sábado, 9 de abril de 2016

Dois pequenos excertos em pré-publicação da Revista Glosas 42

A primeira pré-publicação é o penúltimo ponto - 10 - do texto  "Ser Compositor - Aforismos"

10. Quando usei, por vezes, a expressão milagre em relação a algumas das minhas peças que mais prezo, não pretendi atribuir-lhes nenhuma propriedade de tipo metafísico mas antes sublinhar o espanto de as ter feito, a intensa felicidade-espanto de as ouvir, de sentir com frequência o empenho dos músicos, o saber que algumas pessoas se comoveram ou emocionaram de diversas e privadas formas, o facto de poder pensar, sem nenhuma pretensão especial, que um tal privilégio aconteceu na minha vida. Tive essa sorte. A criação é de uma extrema violência para quem faz e, de modo inverso, pode transformar-se no espanto inexplicável que habita as obras de arte. Do mesmo modo - ao contrário de fases mais juvenis ou imaturas - não tenho nenhum interesse em discutir nenhuma questão estilística, técnica ou mesmo estética. Se acredito na verdade que é própria da música, também penso que, seja qual for a orientação de cada um, se pode encontrar, para nosso encantamento, um momento de verdade em obras que partem das mais diversas orientações ou intenções. O belo ou o sublime - conceitos de Kant que motivaram milhares de páginas até hoje e que são variações dos discursos específicos da filosofia, produtora de conceitos - manifestam-se amiúde de forma surpreendente para o nosso prazer. Por exemplo, nas peças Six Portraits of Pain (2005), no Judas (2002) no Requiem (2012), no final de Magnificat (2013) e no mergulho na terra do seu Gloria, há momentos assustadores, terríficos, tremendos de maravilhoso sublime e momentos de belo quase sobrenatural, julgo. No final do segundo concerto de Judas na Gulbenkian em 2004, dirigido por Fernando Eldoro, a sua mulher, cientista, disse-nos: "Hoje foi arrepiante". Arrepiante é um qualificativo do sublime. Mas a distinção de Kant não é válida para o meu uso pessoal enquanto ponto de partida. Uma obra musical não deve renegar a priori o belo nem o sublime, na minha opinião. Pode criar eventos passíveis de serem classificados dessas duas formas. Mas isso verifica-se apenas a posteriori. É um facto que nas temáticas que me são frequentes, o sofrimento do ser-no-mundo está muitas vezes presente, tal como, na verdade, está presente em mim há muitos anos. A recorrência de "uma angústia de temor latente", como disse a respeito da minha música há mais de 15 anos, Augusto M. Seabra. É uma ideia que me parece verdadeira"

A segunda pré-publicação é a parte final da última resposta a Edward Ayres d'Abreu na mesma Glosas nº 42:

"Concebo [o acto de criar] como potência de fazer, sempre contingente. Não será por acaso que o que eu tenho para fazer de há já algum tempo para cá é quase sempre pedido por músicos. Se não for feito para eles, para quem será? Para o futuro? Não, certamente. Falo de políticas da amizade; tento cultivar essa política com os músicos. São eles que dão vida à música, que lhe dão existência plena enquanto fenómeno sonoro artístico. Escrevo sempre para eles e oiço sempre o que dizem. Depois dessa exaltação mútua acontece por vezes alargar-se esta escuta também ao público. Este conceito foi muito mal tratado e mal compreendido: o público sabe ouvir, sabe muito bem quando alguma coisa é capaz de o comover, de desencadear emoções e sentimentos ou quando não consegue. Está apto a compreender e seguir o discurso musical, que penso ser o mais importante: aquilo que temos a dizer. Então, quando músicos, orquestras, coros, se dão intensamente a uma obra, será porque nela existe algo de misterioso, completamente irredutível a qualquer técnica. Quando o fazem o público percebe isso de forma imediata. As obras musicais são objectos lançados-no-mundo-e-para-os-outros, destinadas à percepção sensível e à elaboração razão-sentimento que sabemos hoje estar muito mais articulada entre si do que se pensava há não mais do que vinte ou trinta anos atrás. Quando deixar de sentir esse impulso, totalmente separado de quaisquer conceitos prévios, e até um pouco farto deles — a arte não opera por conceitos como a filosofia, opera por afectos e perceptos, dizia Deleuze — então irei parar."

