo instrumental, mas pelo contrário, articular esse ritmo regular de base, expresso pelo baixo e pela bateria, com o jogo de ora estar com ele, ora estar contra ele, com síncopas e muitos outros tipo de figuras. Jogar com o ritmo regular tocando irregularidades. Por isso nem sempre o que parece, é.
Em segundo, verifica-se na música do século XX, nos comentários e nas críticas, uma espécie de atribuição, de uma vez por todas, a Stravinsky, especialmente ao elemento acorde repetido tipo Sagração, da "propriedade" desse elemento. Em todas as circunstâncias em que um compositor usa uma acorde repetido o crítico, entusiasmado por ter captado "uma influência", escreve imediatamente Stravinsky! ou stravinskiano. Como se o russo tivesse sido o único a usar um tal recurso. Como se não tivesse existido um compositor chamado Bartok que igualmente usou diversas formas de ritmos pulsados e mesmo em vários e certos casos com acordes repetidos. Mas não. É sempre Stravinsky. É certo que a famosa passagem da Sagração é conhecida de todos. Mas talvez muitas outras passagens dele e sobretudo de outros não sejam assim tão conhecidas. Trata-se de um equívoco que persiste por via da "canonização" daquele famoso elemento, da sua interpretação como sendo um exclusivo de Stravinsky, quando na verdade há numerosíssimos exemplos do mesmo tipo tanto na música do século XX como mesmo na música anterior. Sabemos que este fenómeno - o presente ou futuro reescrevem o passado e desfiguram-no com o objectivo de tornar simples aquilo que foi e é complexo - se verifica com mais frequência do que parece. Um caso da literatura frequentemente citado é o de Kafka. O checo teria escrito todos os horrores-por-vir na história posterior do século XX, teria antecipado os acontecimentos que não tinham ainda acontecido. Um outro é uma passagem de uma novela de Guy de Maupassant na qual o escritor se fixa no olhar de objectos que o remetem para o passado, um momento fora do seu tipo de narrativa habitual. O futuro, a existência de um escritor chamado Marcel Proust transformou aquela passagem de Maupassant num passagem proustiana avant-la- lettre. Esta leitura não tem sentido rigoroso excepto no quadro em que vivemos no qual "o arquivo" que constituiu toda a cultura ser uma instituição histórica que pratica uma narrativa de hoje fixa no ir e vir no tempo que os especialistas e historiadores praticam diariamente.
Regressando ao meu caso pessoal quero dizer que há mais ritmo do que no jazz e do que em Stravinsky. Para começar o meu argumento direi que a Sonata Waldstein de Beethoven caso não fosse de Beethoven, e tivesse sido escrita por um compositor de hoje seria imediatamente classificado como Stravinsky! Ou, na variante da história literária que referi, como um momento stravinskiano de Beethoven! Nem falo do extraordinário acorde da primeiro andamento da Sinfonia Heróica. O que me parece é que só os preconceitos entretanto criados - um preconceito muito repetido torna-se, pela via discursiva, tão parte da realidade como a própria realidade - e talvez também um grande desconhecimento do repertório do passado podem explicar a persistência deste tipo de equívocos.
Regressando ao meu caso pessoal devo dizer que nos anos 1970/80 toquei bastantes peças para piano de Bartok durante o meu curso de piano. Devo até dizer que, numa Sonata de Mozart em Fá maior, que tocava em 1976-7, uma determinada passagem com síncopas e acentos, era ouvida pelos meus colegas da altura como lá-está-ele-a-tocar-jazz no meio de Mozart. A questão é que as síncopas e os acentos estavam lá e enquanto que a tradição pianistica romântica se caracterizava por arredondar tudo, de tornar tudo expressivo, mesmo quando era rítmico, e era isso que tinha maior importância, nessa avaliação errónea, do que tudo o resto. Mais tarde alguns disseram-me que não tinham percebido isso na altura e só quando ouviram discos de outros pianistas ilustres a tocar do mesmo modo é que perceberam que era mesmo assim. Poucos saberão que toquei muito Bartok mas não ando a dizer o tempo todo aquilo que toquei durante o meu curso de piano. Mas quero sublinhar que, essa música de Bartok, esses dispositivos recorrentes nele, inscritos no meu corpo, se manifestam muito mais claramente aos meus olhos na minha música escrita recente, senão toda, do que o tipo de ritmo usado no jazz ou o acorde de Stravinsky (ou será Beethoven, afinal?).
Este aspecto, este esclarecimento, no entanto, é totalmente inútil. O que digo não se escreve no sentido em que fica remetido à sua excentricidade aparente e ao seu âmbito minúsculo. Nada tem maior força do que uma ideia feita, do que um lugar comum. Enquanto não for desfeita - e isso por vezes demora séculos - continuará a reinar. É isso que explica a persistência da leitura banal e tornada corrente neste nosso micro-mundo em progressivo isolamento, no qual a ignorância real de muitas obras do passado e do presente é muito maior do que se imagina "lá fora". É neste mundo tal como ele está agora que vivemos. Saber algumas coisas para além do pensamento dominante nele, é mais um incómodo, uma fonte de enganos, uma dor, do que uma sabedoria.