Publicado a 07-09-2013 no Expresso [Revista Atual] [ pp. 36-37 ]
A tradição do novo contém em si mesma um paradoxo. Nos anos 1960 Harold Rosenberg escrevia que "uma apetência para um new look tornou-se uma necessidade profissional" e, mais adiante, que "o novo não pode tornar-se uma tradição ser dar origem a contradições, mitos e absurdos únicos". O historiador e crítico musical, Richard Taruskin, na mesma ordem de ideias, depois citar Rosenberg, afirma que "ainda vivemos com eles". Para o autor "a historiografia da arte - a da música em particular - permanece a mais teimosamente arreigada a este conceito. Celebra a inovação técnica, vista como progresso no interior de um domínio estético estreitamente circunscrito". Apesar de todas estas questões continuarem a provocar debates intensos em vários países do ocidente e do mundo, em Portugal, a reflexão crítica sobre arte repete este tipo de narrativa interna em cada uma das práticas artísticas, em grande parte dos casos, em publicações de circulação restrita como catálogos de exposições de museus ou de galerias e em programas de concertos ou nas reduzidas entrevistas que são feitas a artistas e compositores no espaço público, sem que, no entanto, sem que haja livros publicados propriamente sobre estas temáticas particulares. Nem sequer na imprensa escrita tem havido muito de assinalar. Em Portugal a discussão pública sobre artes ou pensamento sobre elas tem sido menorizada pelas guerras civis em torno dos apoios do Estado à cultura e pelas nomeações para cargos. Não é esse o tema deste texto.
Um dos pontos mais propícios à polémica é aquele genericamente assumido no campo das artes ditas plásticas, que foi dito expressamente num entrevista realizada há cerda de uma década a Vicente Todoli: "É arte aquilo que o artista diz que é arte". Face à pulverização dos antigos cânones artísticos muita da arte do século passado pode ser vista à luz desta afirmação, cuja problemática filosófica foi amplamente estudada por Arthur Danto. Este tópico radica como parece evidente na obra de Marcel Duchamp, La fontainne, de 1917, um urinol virado ao contrário e dotado de assinatura, e na arte que deriva do readymade e no caso da música, décadas mais tarde, na obra de John Cage 4' 33'', de 1953. A literatura produzida sobre as duas obras é muito elevada. Muitas vezes estas duas criações foram analisadas à luz da ideia subjacente de um ataque à instituição-arte, do seu próprio interior, uma poderosa interrogação crítica dirigida ao funcionamento dos mundos-da-arte. É desse modo que, para Nelson Goodman, a pergunta O que é a arte? deveria ser substituída por outra: Quando é que há arte?. Muitos partilham essa opinião. No seu importante livro, A teoria da vanguarda, publicado em alemão nos anos 1970, Peter Bürger considerava, no entanto, numa época em que tal não era corrente e ainda menos consensual, que o ataque desferido pelas vanguardas artísticas à instituição-arte em geral tinha falhado esse eventual desígnio, em especial no caso das segundas vanguardas do pós-guerra. Os museus e as galerias neutralizaram esse ataque de forma simples: compraram as obras, expuseram-nas, produziram discursos legitimadores e assim reintegraram-nas no seu corpus, no arquivo que as sustentam enquanto instituições. Para além de me parecer que o lugar privilegiado de John Cage, como figura vista no seu todo, ser hoje talvez mais o museu de arte contemporânea do que propriamente a sala de concertos, da qual a sua música está muito ausente, julgo importante descrever o caso de 4'33'' como exemplo paradigmático de arte conceptual. Onde reside o seu potencial de sedução teórica? Na verdade a música desta obra, no sentido restrito, não existe. A partitura é constituída por 3 andamentos cada um com uma fermata, sinal que indica ao pianista para não tocar. Assim sendo não há música produzida pelo músico, nem pelo compositor, enquanto ação prescrita e notada na partitura. Mas há, de facto, um lance conceptual por parte de Cage, que alguns consideram