António Pinho Vargas, Abril de 2016.

Ponto da situação auto-reflexivo: sobre o que fazer ou não-fazer.

Preciso - não quero simplesmente, preciso mesmo - de fazer um ponto da situação sobre os últimos 12 anos, considerando 2004-2016, ou seja, do ano de apresentação de Judas na Gulbenkian até hoje.

Fazer um balanço do meu trabalho, uma avaliação, no sentido nietzscheano, do vário agir criativo e dos seus valores. A crítica levada a cabo no projecto de Nietzsche tal como descrito por Deleuze diz-nos que os valores aparecem ou dão-se como princípios: uma avaliação supõe valores. O problema crítico é saber o valor dos valores, em suma, descrever a sua genealogia que interroga donde procede o valor, qual a sua origem, quem o atribui, etc. (Deleuze: Nieztsche e a filosofia, 1962)
Não pretendo fazer uma avaliação das (minhas) obras de arte, nem do mundo da música.
Esse trabalho está feito, no segundo caso,  de uma forma talvez lúcida no livro Música e Poder, sobretudo, e no primeiro caso, existe já enquanto tal na lista de obras: as que julgo que tem valor,  e as que julgo que não têm (e que por isso estão retiradas).

O que não está ainda feito - a avaliação para a acção - é saber que consequências retiro para a minha vida não tendo um projecto filosófico para realizar. Houve um projecto de criação e, portanto, de pensamento, que já está realizado enquanto tal nas obras. Se pensar na vida toda traduz-se num arquivo bipartido. Mas agora trata-se de avaliar as opções para o que me resta. Trata-se de criar uma ideia para a acção. Nela conflui tudo o que antes foi referido. 

Normalmente os compositores trabalham até à morte ou mais exactamente, até ao momento em que a sua saúde lhes permite. Normalmente vários anos separam a última obra e a morte. Os casos de Ligeti ou de Boulez permitem aferir cerca de 3 ou 4 anos, creio, vividos já na doença e na impossibilidade de fazer.  Há casos como o de Rossini, cerca de 40 anos sem compor até algumas poucas obras nos últimos anos. Este assunto é profundamente humano. Não trata de nada que informe uma lista de obras. Quando muito informará uma ou duas linhas de uma biografia.

Primeiro terei de apresentar a mim próprio uma explicação das razões possíveis para a exaustão que sinto hoje em Abril de 2016, poucos dias depois de ter terminado o Concerto para Viola, The Book of Job, escrito para Diemut Poppen e membros da Orquestra Gulbenkian.

1.
Penso nas obras mais importantes para mim depois de 2002 e encontro: Judas (2002), Six Portraits of Pain (2005), Outro Fim (2008), Onze Cartas (2011), Requiem (2012) Magnificat (2013), De Profundis (2014), Concerto para Violino (2015) e Concerto para Viola (2016, em Setembro próximo); e algumas mais que prezo de forma menos intensa (retirei do catálogo as que não prezo, as que falharam).

