segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Suite para Violoncelo Solo

Partitions gratuites
Pinho Vargas, AntonioPinho Vargas, Antonio
Suite pour violoncelle solo
+ MP3 (Interprétation humaine)
Violoncelle seul

Contemporain / 2008
Copyright © Ava Edtions

Powered by Free-scores.com

Dois Violinos para Carlos Paredes (2003)

Partitions gratuites
Pinho Vargas, AntonioPinho Vargas, Antonio
Deux Violons pour Carlos Paredes
+ MP3 (Interprétation humaine)
2 Violons (duo)

Contemporain / 2003
Domaine Public

Powered by Free-scores.com

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Neue Musik – im Zeichen der Finanzkrise?

Este é o título genérico do concerto que apresenta quatro obras de compositores dos países mais afectados pela crise financeira: Islândia, Grécia, Espanha, e Portugal (pela ordem do programa) 24.01.2012 – Black Box, Gasteig um 20 Uhr Streichquartette griechischer, spanischer, portugisischen und irischer Komponisten Neue Musik – im Zeichen der Finanzkrise? Atli Heimir Sveinsson: Streichquartett Nr. 2 Giorgos Koumendakis: Point of No Return Jesus Rueda: Quarteto de cuerda II, „Desde las sombras“ Antonio Pinho Vargas: Movimentos do subsolo, Quarteto de cordas no 2 (2008) A escolha do programa em torno da temática que ocupa actualmente as atenções gerais permite-nos concluir três coisas: primeiro, que habitualmente os compositores que vivem nestes países não são tocados nos países centrais; segundo, que o nosso desconhecimento mútuo entre países periféricos é enorme; e, em terceiro lugar, no que me diz respeito, que esta obra estreada em 2008 no Festival Internacional da Póvoa de Varzim que a encomendou, não foi tocada nem em Lisboa, nem no Porto, nem sequer em lado nenhum. Portanto, primeiro, a presença de compositores periféricos (que vivem nos seus países) depende de acontecimentos para além da esfera artística; apenas ela, não é razão suficiente para a sua presença regular. Estão ausentes das programações dos países centrais em geral; em segundo lugar a dominação dos cânones musicais - tanto histórico como o do subcampo contemporâneo - tem como resultado secundário uma ignorância e uma desconhecimento generalizado das periferias entre si. Todas estão submetidas aos mesmos dispositivos de poder; em terceiro lugar, em Portugal, verifica-se uma continuação da primazia da estreia sobre a sempre adiada integração nas programações regulares, com poucas excepções localizadas. É este facto que me permitiu na investigação que levei a cabo, falar na "ausência da música portuguesa" dentro do próprio país e mesmo quando se concretiza uma apresentação na Alemanha, tal como na tese assinalei, o motivo que permite gerar interesse e curiosidade pelas obras, ser claramente de carácter político, tal como se verificou na Europa dos países centrais depois da perestroika de Gorbatchov e da queda do Muro de Berlim; nessa altura foram numerosas as "descobertas" dos compositores provenientes da ex-União Soviética. Neste caso volta a ser uma circunstância de "trauma" político, ou económico, que desperta nos países centrais interesse pelos compositores periféricos. É o trauma que nos torna objectos de interesse, que nos torna artistas passíveis de atenção. Espero que este lado traumático continue a produzir este tipo de efeitos para além dos outros que já conhecemos.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O que é um melónamo hoje? Quantos tipos de melómanos existem? Uma reflexão, depois de um ensaio, sobre o mutável e o imutável.

