Aquilo que, a meu ver, define hoje uma obra musical, um peça, reside fundamentalmente no seu discurso e não no seu material musical específico. Nem sempre se pôde afirmar este aspecto deste modo. Corresponde ao zeitgeist actual. Não é portanto em torno das dicotomias, nem nas querelas ligadas às designações historicamente atribuídas aos diferentes tipos de material (tonalidade vs atonalidade, modalidade vs cromatismo, ritmo pulsado ou estatismo de planos sonoros, forma contrastantes ou sequências não contrastantes, sendo a melodia infinita, por exemplo, uma designação histórica desse mito, etc. O discurso e a narrativa musical tem modos próprios de se lançar no ar. Não são aquelas determinações - que aliás podem coexistir não apenas no conjunto de obras de um compositor mesmo numa única obra, como Leonard B. Meyer premonitoriamente escreveu em 1963, como podendo vir a ser uma característica dominante no futuro - que atestam a eficácia de um discurso musical. Na verdade é o discurso, a sucessão de eventos musicais no tempo que lhe atribui, ou não, o seu sentido último. Em qualquer das orientações que estão ligadas às mais diversas correntes actuais é possível encontrar obras dotadas de um discurso claro e uma articulação formal clara. Prefiro dizer deste modo do que usar os termos antes usados preferencialmente, como lógica, coerência, estrutura, etc., uma vez que estes termos, apesar da sua importância, estão por assim dizer gastos pelo uso excessivo durante décadas. Tal como, aliás, prefiro falar de invenção, imaginação e criatividade. Na realidade não se referem apenas a entidades determinadas, por exemplo, uma estrutura cromática ou tonal, mas podem ser usadas em cada orientação, como “descrição”, ou “actualização”, como se diz na filosofia, do seu modo de ser interno, passível de análise na partitura. Apesar da sua importância, a análise fora-do-tempo, hors-temps, como dizia Xenakis, não é suficiente para desvendar aquilo que é a determinação máxima da música, ou seja, a maneira como os vários elementos constitutivos de uma obra se desenrolam no tempo, como se produzem as ligações entre eles e a sua capacidade de se constituirem como discurso significante.
Nenhum tipo de material tem o exclusivo deste atributo e, inversamente, é possível encontrá-lo em obras desta ou daquela “estética”. Nesse sentido alguns dos conceitos tardios de Boulez, como o de sinal, proposto no artigo “Le système et l'idée”, incluído no livro Jalons de 1989, apontam de maneira nítida para a audição, para a percepção que o ouvinte capta de momentos da obra, sinal como algo que serve para orientar a audição de momentos particulares de uma obra e que o conduzem durante o seu desenrolar; podem ser usados nos mais diversos tipos de orientações estéticas ou técnicas. Do mesmo modo, nenhuma dessas orientações, nenhum tipo de material, pode, por si só, garantir antecipadamente que uma obra vai ser conseguida. É no próprio fazer dela que isso se verifica ou não. Essa é a nossa contingência eterna: tanto pode acontecer como não. E, a dureza deve ser afirmada: não há nenhum discurso teórico ou poético possível, capaz de legitimar uma ausência de discurso musical propriamente dito. Quando isso se verifica teremos de o admitir e, na realidade, penso que cada um de nós sabe muito bem, no momento do primeiro concerto, se a obra conseguiu existir ou não, se disse o que tinha a dizer ou se ficou àquem desse objectivo.
Esta mesma contingência verifica-se em todas as artes e, desse modo, cada artista tende a ser solitário no seu fazer e nas suas convicções. Faz de uma certa maneira e vive com isso.
Esta mesma contingência verifica-se em todas as artes e, desse modo, cada artista tende a ser solitário no seu fazer e nas suas convicções. Faz de uma certa maneira e vive com isso.