2.
Penso nos três discos, Solo, Solo II, Improvisações e nos dois livros publicados, Cinco Conferências (Culturgest: 2009) e Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu (Almedina:2011) a minha investigação de doutoramento na Universidade de Coimbra.
Nota: depois do concerto de piano solo no Grande Auditório da Gulbenkian no próprio dia da estreia do Requiem (2012) - nem sei como consegui fazê-lo naquelas circunstãncias - tive logo a vaga noção que aquele seria do ponto de vista simbólico o meu último concerto. Na realidade fiz mais dois em Ovar e Faro mas a decisão estava tomada. Não voltarei a fazer concertos a tocar. Nada me proíbe de fazer um se quiser.  Mas as determinações anteriores estão realizadas e concluídas
.
3.
Penso nos discos da Naxos Requiem e Judas, seguidos das reedições de Os Dias Levantados e de Verses and Nocturnes em edições digitais da Naxos e de Monodia pela Warner, no disco do Drumming, Step by Step,  que inclui, com mais 3 obras, os Estudos e Interlúdios de 2000 e a nova gravação prevista dos 2 ciclos de canções - as Nove Canções de António Ramos Rosa e as Sete Canções de Albano Martins - por Ana Barros; poderei dizer que falta apenas completar o arquivo com a edição Naxos das gravações de Magnificat e De Profundis e uma outra com os dois Concertos para Violino (2015) e para Viola (2016). Escrevi apenas em itálico porque a edição de um disco implica um esforço insano.

Que me resta? Que me pode restar senão uma ideia de um destino cumprido?

O momento actual da vida musical europeia privilegia os eventos dedicados a, e em torno de, jovens compositores.  Essa fase dura já há algum tempo mas tem-se vindo a intensificar cada vez mais.
Em todo o caso não me posso queixar muito. Tenho tido, desde 2002, um número razoável de eventos dedicados à minha música, para além das estreias de cada uma das obras: Obra Completa na Culturgest em 2002; compositor residente da Orquestra Metropolitana em 2014 e após 25 anos de ensino da ESML finalmente dois concertos lá realizados em 2016 incluindo Six Portraits of Pain e Nocturno/Diurno, não esquecendo as estreias anteriores de De Profundis (2013) e de Three Political Events ((2014).

Dito isto as partituras existem e podem ser tocadas quando os programadores assim o entenderem, coisa muito longe de ser óbvia, como todos sabemos. Alguma da minha música teve recepções públicas inesquecíveis -  a recepção faz parte do ser das obras enquanto eventos sonoros no espaço público na ontologia da obra musical de Roman Ingarten. Os dois casos mais impressionantes para mim foram Requiem na Gulbenkian (nos dois dias) e o Concerto para Violino no CCB, recentemente, seguidos de perto por Magnificat na Cultugest (nos dois dias) e Six Portraits of Pain no São Luíz por Pavel Gomziakov e a Orquestra Metropolitana dir. Pedro Amaral e, igualmente, com Marco Pereira e a Orquestra da ESML dir. Vasco Azevedo. Podia acrescentar duas ou três mais fora do país (Estudos e Interlúdios em Madrid, Nove Canções da António Ramos Rosa, em Bordéus) mas não estive presente, tal como nas várias execuções de Monodia Quasi um requiem: pelo Arditti Quartet em Londres e pelo Smith Quartet em Paris.

No ano de 2017 farei 66 anos, atingindo a actual idade da reforma. Estou consciente do meu enorme cansaço geral, das aulas também - combater os discursos correntes e os mitos associados, ano após ano é uma canseira sem fim - e da sensação algo estranha, admito, de não me apetecer fazer mais nada que não tratar do arquivo.

Se me propuserem um encomenda de uma nova peça irei seguramente pensar bem no assunto antes de aceitar. Já recusei várias encomendas nos últimos anos. Não é público nem tem que ser. Tomo a decisão e ponto final. Sei que isso significa trabalho. Sei também que isso vai contra a corrente da tendência actual que privilegia as estreias - ainda mais não sendo jovem compositor - mas, antes de mais nada, tal como até aqui, apenas se o projecto me interessar e tiver uma ideia precisa de querer-fazer (o que não nunca foi nem será nada evidente).

É justamente neste momento, nesta circunstância, que devo dizer o que sinto (coisa que me implica agora e não mais do que isso).
Se conseguir completar o arquivo gravado das obras que considero mais importantes, o destino terá sido ainda mais cumprido. O arquivo (lá escondido no espaço etéreo ou no fundo de uma biblioteca) não deixa de ser um arquivo.  

