A localização da cultura, título de um livro extraordinário de Homi Bhabha, foi uma das bases para a minha tese de Música e Poder (2011). Não existe obra de arte, que não seja produzida num determinado local do mundo, que não esteja sempre inserida numa determinada cultura. Esse é um aspecto indiscutível da produção artística. Não é feita fora do mundo, directamente no "universo", nem nada lhe garante um carácter universal, que não apenas, na minha perspectiva, como expressão de um desejo de universal, como um potencial de uma coisa lançada no mundo. Há muitas coisas lançadas no mundo: sendo todas universais não haveria senão 'universais'. Todas os artefactos humanos tem uma origem localizada numa cultura. Um filme de Hollywood, não é mais universal do que um filme italiano ou indiano. Aquilo que o torna global - o que não quer dizer universal - é todo um dispositivo que pega nesse artefacto cultural e o dissemina pelo mundo todo (ou quase). Não é portanto um fenómeno que diga respeito à arte cinematográfica mas antes um fenómeno ligado à dominação global da indústria cultural norte americana. Esta análise não diz nada sobre a obra de arte em questão. Diz alguma coisa sobre as relações de poder entre as nações, entre as culturas, globais ou locais, centrais ou periféricas, mas essa dimensão - que tem grande importância - não nos diz nada sobre o filme ou sobre qualquer aspecto dele, a não ser definir a sua localização no concerto dos poderes que operam no mundo.
Julgo que este aspecto será claro.
Agora imaginemos que eu sou um compositor. Imaginemos que componho uma obra musical. Antes de mais nada ela é uma singularidade, tal como o filme o será. Essa singularidade é intrínseca, única e interna. Não varia, nem deixa de ser como é, se variar o local da sua primeira apresentação e das seguintes. Este facto - a variação do espaço de enunciação - deriva novamente de dimensões que pertencem à ordem dos dispositivos referidos no primeiro ponto. São anteriores ou posteriores e sempre externos em relação à obra. A obra permanece aquilo que é: uma singularidade. Pensar que o local - há sempre um local - altera a singularidade que cada obra é, para cima ou para baixo, é um erro. A obra é e será sempre igual a si própria. Aquilo que se altera, em termos simbólicos, deriva de considerações da sociologia interna dos campos, das relações de poder em cada momento histórico do que de qualquer outro tipo de consideração.
Mas, definitivamente, não consegue alterar mais do que isso. Não consegue, por mais que se esforce, alterar a singularidade das obras. Não há nada a fazer. Então cada um acredita naquilo que for capaz de formular como juízo de valor. Vale para si próprio e até pode permanecer secreto. Não há nada que me possa fazer acreditar naquilo em que não acredito, nem nada que me obrigue a ter de tornar pública a minha convicção. Não é essa a minha função social nem sinto nenhuma necessidade pessoal de o fazer.
Foi nessa medida que, em Música e Poder, não teci nenhum juízo de valor sobre nenhuma obra musical das que foram lá referidas. Analisei os modos de produção de globalização, os modos de produção de localização e os dispositivos de poder que funcionam no campo musical. Tudo isto é da maior importância para se compreender a realidade e a realidade simbólica que a envolve: atribuindo ou retirando valor.
Mas, insisto, a singularidade da obra, permanece idêntica a si mesma, quer quando lhe é atribuído valor, quer quando não é. Os outros aspectos são importantes? Certamente que sim, caso contrário não teria passado cerca de 4 anos a trabalhar na investigação. Do mesmo modo, os juízos de valor, as opiniões, as estéticas, são também elas próprias, históricas e geoculturais. Muda o local, mudam os gostos, as opiniões e, quando estas se conseguem elevar a um outro patamar superior de análise, os juizos de valor estéticos. Mas tudo isto, incluindo estes, pertencem à ordem do discurso, à linguagem no interior das sociedades e, nesse sentido, voltam a deslocar-se do ser da obra enquanto tal e a inserir-se num determinado contexto geocultural dotado de hegemonias, de predilecções, de gostos específicos. O destino das obras pode ser afectado fortemente por estes aspectos, sem dúvida. Mas há um que permanecerá sempre inalterado: a sua singularidade.
A tal obra que o compositor compôs, ergue-se enquanto singular, e nesse sentido, permanece indiferente ao seu próprio destino. É, simplesmente, está dotada de um ser que lhe é próprio, mesmo se arrumada numa obscura biblioteca.
Tal como aqueles quadros de Van Gogh, para dar o exemplo mais clássico de todos os mitos modernos, que à sua morte não tinham qualquer valor. Era falso. Mas não porque hoje valem milhões como se pensa e argumenta em geral. Mas porque lá, neles próprios, estavam depositadas as componentes que fazem de cada um singularidades. Estavam e continuaram a estar sempre, independentemente das mudanças do seu valor de mercado. Que hoje o seu valor seja aquele que sabemos pertence à ordem das mudanças sociais que obrigam os historiadores a tentarem responder a esses mistérios do passado, os das relações de poder mutáveis, próprias dos campos artísticos, no caso das artes plásticas, a ordem de crescimento do valor de mercado que atingiu proporções astronómicas sobretudo desde os anos 1980. Se não tivesse ocorrido uma tal mudança profunda nos critérios sociais dominantes, os quadros do holandês, teriam permanecido onde estavam.
No entanto a singularidade essencial esteve sempre lá. Tanto quando não valiam nada, como quando valem milhões.
António Pinho Vargas, Agosto de 2015.
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