quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
Sobre o Magnificat: compor, pensar [antes, durante e depois] e recepção
Escrever sobre uma peça musical que ainda ninguém ouviu - com excepção dos cantores do Coro Gulbenkian e do maestro Paulo Lourenço que dirige os seus ensaios - e que não muitos mais irão ouvir, é um exercício um pouco louco que, por um lado, traduz a consciência da nossa condição actual e, por outro, revela a vontade do seu autor de permanecer com a obra, de pensar sobre ela mesmo já estanto feita, de compreender as suas forças e a sua forma. Neste caso digo que sempre senti que a peça tinha um eixo de simetria no nº 6 Fecit Potentiam. Até lá havia um determinado percurso e a partir dali um outro. Mas porquê? Ao contrário da ideia tão corrente neste meio - que o compositor que reclama a liberdade do acto criativo composicional e que não usa esquemas prévios "não pensa" - o compositor, lamento, "pensa". Pensa à medida que faz o seu trabalho e ainda tem de "pensar mais" justamente porque não tem nenhum esquema prévio. Deste modo interpreta as forças em jogo. Uma delas é o texto. Do nº 1 Magnificat - "A minha alma glorifica o senhor "- até ao nº 5 os textos do Magnificat são várias formas de agradecimento e exaltação de Maria que agradece a Deus a sua gravidez. No entanto, a partir do nº 6 Fecit potentiam, há uma mudança de carácter, de direção no texto do Evangelho de S. Lucas. De certo modo o texto passa a fazer a descrição e o elogio da acção divina no mundo. Se não vejamos. O Fecit potentiam, traduz-se: "Derrubou dos seus tronos os poderosos e exaltou os humildes."; o nº 7, Esurientes, "Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias."; o nº 8, Suscepit Israel, "Socorreu Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua posteridade para sempre." e finalmente nº 9 o Gloria do qual retive apenas essa palavra.Este Magnificat tem uma moldura que decidi incluir, para além dos seus números habituais, um Introitus e um Exodus que introduzem e põem fim à peça com uma música similar, transposta uma 3ª menor acima, na qual uma música diversa de todos os andamentos envolve do ponto de vista formal toda a peça e apresenta talvez aquilo que Augusto Seabra descreveu há uns 12 anos como caracteristico da minha música: "uma espécie de angústia de temor latente". Essa moldura formal acentua a simetria, já patente em vários aspectos presentes - dois momentos de contraponto no nº 1 Magnificat e o nº 8 Esurientes, dois momentos de diferente dimensão entre 4º Quia fecit e 7º Deposuit, e simetrias de carácter e peso igualmente entre 1 e 8.Há portanto dois percursos: aquele que assinala da exaltação de Maria, de 1 a 5 e a descrição do divino como projecto e/ou acção, de 6 a 9/10. Diria portanto que há um percurso paralelo ao texto que encontra a sua peripateia, o momento da inversão da acção das tragédias gregas, no nº 6 Fecit Potentiam, no qual descrições da acção divina de certo modo próximas do carácter de muitas passagens do Antigo Testamento, tomam o lugar, em S.Lucas, do directo agradecimento de Maria a Deus. Por isso, o meu Gloria, não é propriamente um Gloria. Tem consigo uma interrogação poderosa na música. O Coro canta Gloria, mas a música, no seu todo, interroga o que é dito e cantado pelo Coro em piano e pianíssimo.Finalmente uma nota sobre o tempo ou a falta dele. Tudo isto é claro para mim e para quem vai conhecendo a peça no processo maravilhoso da sua montagem pelos músicos. E seria claro também para os auditores se tivessem a oportunidade de ouvir várias vezes, a possibilidade que realmente têm com as peças gravadas do repertório canónico, muitas vezes em várias interpretações. A questão que se pode pôr é assim a eventual `falta desse tempo' que uma ou duas execuções colocam como desafio ao ouvinte. No caso de óperas a questão coloca-se ainda com maior importância. Não há tempo. Então há apenas duas hipóteses: ou uma sedução imediata, ou uma rejeição precoce. Da parte dos "especialistas" e dos críticos - cada vez em menor número e cada vez com menos espaço - para além de não haver igualmente tempo comparado com aquele que habitualmente dispõem há ainda um outro factor que interfere com a percepção livre. A noção de estilo (ou de estilos) a mais imediatamente disponível nas memórias formadas no arquivo cultural revela-se não uma vantagem mas antes uma limitação. O arquivo fornece um cardápio vasto de identificações possíveis. Por vezes há igualmente preconceitos de rejeição imediata: "se é assim não gosto" ou, pior ainda "não pode ser". Nestes casos para além do tempo que falta a todos acrescenta-se a obrigação profisssional de ter de produzir um texto e de acordo com o modo de ser da crítica hoje, um julgamento de valor, coisa muito diversa da função original de mediação entre as obras e os espectadores. Muitas vezes em socorro da dificuldade vem a identificação do "estilo", ficando-se aquém da muito mais dificil e demorada compreensão do discurso. Em relação a tudo isto nada a fazer. É essa a nossa condição actual.
António Pinho Vargas
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