Não espero mudanças na vida musical maiores do que aquelas que já ocorreram e permitiram várias apresentações de música minha em blocos nos vários eventos que referi. Por isso e nesse sentido mortalmente lúcido, julgo, por exemplo, que irei morrer sem que as 3 obras corais-sinfónicas Judas, Requiem e Magnificat sejam repostas alguma vez antes ou sequer alguma vez sempre. Será algo estranho mas é uma possibilidade.  Isso poderá talvez acontecer com outros dos vários milagres, que me calhou em sorte fazer, ser capaz de fazer.

No final desta descrição sinto-me já exausto com as memórias do que significaram para mim cada uma destas peças, cada um destes livros, cada um destes discos, para não falar de todos  - aos quais devo acrescentar Os Dias Levantados editado em 2004. Em cada caso não havia nada antes, e foi preciso o fazer e o lançar no mundo. Esta avaliação que me propus diz-me respeito a mim e a mais ninguém.

Aforismo sobre o "estar exausto": estar exausto é uma reacção física, ou psico-fisiológica, perante a  quantidade das coisas feitas em poucos anos, a sua enorme multiplicidade. Essa quantidade foi tremenda. Tremendo, aqui, não deve ser visto como um qualificativo de valor, nem, ainda menos, como um julgamento de valor. É uma medida do esforço do corpo no seu fazer-as-coisas sucessivo. Tremendo serve como expressão para o diferencial provocado pelo devir das coisas-feitas, umas após as outras; vivemos no devir; trabalhamos nele; tremendo foi construir esse complexo de sucessões. A exaustão é o que sente o jogador depois de muitos jogos; a arte é sempre - no seu fazer -  muito aparentada ao jogo, ensina-nos Hans Georg Gadamer.  De cada vez lança-se um dado ou vários dados no ar e procura-se interpretar os dados e as forças neles contidas. O artista olha, rumina e pensa. Depois faz, consciente de que, como Deleuze escreve a propósito de Nietzsche, "dois estômagos não são demais para pensar". Quanto mais para fazer, para produzir: a essência da arte que é também a essência da vida. Arte aqui vista no sentido mais amplo: fazer uma coisa é já trabalho de um artista, independentemente daquilo que resulta dele ser ou não ser uma obra-de arte. A exaustão vista como fadiga-do-fazer e necessidade de descanso de guerreiro no fim das batalhas. 

Se a exaustão prosseguir, se não me sentir motivado, nem com vontade de compor, isso não será para mim uma tragédia parece-me. Tragédia é a vida musical em Portugal ser como é e, com toda a certeza, continuar como tal muito tempo se não para sempre. Uma periferia não deixa de o ser porque alguém o deseja. É uma determinação das relações de poder geocultural neste campo e noutros. Outros o sentem, outros o sofrem ainda mais do que eu. Não sendo tragédia, penso, o que é?

Exercer a potência-de-não inerente ao conceito de potência (e acção) de Aristóteles. Se não quiser, porque razão o terei de fazer? Que força, que decreto, que imposição me força? Se quiser exercer o agir da potência de fazer - coisa que não vislumbro neste momento - nada me impede de o fazer do mesmo modo. Não estou a fazer nenhuma promessa religiosa. Estou a descrever um sentimento íntimo. A potência define uma capacidade para. Ou uma capacidade para-não.

Que fazemos quando estamos cansados? Descansamos com a consciência de que merecemos descansar.

Tudo o resto são discursos mais ou menos justos, mais ou menos injustos, mais ou menos míticos ou silêncios plenos de significado, tal como a plena consciência do afastamento dos interesses gerais destas sociedades hoje dirigidos para outras direcções. Há algumas pessoas - incluindo algumas que nem conheço a não ser de nome - que escreveram belos textos sobre o meu trabalho. Há outras que me disseram frase inacreditáveis (o seu número é imenso).
Tudo isso, tendo sido certamente importante, não altera o fundamental da questão.

António Pinho Vargas, Abril de 2016.

Nota: este texto nunca estará terminado. Estará sempre aberto a inclusões que possam surgir, que possam clarificar, que possam tornar mais rico, ou terrível, conforme os casos, o que é dito.