POLÍTICAS DE AMIZADE E MÚSICA
O espantoso conjunto de obras para percussão neste novo disco patenteia “políticas da amizade”, no caso entre António Pinho Vargas enquanto compositor e esse extraordinário grupo que é o Drumming. Mas há também outras “políticas da música” que não podem ficar omissas.
Acaba de ser publicado um disco de obras para percussão de António Pinho Vargas, interpretadas pelo Drumming, e sob o título genérico de Step by Step. É admirável e há que atender a ele com diversos ângulos de reflexão.
Em primeiro lugar muito se fez esperar este disco, não só pelo longo processo de gestação em si, gravação (em datas aliás omitidas), montagem e publicação, como porque desde a estreia de Estudos e Interlúdios para grupo de percussão, em 2000, era patente ser essa uma das obras maiores do autor – e digo isto, reafirmando uma declaração de princípios críticos, a saber, que mesmo nos casos de criadores como Pinho Vargas e outros, músicos, cineastas, etc., cujo percurso me importa particularmente e com os quais venho tendo ao longo dos anos um “diálogo” artístico, as “políticas (estéticas) da amizade”, tal não me faz deixar de considerar e exprimir que há obras de que gosto, por vezes mesmo muito, como outras menos, ou até me suscitam reservas e decepções.
Estudos e Interlúdios (cinco estudos e três interlúdios) tem um título que alude a uma tradição sobretudo pianísticas de “estudos”, mas é também uma referência às extraordinárias Sonatas e Interlúdios de John Cage. Mas o conjunto das obras incluídas no disco tem sempre princípios de alusão, paráfrase e citação/desvio/ re-criação.
Assim, o título genérico do cd remete para outra obra, Steps by Steps: Wolfs! (2004), que foi parte de um programa de encomendas do Drumming a diversos compositores portugueses, com peças retomando canções tradicionais e temas de rock, no caso Born To Be Wild (1969) dos Steppenwolf, integrando a banda sonora de um céelebérrimo filme, Easy Rider (na peça de Pinho Vargas ouve-se aliás o barulho das motas icónicas do filme).
Quanto às duas peças mais recentes, Políticas da Amizade (2011), um estudo para vibrafones solo, retoma mesmo o título de um fundamental ensaio do filósofo Jacques Derrida, que é aliás uma importante reflexão política em termos mais genéricos, e em Árias de Ópera para Tuba e Percussão (2011 também) há paráfrase/desvio pois que não é suposto “árias de ópera” se destinarem a “tuba e percussão”.
Como é sabido, Pinho Vargas tem duas distintas facetas, como músico de jazz e compositor contemporâneo, que não se confundem. Contudo não deixa de haver uma questão comum, a da pulsação – ou, noutros termos, do “beat” - que este conjunto de obras até evidencia, havendo mesmo um Estudo de Pulsação e Métrica. Essa é desde logo uma questão de ritmo, e também de agógica.
Estudos e Interlúdios em particular é uma obra de imensa invenção, em termos de complexidades rítmicas e de tempos, bem como de timbres, de uma diversidade assinalável, com consequências harmónicas também.
De modo tanto mais curioso porque raro no autor, o acorde inicial da obra é quase “bouleziano”, no sentido que logo conter em germe quase todos os materiais, sobretudo intervalares e timbrícos, desse primeiro Estudo Coral – e esse é uma saliente característica do compositor francês -, que por sua vez de algum modo “anuncia” e potencialmente enuncia , qual “abertura” como nas óperas, o conjunto da obra, que aliás, em espelho, tem um Estudo Coral Final.
E embora a estrutura da obra seja muito distinta dos princípios composicionais de Steve Reich, é evidente a proximidade com o célebre Drumming daquele, obra em que aliás o grupo dirigido por Miquel Bernat colheu o seu nome – e já agora, se a memória sonora não me atraiçoa, Estúdios e Interlúdios é a obra de Pinho Vargas que mais se aproxima de um muito “reichiano” concerto seu, com ensemble, no Jazz em Agosto, em meados dos anos 80.
Mas quando se aponta a questão comum às duas distintas facetas do músico, a da pulsação, forçoso é também considerar uma mais difusa noção de “energia”, de especial relevo no jazz e no rock – e Step by Step: Wolfs! é uma obra de uma energia estonteante. E quando se destaca a importância das combinações tímbricas, essas são evidentes numa obra instrumentalmente tão singular como Árias de Óperas para Tuba e Percussão - com Sérgio Carolino, é claro, no sopro.
O espantoso conjunto de obras para percussão neste novo disco patenteia também “políticas da amizade”, no caso entre António Pinho Vargas enquanto compositor e esse extraordinário grupo que é o Drumming – ainda mais neste caso maravilhosos intérpretes, que não só são um dos mais relevantes agrupamentos musicais em Portugal (e, além do mais, com um trabalho também formativo notável), como mesmo um dos mais notáveis agrupamentos internacionais de percussão. Mas há outras “políticas da música” que infelizmente não podem ficar omissas.
Tanto mais tendo o disco este nível de excelência, só é sumamente de lamentar que o investimento de todos, autor, intérpretes e a própria editora, a JACC Records, do Jazz ao Centro (que, com base em Coimbra, até vem desenvolvendo um assinalável labor nesse campo), não tenha correspondência na distribuição, na percepção do que são os diferenciados públicos – e Pinho Vargas tem os seus públicos próprios, mas não homólogos, nas duas vertentes do seu trabalho criativo.
É incompreensível que este disco apenas tenho sido distribuído em lojas de jazz, quando o público do Pinho Vargas compositor procurará este disco noutros espaços, para afinal suceder as pessoas perguntarem pelo objecto e na Fnac responderem que não têm nem foram contactados nesse sentido!
É mais que urgente reparar este grave equívoco, além do mais até em termos editoriais do que é o “potencial” de um “produto” – mas infelizmente, mesmo com um autor e intérpretes desta craveira, as “políticas da música” e da sua difusão, que já são de si complexas no panorama actual, estão em Portugal ainda mais sujeitas a equívocos tão incompreensíveis como este.
Augusto M. Seabra, Ípsilon do jornal Público, 24-3-2014, p. 38.
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ResponderEliminarAcabo de ouvir o seu Step by Step e de ler este artigo. Permito-me dar-lhe os parabéns porque adorei o disco e gosto tanto mais dele quanto mais se afasta de aspectos da música do Reich que me dão cabo da paciência. Acho estas suas obras bem mais ricas, criativas, coloridas e interessantes. Obrigado.
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