No entanto a noção de discurso musical pode considerar-se mesmo nas obras mais lisas, imóveis, estáticas, aparentemente “sem discurso”. Nestes casos podem dar-se ao ouvinte enquanto objecto quase-mágico, constituído pela permanência no tempo de uma superfície sonora aparentemente imóvel, coisa que o desenrolar temporal obrigatoriamente nega e contradiz. Passa a ser a afirmação-da-negação do discurso clássico - no sentido lato - e, desse modo, oferece-se à audição enquanto permanência que propõe um modo de audição próximo de hipnótico. Geralmente trata-se de uma aparência: na verdade há micro-eventos, no interior desse tipo de superfícies. O “mesmo” prosseguindo no tempo, 5 segundos, 1 minuto, ou 5 minutos depois, já não é igual a si próprio, torna-se outro, dado o facto de ter ocorrido temporalmente mais tarde e, como tal, existe já sobre a memória de si próprio momentos antes (o livro de Husserl Lições para uma fenomenologia da consciência ínterna do tempo teoriza justamente essa acumulação de realidade e memória do mesmo, antes passado, dando como exemplo a sucessão melódica). A música é uma arte do tempo, a essência da música e mesmo a sua condição de possibilidade é o tempo. Sem tempo, esse tempo peculiar de som que se propaga no espaço, não há música (nem vida). Não é deste modo estático que trabalho mas reconheço-o como uma possibilidade. Alguns compositores do passado mais recente e ainda do presente conseguem fazê-lo de forma interessante. Dependerá da qualidade dos materiais e do trabalho sobre eles e, nestes casos, pode ser um trabalho quase inaudível mas é tornado audível na sua sequência temporal alargada. De outro modo, um material complexo quando apresentado e sobreposto a si próprio de forma transformada e persistente, pode igualmente constituir-se como imobilidade aparente. A percepção, não conseguindo descodificar os elementos, torna-os idênticos por acumulação. Aqui reside a principal questão de algumas correntes, mas, deve-se considerar necessariamente que há obras bem conseguidas compostas nesses pressupostos. Isso deriva do próprio fazer das obras concretas, específicas, esta e não aquela, e é sempre nelas, em cada uma, que se deposita um sentido, uma razão de ser. Não são portanto os pressupostos técnicos nem as opções desta ou daquela corrente que determinam os resultados de uma obra. Ela é um microcosmos, “um mundo” que se conseguiu erguer.
A maior parte das querelas do mundo da criação musical verificam-se em torno das várias crenças e convicções. Elas estabeleceram-se historicamente em diversos momentos. É portanto sobre estas opções a priori, que se debatem, por vezes furiosamente, as diversas posições. Sendo, por um lado, natural e compreensível, dadas as regras que regulam os campos culturais, parecem-me em grande parte inúteis. Têm como objecto em geral os pressupostos da linguagem e o tipo de materiais - tornados deste modo autênticas divisões do mundo - quando na verdade, são as obras elas próprias, compostas de um ou outro modo, que irão existir enquanto tal e será nelas que reside o seu ser-arte musical. A energia que se consumiu em torno dessas questões, especialmente no passado recente, seria melhor aplicada no fazer-da-obra e no questionar incessante que é inerente ao acto de compor. Nenhuma obra existe sem que um pensamento se tenha empenhado e aplicado no seu fazer. Se não há pensamento musical e pensamento no sentido mais vasto dificilmente haverá obra. Há uma diferença entre pensamento e pre-concepções. Uma ideia de uma obra constitui-se geralmente de forma vaga, partindo dos mais diversos pretextos. No seu fazer a ideia concretiza-se em objectos musicais reais e sobre eles dirige-se a reflexão, a interrogação, o questionamento. É esse processo complexo que constituiu a composição, que a realiza, ou a actualiza-em-obra. Não há como fugir deste processo: é o ponto crucial do acto criativo e nunca é possível contorná-lo, seja de que forma for. Neste momento deste pequeno texto não é necessário dizer que isso se verifica sempre, seja qual for a corrente em questão e sejam quais forem os pressupostos ou as convicções iniciais. O resto - decisivo - é a contingência do compor, o risco inerente ao lançar uma coisa no mundo. É este o ponto nuclear da música, da arte e das artes. Na inevitável contingência, procede-se à busca incessante desse núcleo.
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