Meditação intempestiva: "dos inconvenientes da história para a vida" (Nietzsche)
Nas fases de transição entre paradigmas verifica-se uma dificuldade que manifesta o carácter semi-invisível e semi-cego que as caracteriza. Nada é imediatamente evidente. É deste ponto que partirei.
A edição de discos - a que tenho dedicado a maior das energias - tem um duplo alcance. Em primeiro lugar dá às obras uma perenidade que, sem eles, não teriam. Nas plataformas digitais do presente e do futuro será possível que lá se possa ouvir um determinado número de obras registadas em discos que, de outro modo, não seria possível ouvir. As obras musicais, circunscritas no seu momento inaugural, pela natureza da vida musical em Portugal centralizada em Lisboa e, em menor grau, no Porto, podem ser ouvidas em todo o país e noutros países.
Mas, em segundo lugar, a fase de transição em curso mostra sinais de uma passagem radical a um novo modo de existência das novas obras. Estas manifestam-se enquanto realidade nas salas de concertos de hoje de modo idêntico àquele que caracterizou o século XVIII. As obras eram então compostas para uma ou duas execuções, após as quais os compositores faziam outras, sem nenhuma expectativa de história ou de futuro. O próprio conceito de obra segundo Lydia Goehr cria-se por volta de 1800. O século XIX, a formação do cânone musical que então se foi construindo e se aprofundou drasticamente no século XX, colocou a rapidez da aparição e desaparição das novas obras cada vez mais em evidência. Hoje, inícios do século XXI, perfila-se no horizonte um novo passo que acelera ainda mais este processo histórico e a criação de novos modos de produção e apresentação no espaço público das novas obras compostas. Aprofunda-se a velocidade da desaparição. A geração de composições de 1950 desapareceu das salas de concertos com uma rapidez inusitada. O facto de uma ou outra obra ser tocada aqui ou ali, não muda o essencial do facto inegável.
Ao mesmo tempo, o funcionamento das instituições culturais, numa espécie de acção feérica movida pela vontade de sobreviver - face à existência poderosa de outras práticas musicais dominantes - centram-se em duas formas de funcionamento: um lado prossegue a repetição dos concertos com os grandes artistas do mundo na sua arte de interpretação de obras de compositores mortos há muito; ao mesmo tempo, a par com o desaparecimento das obras compostas há 10, 20, ou 50 anos, verifica-se um forte incentivo para a criação de obras novas e múltiplos apoios aos "jovens compositores". No seu conjunto, este processo complexo revela-se como uma forma de angústia de sobrevivência institucional por excesso de actividade para aparentar a existência de vida e ocultar a pulsão de morte relativamente ao passado recente e a ameaça maior que paira por cima. A rapidez com as novas obras se tornam velhas e arrumadas para sempre nunca foi tão acelerada como na última década. É este o sentido do neo-prémoderno que predomina e ressuscita o modo de existência fugaz que lhe é próprio. Tal como no século XVIII - anterior à formação canónica - as obras são feitas uma ou duas vezes e avança-se para um nova estreia. Neste nosso momento sobrepõe-se um tipo de discurso moderno que já não corresponde à realidade e uma prática real muito diferente. O discurso versa sobre o que já não existe, senão como discurso, enquanto a prática real já se determina por outro tipo de valores que, pelo contrário, não motivam nenhum discurso reflexivo. A prática acontece, simplesmente, ano após ano, mas permanece opaca e para além de qualquer reflexão. A forma como se instala só tem paralelo com a forma como é invisível.
Para que os discursos mudassem seria necessário uma nova capacidade de entender e interpretar o real capaz de ultrapassar a vulgaridade dos discursos correntes. É uma dificuldade agravada pela grande capilaridade que se verifica entre os produtores dos discursos e os lugares institucionais que muitas vezes ocupam se separassem e permitisse - terminando essa capilaridade - um novo pensamento e uma nova produção discursiva. Nem termina a capilaridade nem tem sido produzido um novo discurso.
Nas fases de transição entre paradigmas verifica-se uma dificuldade que manifesta o carácter semi-invisível e semi-cego que as caracteriza. Nada é imediatamente evidente. É deste ponto que partirei.
A edição de discos - a que tenho dedicado a maior das energias - tem um duplo alcance. Em primeiro lugar dá às obras uma perenidade que, sem eles, não teriam. Nas plataformas digitais do presente e do futuro será possível que lá se possa ouvir um determinado número de obras registadas em discos que, de outro modo, não seria possível ouvir. As obras musicais, circunscritas no seu momento inaugural, pela natureza da vida musical em Portugal centralizada em Lisboa e, em menor grau, no Porto, podem ser ouvidas em todo o país e noutros países.
