sábado, 12 de julho de 2014

"O homem duplicado" - texto de Maria Augusta Gonçalves no JL 9-22-Julho. p-26

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Nota prévia: Este artigo de Maria Augusta Gonçalves, publicado nesta semana de 9 de Julho, 2014, será talvez o mais importante que foi escrito até hoje sobre o meu trabalho recente, no seu todo. É, inicialmente, uma crítica aos dois discos recentes a ópera Outro Fim e o do Drumming, Step by Step e, nesse aspecto, uma análise muito bem feita. Mas vai bastante mais além, interrogando a realidade da nossa presente condição enquanto compositores. APV

O Homem Duplicado

A ópera "Outro Fim" resulta do trabalho de dois dos mais importantes criadores portugueses atuais: António Pinho Vargas, compositor, e José Maria Vieira Mendes, escritor. A música do primeiro impõe uma reflexão constante, na medida em que resulta sempre da inquietação perante a  arte, a vida, o poder que a consome; Vieira Mendes, no teatro, no cinema e aqui, na ópera, estabelece uma reflexão sobre a escrita como instrumento de representação - interrogação - do que é humano e do que, no sobreviver (ou não), ao humano diz respeito. O encontro dos dois autores numa só obra pressupõe, por isso, um frente a frente com algo essencial. O que se confirma.
            Esta é uma "ópera trágica", diz Vieira Mendes nos texos de apresentação. Há um Homem que foge, e um Irmão do Homem que fica. Há também a Cunhada do Homem e a Mulher do Homem. Tudo se passa ao longo das estações de um verão ao verão seguinte. O Homem, distante escreve à Mulher, através do Irmão. Esta acaba por imergir nas mensagens que medeia assumindo a personalidade do próprio Homem ,transformando-se nele - o duplicado que não pode deixar de se apaixonar pela mulher. Mas eis que o Homem regressa e, no momento em que o amor poderia prevalacer, no instante em que poderia haver a possibilidade de redenção, sobrevém a tragédia, o confronto entre um e o mesmo, o Irmão e a sua imagem.  Ele é então o assassino. No final tudo regressa à origem, a história revista pela Mulher que escreve e sobrevive, e a Mãe que recita: "de verão a verão à procura de outra vida, um outro fim ou outro princípio".
            Pinho Vargas conhece bem o drama essencial que Vieira Mendes traduz aqui nesse "amor intenso, interrompido" por um final "trágico e fatal", como o define.  É o drama essencial que atravessa a sua obra e que a coloca entre as maiores, o drama que tem a ver com a vida e com a dor, com tudo o que é possível num só instante, num só ser.

            A música surge, assim, como se fosse ela mesma um libreto, um outro e o mesmo libreto, humano, multifacetado, como as personagens, o seu pensamento, a sua ação, o meio onde se encontram. Há a música exterior, plena de acontecimentos, como na cena do café, e a mais interior, angustiada tão densa, de tão rarefeita, na precisão dos sons essenciais, como na primavera das cartas que não chegam. É há sempre momentos memoráveis, uns a seguir aos outros, há árias e ariosos, como nesse prenuncio do Homem: "Perco a vista" ou o dueto de amor, no outono, entre o Homem e a Mulher, que se inicia com o mais perigoso desejo - "quem dera para mim a vida dos outros" e que termina na "Luz" impossível, "sou tu, ser eu (...] Pele tão dura mão tão gasta".
            A gravação agora editada provém das duas únicas récitas quanto da estreia na Culturgest, em Lisboa, poucos dias antes do Natal de 2008. O elenco é primoroso. Reúne Lassissa Savchenko (Mãe) Sónia Alcobaça (Mulher), Madalena Boléo, (Cunhada), Luís Rodrigues (Homem) e Mário Alves (Irmão), aos quais se juntam 24 músicos da Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob a direcção de Cesário Costa.
            A edição de "Outro Fim" foi antecedida em pouco mais de um mês pela publicação de Step by Step, conjunto (belíssimo) de obras para percussão, de António Pinho Vargas, interpretadas pelo grupo Drumming, de Miquel Bernat. O disco abre com os oito "Estudos e Interlúdios", de 2000, uma das obras maiores do compositor, pela complexidade e diversidade rítmica e encerra com "Step by Step: Wolfs," de 2002, que resultou de uma encomenda do Drumming e que recupera "Born to Be Wild" dos Steppen Wolf, e o imaginário de "Easy Ryder". Entre estas duas obras encontram-se outras duas de 2011: "Políticas da Amizade, estudo para vibrafone" - ou ensaio para este instrumento  que retoma um título de Jacques Derrida, e Árias de ópera para tuba e percussão". Uma e outra obra inscrevem-se claramente na abordagem recorrente e profunda do texto e da voz, por Pinho Vargas, no contexto estritatemente musical.
            A aparição tão próxima destes dois discos tem de fazer pensar tudo o que a actividade musical diz respeito e, sobretudo, o que tem a ver com a edição, seja em disco. em partitura ou em qualquer suporte que ateste a sua existência.
            "Outro Fim" saiu com a chancela da Culturgest, que acolheu a estreia da ópera, e "Step by Step,"  não sendo um disco de jazz -longe disso - tem o "selo" do Jazz ao Centro Club, entidade organizadora dos Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra. Step by Step encontra-se por isso, sobretudo em lojas que prestam especial atenção ao jazz; "Outro Fim" está à venda na Culturgest , em Lisboa e no Porto,   e em discotecas que se poderiam dizer de "autor".
          Não por acaso, a tese de doutoramento de António Pinho Vargas, Música e Poder, remete exatamente para os processos sociológicos na base da ausencia da música portuguesa no conexto europeu. Seria irónico, se não fosse trágico.  A análise do compositor e toda a reflexão que tem tornado pública, demonstram a incapacidade existente para se cuidar desse património.  Pinho Vargas vai direito ao problema. Quando da apresentação de Outro Fim à imprensa, não hesitou em dizer que teve de "lutar por este disco como pela maior parte de todos os outros" . E como não são muitos, o que é incompreensível, quando se está, provavelmente, perante o mais importante compositor português vivo.
            À parte a faceta de jazz de Pinho Vargas (que também mereceria mais atenção), existe apenas um outra ópera em CD "Os dias levantados" das quatro que compôs, além de antigas edições de "Monodia- quasi un requiem", "Versos", "Six Portraits of Pain" e ", Improvisações", provavelmente já esgotadas, na sua maioria.
           Mas dói ainda mais quando se contam as ausênciasou o que pode sobreviver na memória de quem assistiu às poucas, e muitas vezes, únicas apresentações de cada uma das obras - as oratórias, as peças para orquestra, para conjubtos de câmara, para solistas. O problema multiplica-se pelos compositores portugueses, mesmo tendo em conta alguma evolução editorial , nos últimos anos, que não acompanha, de todo, o que a prática musical cresceu, nas duas últimas décadas.
            Há pouco mais de um mês António Pinho Vargas escrevia que a condição do compositor, atualmente, não difere muito da que tinha no século XVIII, quando a música que compunha existia apenas quando era interpretada ao vivo. Basta a recordação da oratória Judas (2002), do Requiem, de 2012, do Magnificat e do De Profundis, do últimos ano - obras de Pinho Vargas de uma grandeza extraordinária - para se perceber a dimensão do património que se ignora, e da desgraça que é esse alheamento".

Maria Augusta Gonçalves,  Jornal de Letras, 9 a 22 de Julho, p.26


     

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