Julgo que a pergunta do título e a resposta parcial merece uma explicação mais detalhada. Depois de Adorno (1903-1969) - ele próprio já uma excepção no século XX - os filósofos não escrevem sobre música. Os filósofos trabalham com conceitos, criam e usam conceitos. A música não lhes fornece conceitos. É uma arte que se realiza através de um fluxo sonoro, de uma sucessão de eventos sonoros no tempo. A música propõe aos ouvintes um discurso musical criado pelos meios de expressão que lhe são próprios. Nesta arte abstracta por excelência, difícil de captar no seu desenrolar, a dificuldade dos filósofos reside no seu carácter não conceptual.
Mesmo quando alguns deles parece estarem a escrever sobre música na realidade não estão. Alain Badiou sobre Wagner, Slavoj Zizek sobre Wagner, escrevem sobre uma coisa - a ópera wagneriana - que, para além de música, se apresenta como um conjunto de várias expressões artísticas simultâneas - daí a ideia de Obra de Arte Total - e, além disso, teve uma história complexa no contexto da criação de um mito fundador da Alemanha, tornada ainda mais complexa devido ao seu posterior papel em relação ao nazismo. Sobre Wagner muitos podem escrever sem problemas. Toda a problemática das suas óperas o permite.
Há outro tipo de escritos de proveniência anglo-saxónica, de Roger Scrutton a Peter Kivy entre outros, de ostentam títulos como Estética da Música ou Filosofia da Música. São textos com outroa carácter mais generalista e não creio que se possa neles encontrar um pensamento filosófico sobre música no sentido em que se pode encontrar em Adorno.
Na filosofia continental há menos exemplos deste tipo. Mesmo Deleuze, nos Mil Planaltos, refere em várias páginas Boulez. Mas o quê de Boulez? Não propriamente a sua música - como faz, pelo contrário com a pintura de Bacon, com a escrita de Kafka e com o cinema, etc - mas antes com diversas e estimulantes considerações sobre conceitos de Boulez, conceitos que estão presentes e descritos nos escritos de Boulez.
Na sua Conversation, com Boulez, Foucault admite a sua relativa incapacidade de, no final de um concerto, conseguir formular algo que não um limitado julgamento de valor ou até nem sequer um julgamento de valor, qualquer que seja.
Os cientistas sociais, por exemplo, leram Adorno, em especial no livro A Dialética do Iluminismo, o capítulo sobre a indústria cultural, entre outros escritos filosóficos ou sociológicos do alemão da Teoria Crítica de Frankfurt. Tendo este conceito sido várias vezes glosado, actualizado, criticado ou desenvolvido - a indústria cultural existe cada vez de forma mais poderosa ou preocupante - esse facto, natural, não nos deve impedir de assinalar que não terão lido na maior parte dos casos a enorme quantidade de escritos sobre música escritos por Adorno.
A dificuldade de escrever sobre música - apenas os críticos o fazem na sua actividade profissional sem grande problemas ou paralisias - prende-se na minha opinião com o facto da sua imaterialidade. Uma pintura ou uma instalação, têm cores, trabalha com cores ou objectos; a literatura e a poesia trabalha com a linguagem; o cinema é a concretização radical da obra de arte total neste tempo sob outra forma. A música trabalha com o som. E aquilo que acima designei como discurso musical se é na verdade absolutamente fundamental para a música, o termo discurso não deixa de ser aqui usado de forma algo metafórica. É um discurso, como se poderia dizer uma narrativa musical entre outras expressões normalmente tomadas de empréstimo a outras artes - a arquitectura formal desta obra - que na realidade nos servem mas se mantêm fortemente afastadas do seu sentido original. Tanto no discurso musical como na narrativa, como na arquitectura e na forma, sabemos que usamos metáforas. A existência no tempo de uma realidade efémera e difusa - a música - coloca-nos problemas de percepção de vária ordem.
Daqui resulta a dificuldade e o facto de se abrir uma espécie de abismo sem palavras, que os filósofos tem receio de ultrapassar. De todas as artes, perfomativas ou não, será de longe aquela na qual a filosofia disciplinar prefere calar-se.
Se por vezes referi este silêncio, comparado com outras artes, talvez não tenha reflectido bem na questão que se coloca entre conceitos e aqueles termos que Deleuze-Guatarri propuseram em O que é a filosofia? no capítulo VIII: se a filosofia cria conceitos a Arte opera por afectos e perceptos.
Por melhor que tenha sido a explanação deste capítulo, geralmente considerado como a estética de Dezeuze, é talvez claro que não será fácil para outros que não ele, usarem-nos.
Para além de outros escritos sobre música nos quais Adorno se vê hoje como discutível nas suas sentenças ou opiniões - é isso que são, por melhores ou herméticos que sejam os argumentos - sabe-se que a sua Teoria Estética foi publicada inacabada. Do mesmo modo o projecto longos anos mantido de escrever um livro Beethoven: A filosofia da música ficou igualmente inacabado, sendo o que existe publicado em inglês em 1996 e em alemão em 1993, um conjunto de fragmentos dispersos, com notas para trabalhos posterior e dois artigos pequenos publicados em vida. A ambição do projecto de Adorno pode-se aferir na seguinte passagem: "Beethoven é talvez mais hegeliano do que Hegel, que ao aplicar o conceito de dialéctica, procede com muito maior rigidez, à maneira de uma lógica capaz de tudo abarcar do que a teoria que ele próprio ensina. […] Já não se pode compor como Beethoven, mas deve-se pensar como ele compunha".
Neste sentido, presente em numerosos fragmentos do livro, perfila-se o centro do projecto:
"A música só pode expressar aquilo que lhe é próprio: isto quer dizer que palavras e conceitos não podem expressar o conteúdo da música directamente, mas apenas através da mediação, isto é, da filosofia." [23]
"Num sentido similar ao qual só há filosofia Hegeliana, na história da música ocidental só há Beethoven." [24]
Estas duas frases mostram que a incompletude das obras finais de Adorno terão uma das suas raízes no carácter impossível do seu projecto: mostrar que a música de Beethoven e a filosofia de Hegel eram como que um ponto final no seu uso partilhado e entrelaçado da dialéctica.
Sabemos hoje que a dialéctica hegeliana não representou, como ele próprio pensou, o triunfo do Espírito Absoluto - corporizado no seu próprio pensamento (Kojeve) - e desse modo, o fim da História, mas apenas um momento de ilusão totalizante de enorme auto-confiança de que, aliás, ainda persistem vestígios.
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