a parede final, inultrapassável, do radicalismo musical conceptual. Do ponto de vista zen de Cage o mundo é constituído por som. Há som em todas as circunstâncias, mesmo no caso extremo de uma sala anecoica, o som do sangue que circula nas veias do ser humano lá presente. Portanto, John Cage, corta uma fatia do tempo interrupto, demarca um início e um fim - uma duração - no qual o pianista sentado na sua posição tradicional, assegura, como representação, uma "execução" de uma peça e o facto de não tocar, abre um espaço para que o som do mundo - seja qual for - se manifeste. Mas sendo esse facto - haver som - permanente e inexorável, o que distingue esses breves minutos é o facto de John Cage, ter conceptualizado esse momento como sendo uma obra musical, a sua obra 4' 33'' e deste modo esse fragmento de tempo, supostamente de silêncio, muda de estatuto simbólico, passa a ser uma "obra" de J. Cage, do mesmo modo que um readymade comprado numa loja qualquer pelo artista Duchamp, manipulado e assinado por si, adquire igualmente o estatuto de obra. Esse curto fragmento de tempo foi, por assim dizer, apropriado por Cage como sendo a sua obra. A música, no sentido estrito, não existe, como ação humana, mas existe, também como ação humana, a criação do conceito dela no qual ao silêncio ou aos sons do mundo é atribuído pelo compositor o estatuto de obra de arte, neste caso de obra musical. Terá sido relativamente fácil prever os inúmeros debates e as controvérsias que esta obras provocaram e provocam ainda. Tal como o ataque à instituição-arte das vanguardas clássicas, também esta obra de Cage levanta uma série de questões. Não propriamente a censura de falsidade ou mentira, considerações demasiado fáceis tanto de lançar como de rebater, mas, noutro plano, um debate que se pode levantar em torno do próprio conceito de obra. Se, por um lado, se trata de um desafio lançado à noção de obra musical tradicional, ou mesmo moderna, por outro lado, só tem consistência artística, só a consegue adquirir se, ao mesmo tempo, for considerada "uma obra musical", contradição interna da qual não se consegue fugir. Por uma lado, contesta e desafia um conceito tradicional, por outro, é nele que encontra a sua legitimidade conceptual. Este double bind psicológico é uma armadilha na qual muita arte posterior não conseguiu evitar. Toda esta problemática não deixa de estar próxima do conceito de "morte do autor" das fases centrais de Roland Barthes e Michel Foucault, figuras brilhantes do pensamento francês da segunda metade do século XX. A pergunta que concretiza a paralisia, é a seguinte: quem é o autor que declara a "morte do autor"? Todas estas perguntas teóricas e estas declarações estéticas podem ter respostas, têm certamente um significado mais profundo do que o apenas literal, podem ser objecto de discursos mais ou menos sofisticados mas não evitam deixar um flanco em aberto, uma fragilidade.
Esse flanco é o lugar onde se constitui uma subjetividade humana, aquilo que permite a um autor usar um nome e uma assinatura, desse modo, inclusive a subjetividade dos próprios autores das sentenças. Sabemos que o ser humano, enquanto subjetividade, está em permanente negociação com o mundo e consigo próprio. Para além disso é da análise da sua articulação com o mundo e os mundos-da arte que provém ainda mais uma pergunta, sempre incómoda desde que foi formulada até hoje, face à ideologia carismática, à imagem que os artistas têm de si próprios, e que os seus teóricos e agentes não deixaram de fomentar e reproduzir, a pergunta de Pierre Bourdieu. Nas suas análises dos campos de produção cultural interroga por sua vez: Quem é que declara a autoridade do autor? A resposta de Bourdieu conduz-nos de volta para o mundo-da-arte, para a instituição-arte e para a sua capacidade de atribuir poder simbólico.
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terça-feira, 17 de setembro de 2013
Pensar a Arte do século XX (Parte I)
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