Comunicação inicial para o debate "The
future of music: is anyone listening?"
dia 26 Set. 2013, na Culturgest.
1.
Uma das maiores dificuldades do ser
humano é admitir que o futuro pode muito bem contrariar as expectativas que
temos neste momento, pode contrariar os nossos valores e convicções presentes,
que vemos muitas vezes como indiscutíveis e mesmo eternas. Posso dizer que
encontro frequentemente posições, contraditórias entre si, mas que têm em comum
uma confiança inabalável naquilo que cada um pensa hoje sobre o futuro. Para todos eles o futuro virá a ser exactamente
aquilo que cada um pensa sobre o
assunto. É um erro muitas vezes associado às convicções e crenças que existem
sobre os valores do presente e revela uma espécie de angústia face ao que está
para vir e alguma falta de imaginação. O futuro reservará surpresas que não
podemos prever, nem estão escritas em lado nenhum.
2.
Falar de música hoje implica, em primeiro lugar, ter a consciência de que será
talvez mais sábio usar o plural do que o singular. Há inúmeras práticas
musicais, provenientes de diversas culturas mas mesmo no interior de um mesmo
espaço geocultural, pulverizado em numerosas correntes. Todas estas correntes
possuem genuínas formas de criatividade e, nesse sentido, o alarme de alguns
teóricos sobre "a morte da música clássica" ou "a crise da
música contemporânea", deve ser visto à luz do conceito de morte da arte formulado por Hegel. A morte da arte de Hegel sublinha apenas,
na minha opinião, a morte de um "certo" modo de ser e o fim de um certo modo de articulação com o social,
hstoricamente delimitado, destinado a ser substituído por outro.
3. Um segundo aspecto é justamente considerar
que a evolução da tecnologia durante o século XX alterou fortemente a relação
entre as músicas, a da tradição escrita europeia com mil anos de existência assegurada
pelo suporte escrito, a dita música "clássica",
e todas as músicas das tradições orais ou as mistas de escrita/oral que já
existiam, ou que foram surgindo ao longo do século XX, passando a ter um novo
suporte de sobrevivência histórica antes ausente, a gravação.
4. Um
terceiro aspecto será considerar o impacto futuro das duas formas de existência
da música actualmente: a música que resulta da acção performativa de músicos em salas de concertos ou outros espaços
criados e a música enquanto objecto tecnológicamente reprodutivel e por isso
tornado independente da presença real
de músicos a tocar. O século XX assistiu à crescente importância deste factor,
mesmo no campo da música do passado, tornada presente nos discos, como na própria
estrutura do funcionamento do campo "clássico", no qual a gravação
passou a ser um passo decisivo na criação dos cânones de interpretação -
"os grandes intérpretes" - e dos cânones da composição - "os
grandes compositores" - legitimados e divugados principalmente através de
revistas e livros, com os quais a
partitura foi, de certo modo, ultrapassada, não na sua necessidade real e insubstituível
para que as obras sejam executadas, mas do ponto de vista da aquisição de poder simbólico. Este é
atribuído por instâncias de consagração entre as quais a existência de discos
ou gravações se foi tornando progressivamente mais importante.
5.
Qualquer reflexão sobre o futuro das músicas implica necessariamente uma
reflexão sobre a articulação entre o seu
lugar futuro, enquanto presença -
aqui e agora - tanto no quadro das grandes instituições culturais, como no
quadro de novos espaços entretanto criados para músicas minoritárias ou,
inversamente, para as músicas de dominação global e planetária, os festivais de
pop-rock que já não cabem nas salas de concertos tradicionais, como sobretudo
na articulação entre a música
enquando performance e a música
enquanto gravação, ou seja enquanto arquivo, face à indústria cultural, quer
na sua vertente de concertos, mas especialmente na sua vertente da indústria discográfica, a
sua circulação/ existência/tranformação nas plataformas digitais da internet que
muito provavelmente irão interferir e alterar os actuais modos de funcionamento das várias instâncias de consagração que marcam as vidas individuais dos
músicos de hoje e do futuro e dos públicos consumidores de hoje e do futuro.
António
Pinho Vargas, Setembro, 2013.