Ser autor (ou a hipótese de uma comoção estética)
Ser autor é lançar no mundo um objecto, um artefacto humano, que é designado, por vezes, por obra de arte, destinado aos outros. O trabalho de o fazer começa geralmente pelo mal-estar que sempre antecede o desconhecido. Prossegue através de dúvidas, angústias, exaltações ou desilusões, procede com recurso à imaginação e à invenção que determina a auto-avaliação e os muitos retoques que acompanham o seu fazer até chegar a algo que pode produzir, no próprio ou posteriormente nos outros, a chamada emoção estética. Nos casos mais felizes pode mesmo merecer o nome de comoção estética. Destina-se às várias formas da percepção sensível que gradualmente se articulam com uma qualquer forma de espiritualidade ou de elaboração do próprio e posteriormente dos outros, essa entidade abstrata chamada público, leitor, espectador. Entre uma obra de arte e uma recepção dela existem pelo meio numerosos factores de ordem social e cultural no sentido mais lato do termo. Cada um de nós vive sempre no interior de uma cultura, age de acordo com valores e pontos de referência que foi adquirindo no seio dessa cultura. No momento em que pode dizer de si próprio que é um autor - momento longe de ser um adquirido - a sua vida passa a decorrer em paralelo com a companhia, por vezes bem dura, da inquietude, da vaga sensação de necessidade interior, do desejo e do impulso que conduz ao trabalho criativo. Nem o trabalho, nem o resultado, são simplesmente dados; são arrancados das zonas mais profundas do nosso ser e traduzem-se no novo objecto artístico lançado no mundo, nem que esse mundo seja constituído por apenas uma outra pessoa. Tudo o resto é um processo social complexo que passa por instâncias de consagração, por disputas e lutas entre diversas tendências ou orientações, por obstáculos ou favorecimentos criados pelos vários dispositivos de poder que operam no mundo criando hegemonias e subalternizações. Tudo isso é estranho à obra de arte e reflecte simplesmente uma economia de gostos estabelecida num dado momento histórico. A obra de arte contém sempre uma zona de mistério para além de qualquer argumentação discursiva. Uma obra de arte é, no seu modo de ser próprio. Nunca se confunde com a quantidade de discursos que pode desencadear ou não. Será sempre uma existência, dotada de uma autonomia específica, que não deve ser confundida com um limbo espiritual situado fora do mundo. A sua existência, por ignorada que possa vir a ser, passou à categoria de facto. Depois de lançada no mundo é impossível retirá-la de lá. Uma vez tendo existido, mesmo nas artes do tempo como a música, aquele breve ou efémero momento de existência, não pode nunca ser apagado. Tudo o resto pertence a uma outra esfera da acção dos seres humanos que pode ser vista como "património material ou imaterial" de uma cultura. Pouco interessa o uso dessa ou de outra designação. Uma obra de arte uma vez tendo sido, separa-se do seu autor e segue o seu caminho de forma independente, já separada dele. A posteridade não é o centro das preocupações dos criadores ou, pelos menos, de uma grande parte deles. Conta muito mais a própria vida na qual o centro é sempre o fazer da obra.
António Pinho Vargas
António Pinho Vargas
Texto escrito para o livro comemorativo dos 90 anos da SPA publicado a 20 de Maio de 2015
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