10. Quando usei, por vezes, a
expressão milagre em relação a algumas das minhas peças que mais prezo,
não pretendi atribuir-lhes nenhuma propriedade de tipo metafísico mas
antes sublinhar o espanto de as ter feito, a intensa felicidade-espanto
de as ouvir, de sentir com frequência o empenho dos músicos, o saber que
algumas pessoas se comoveram ou emocionaram de diversas e privadas
formas, o facto de poder pensar, sem nenhuma pretensão especial, que um
tal privilégio aconteceu na minha vida. Tive essa sorte. A criação é de
uma extrema violência para quem faz e, de modo inverso, pode
transformar-se no espanto inexplicável que habita as obras de arte. Do
mesmo modo - ao contrário de fases mais juvenis ou imaturas - não tenho
nenhum interesse em discutir nenhuma questão estilística, técnica ou
mesmo estética. Se acredito na verdade que é própria da música, também
penso que, seja qual for a orientação de cada um, se pode encontrar,
para nosso encantamento, um momento de verdade em obras que partem das
mais diversas orientações ou intenções. O belo ou o sublime - conceitos
de Kant que motivaram milhares de páginas até hoje e que são variações
dos discursos específicos da filosofia, produtora de conceitos -
manifestam-se amiúde de forma surpreendente para o nosso prazer. Por
exemplo, nas peças Six Portraits of Pain (2005), no Judas (2002) no
Requiem (2012), no final de Magnificat (2013) e no mergulho na terra do
seu Gloria, há momentos assustadores, terríficos, tremendos de
maravilhoso sublime e momentos de belo quase sobrenatural, julgo. No
final do segundo concerto de Judas na Gulbenkian em 2004, dirigido por
Fernando Eldoro, a sua mulher, cientista, disse-nos: "Hoje foi
arrepiante". Arrepiante é um qualificativo do sublime. Mas a distinção
de Kant não é válida para o meu uso pessoal enquanto ponto de partida.
Uma obra musical não deve renegar a priori o belo nem o sublime, na
minha opinião. Pode criar eventos passíveis de serem classificados
dessas duas formas. Mas isso verifica-se apenas a posteriori. É um facto
que nas temáticas que me são frequentes, o sofrimento do ser-no-mundo
está muitas vezes presente, tal como, na verdade, está presente em mim
há muitos anos. A recorrência de "uma angústia de temor latente", como
disse a respeito da minha música há mais de 15 anos, Augusto M. Seabra. É
uma ideia que me parece verdadeira"
A segunda pré-publicação é a parte final da última resposta a Edward Ayres d'Abreu na mesma Glosas nº 42:
"Concebo [o acto de criar] como potência de fazer, sempre contingente. Não será por acaso que o que eu tenho para fazer de há já algum tempo para cá é quase sempre pedido por músicos. Se não for feito para eles, para quem será? Para o futuro? Não, certamente. Falo de políticas da amizade; tento cultivar essa política com os músicos. São eles que dão vida à música, que lhe dão existência plena enquanto fenómeno sonoro artístico. Escrevo sempre para eles e oiço sempre o que dizem. Depois dessa exaltação mútua acontece por vezes alargar-se esta escuta também ao público. Este conceito foi muito mal tratado e mal compreendido: o público sabe ouvir, sabe muito bem quando alguma coisa é capaz de o comover, de desencadear emoções e sentimentos ou quando não consegue. Está apto a compreender e seguir o discurso musical, que penso ser o mais importante: aquilo que temos a dizer. Então, quando músicos, orquestras, coros, se dão intensamente a uma obra, será porque nela existe algo de misterioso, completamente irredutível a qualquer técnica. Quando o fazem o público percebe isso de forma imediata. As obras musicais são objectos lançados-no-mundo-e-para-os-outros, destinadas à percepção sensível e à elaboração razão-sentimento que sabemos hoje estar muito mais articulada entre si do que se pensava há não mais do que vinte ou trinta anos atrás. Quando deixar de sentir esse impulso, totalmente separado de quaisquer conceitos prévios, e até um pouco farto deles — a arte não opera por conceitos como a filosofia, opera por afectos e perceptos, dizia Deleuze — então irei parar."
António Pinho Vargas, Abril de 2016.
"Concebo [o acto de criar] como potência de fazer, sempre contingente. Não será por acaso que o que eu tenho para fazer de há já algum tempo para cá é quase sempre pedido por músicos. Se não for feito para eles, para quem será? Para o futuro? Não, certamente. Falo de políticas da amizade; tento cultivar essa política com os músicos. São eles que dão vida à música, que lhe dão existência plena enquanto fenómeno sonoro artístico. Escrevo sempre para eles e oiço sempre o que dizem. Depois dessa exaltação mútua acontece por vezes alargar-se esta escuta também ao público. Este conceito foi muito mal tratado e mal compreendido: o público sabe ouvir, sabe muito bem quando alguma coisa é capaz de o comover, de desencadear emoções e sentimentos ou quando não consegue. Está apto a compreender e seguir o discurso musical, que penso ser o mais importante: aquilo que temos a dizer. Então, quando músicos, orquestras, coros, se dão intensamente a uma obra, será porque nela existe algo de misterioso, completamente irredutível a qualquer técnica. Quando o fazem o público percebe isso de forma imediata. As obras musicais são objectos lançados-no-mundo-e-para-os-outros, destinadas à percepção sensível e à elaboração razão-sentimento que sabemos hoje estar muito mais articulada entre si do que se pensava há não mais do que vinte ou trinta anos atrás. Quando deixar de sentir esse impulso, totalmente separado de quaisquer conceitos prévios, e até um pouco farto deles — a arte não opera por conceitos como a filosofia, opera por afectos e perceptos, dizia Deleuze — então irei parar."
António Pinho Vargas, Abril de 2016.
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