Mas, em segundo lugar, a fase de transição em curso mostra sinais de uma passagem radical a um novo modo de existência das novas obras. Estas manifestam-se enquanto realidade nas salas de concertos de hoje de modo idêntico àquele que caracterizou o século XVIII. As obras eram então compostas para uma ou duas execuções, após as quais os compositores faziam outras, sem nenhuma expectativa de história ou de futuro. O próprio conceito de obra segundo Lydia Goehr cria-se por volta de 1800. O século XIX, a formação do cânone musical que então se foi construindo e se aprofundou drasticamente no século XX, colocou a rapidez da aparição e desaparição das novas obras cada vez mais em evidência. Hoje, inícios do século XXI, perfila-se no horizonte um novo passo que acelera ainda mais este processo histórico e a criação de novos modos de produção e apresentação no espaço público das novas obras compostas. Aprofunda-se a velocidade da desaparição. A geração de composições de 1950 desapareceu das salas de concertos com uma rapidez inusitada. O facto de uma ou outra obra ser tocada aqui ou ali, não muda o essencial do facto inegável.
Ao mesmo tempo, o funcionamento das instituições culturais, numa espécie de acção feérica movida pela vontade de sobreviver - face à existência poderosa de outras práticas musicais dominantes - centram-se em duas formas de funcionamento: um lado prossegue a repetição dos concertos com os grandes artistas do mundo na sua arte de interpretação de obras de compositores mortos há muito; ao mesmo tempo, a par com o desaparecimento das obras compostas há 10, 20, ou 50 anos, verifica-se um forte incentivo para a criação de obras novas e múltiplos apoios aos "jovens compositores". No seu conjunto, este processo complexo revela-se como uma forma de angústia de sobrevivência institucional por excesso de actividade para aparentar a existência de vida e ocultar a pulsão de morte relativamente ao passado recente e a ameaça maior que paira por cima. A rapidez com as novas obras se tornam velhas e arrumadas para sempre nunca foi tão acelerada como na última década. É este o sentido do neo-prémoderno que predomina e ressuscita o modo de existência fugaz que lhe é próprio. Tal como no século XVIII - anterior à formação canónica - as obras são feitas uma ou duas vezes e avança-se para um nova estreia. Neste nosso momento sobrepõe-se um tipo de discurso moderno que já não corresponde à realidade e uma prática real muito diferente. O discurso versa sobre o que já não existe, senão como discurso, enquanto a prática real já se determina por outro tipo de valores que, pelo contrário, não motivam nenhum discurso reflexivo. A prática acontece, simplesmente, ano após ano, mas permanece opaca e para além de qualquer reflexão. A forma como se instala só tem paralelo com a forma como é invisível.
Para que os discursos mudassem seria necessário uma nova capacidade de entender e interpretar o real capaz de ultrapassar a vulgaridade dos discursos correntes. É uma dificuldade agravada pela grande capilaridade que se verifica entre os produtores dos discursos e os lugares institucionais que muitas vezes ocupam se separassem e permitisse - terminando essa capilaridade - um novo pensamento e uma nova produção discursiva. Nem termina a capilaridade nem tem sido produzido um novo discurso.
Deste modo a existência de discos - que são editados no mundo em grande número todas as semanas - corresponde, em espelho e de acordo com esta análise, tanto à sua possível perenidade como a uma. possível de antecipar como plausível, sentença de morte das obras enquanto presença real na vida de concertos no país e no mundo. Esta tem outras determinações que escapam ao observador, mesmo atento. A produção em excesso, a multiplicação de eventos, a velocidade extrema com que se passa da existência para a não-existência, concretiza dois factores aparentemente contraditórios: a ideologia da estreia, como forma actual de existência precária e uma nova coexistência com a perenidade digital presente e futura.
Que penso sobre isso, entre a perenidade possível e a ameaça de morte? Penso que é preferível a aposta de Pascal (talvez Deus exista). Porque neste caso a ameaça de morte é já um facto da realidade. A perenidade possível é, no entanto, uma possibilidade na qual se poderá apostar.
Em todo o caso cabe-me decidir em cada momento o que fazer.
É esta convicção, esta eventualidade possível, que justifica o CD Magnificat - De Profundis da Warner Classics que irá sair no dia 17 de Março e os discos previstos seguintes: Concerto para Violino na mpmp, com Tamila Kharambura e a Orquestra Metropolitana de Lisboa dir Garry Walker e Six Portraits of Pain com Pavel Gomziakov e igualmente pela OML dir. por Pedro Amaral no próximo ano.
António Pinho Vargas, Fevereiro de 2017
Em todo o caso cabe-me decidir em cada momento o que fazer.
É esta convicção, esta eventualidade possível, que justifica o CD Magnificat - De Profundis da Warner Classics que irá sair no dia 17 de Março e os discos previstos seguintes: Concerto para Violino na mpmp, com Tamila Kharambura e a Orquestra Metropolitana de Lisboa dir Garry Walker e Six Portraits of Pain com Pavel Gomziakov e igualmente pela OML dir. por Pedro Amaral no próximo ano.
António Pinho Vargas, Fevereiro de 2017
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