Em 1950 havia apenas um tipo de melómano, fácil de definir. Um melómano era um frequentador habitual de concertos. As transformações entretanto ocorridas do ponto de vista da tecnologia deram origem a um outro tipo de melónamo nem sempre coincidente com o primeiro grupo. Este segundo tipo define-se, mais do que por ser um frequentador de concertos, por ser, antes de tudo o resto, um comprador de discos, por vezes, mesmo um coleccionador de discos. Qual é a diferença entre estes dois tipos de amadores de música? Haverá certamente um grupo que viaja intermitentemente entre os dois tipos. Eu próprio pertenço a este grupo misto. Mas, segundo Antoine Hennion, aquilo que hoje marca decisivamente o mundo musical é o conjunto de transformações que a existência da indústria discográfica provocou nas práticas e no contacto dos amadores (no sentido literal do termo, aqueles que gostam de música) no contacto com a música e no seu conhecimento dela. Hennion, que tem escrito amplamente sobre a "paixão" musical, sobre o estatuto do amador, como alguém que pode definir a sua subjectividade de forma activa, muitas vezes contra as categorias pré-definidas em que as músicas de hoje se dividem ou, mesmo, contra as práticas das intituições dos vários tipos que se dedicam à música. Por outras palavras criam em sua própria casa "um mundo musical" que lhes é específico, que resulta das suas escolhas, dos seus interesses, da sua própria possibilidade de comprar discos. Face ao que foi dito não pretendo de modo nenhum colocar em questão nenhum destes tipos de melomania nem questionar a infinita diversidade das escolhas que constituem cada subjectividade assim definida. No entanto gostaria de sublinhar algumas diferenças de vulto que não devem ser ignoradas. Em certos momentos das minhas aulas - sobretudo de História de Música do séc. XX-XXI - faço uma espécie de teste com os alunos para atingir um objectivo relativamente simples. Falo durante algum tempo da ópera Wozzeck de Alban Berg. Ouço as opinões sobre a ópera, dou as minhas próprias, e instala-se um diálogo muitas vezes interessante sobre aquela peça. Depois vem a pergunta fatal! "Quantas vezes ouviram Wozzeck num teatro de ópera?" O resultado é sempre idêntico: nenhuma. A conclusão é por isso fácil de retirar; as nossas ideias sobre música, as nossas opiniões e, o que é pior, os julgamentos de valor sobre muitas peças e muitos músicos tem como base exclusiva o conhecimento através do disco. A questão é a seguinte: a música é por definição ontológica uma eterna possibilidade de existir. Existe a partitura, no caso da música ocidental, e por isso existe a possibilidade infinita de voltar a ser tocada, uma e outra vez. É no acto de ser tocada que os signos que estão na partitura adquirem a sua qualidade de "som", sem o qual não há música. No entanto, um desses actos - seres humanos a tocar música - pode ser gravado (eventualmente editado e trabalhado do ponto de vista sonoro) e nesse momento emerge o objecto chamado disco no qual "uma" interpretação", realizada num dado local e num dado dia, torna-se um objecto tecnicamente reprodutível e por isso sempre "idêntico a si próprio", o que é justamente o contrário da possibilidade de devir-eterno que a música contempla. Claro que se pode gravar outro disco a seguir a tocar a mesma peça, eventualmente por outros músicos, e aí surge um dos outros aspectos principais do melónamo do novo tipo: o coleccionador de várias interpretações. À partida esta possibilidade de comparar as diversas interpretações devia assegurar a consciência da infinitude das interpretações possíveis. Mas, o amador, encerrado no seu próprio prazer solitário, muitas vezes cede à tentação fomentada pelas revistas cujo negócio é publicar críticas de discos e dar cinco estrelas, Choc Musique, ou Diapason d'or, etc., que inventam o conceito de "interpretação de referência", coisa que nunca poderia existir sem a reprodutibilidade técnica. Sem os discos haveria apenas memórias de concertos inesquecíveis. Mas nem mesmo o "inesquecível" consegue resistir à passagem do tempo. Então o que ficaria seria apenas uma recordação de um momento particularmente emocionante, sensível, exaltante, está, como todas as recordações, destinada a tornar-se progressivamente mais vaga até desaparecer juntamente com o desaparecimento do corpo do ser humano em questão. Pelo contrário, o disco e a sua existência reprodutível é aparentemente infinita. Gostaria de terminar sublinhando a experiência sempre renovada de constatar que nenhuma das minhas peças é definitivamente conhecida por mim. Aquilo que é definitivo, como disse atrás, são os discos. Mas o que está eventualmente num disco - e com maior evidência uma obra que ainda não esteja gravada num disco - nunca fechará as portas sempre abertas do devir, que é o essencial da própria possibilidade da música. Muda o dia, muda a orquestra, muda o quarteto de cordas, mudo eu, muda a temperatura, muda a acústica da sala e, de repente, estámos perante o facto indesmentível: aquilo que pensávamos ser "a peça", foi apenas "aquela interpretação" da peça. Tendo total direito à sua colecção de discos - eu tenho direito à minha colecção - o segundo tipo de melómano ganharia na sua percepção daquilo que é essencial na música - a sua eterna contingência - se no momento em que se desloca a uma sala de concertos soubesse que nem vai ouvir um disco, nem vai ouvir uma peça. Vai ouvir apenas aquela realização de uma peça que mantém integralmente em si a possibilidade sempre renovada de voltar a ser. Esta é a grande diferença entre as duas entidades que temos vindo a analisar. É que um disco, por melhor que seja, nunca deixará de ser sempre igual a si próprio. Esta diferença entre o mutável e o imutável é a diferença fundamental entre os objectos de culto dos dois tipos de melónamos.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Notas sobre Onze Cartas (2011)

Antes de qualquer outra coisa, uma nova obra musical é um objecto lançado mo mundo, atirado ao seu vir-aser uma obra. Tranporta consigo o peso de quem a fez, a marca do lugar que a viu nascer e a acção dos artistas que lhe dão vida. Neste caso tem também três linguas das muitas que existem do mundo, três linguas que têm em comum o facto de serem linguas originárias de países do sul da Europa. A marca geocultural que lhe pesará no destino está já inscrita desde o inicio nas palavras sublmes dos três escritores dos textos nos seus vários confrontos com o acto de escrever. O projecto desta peça teve três momentos fundamentais. O primeiro, a ideia de uma peça sobre o acto de escrever, enquanto forma particular de viver e dar vida, com a escolha e selecção dos três autores em 2001. O segundo momento foi uma primeira realização do “libreto” assim constituído numa versão electro-acústica, apresentada duas vezes, já com a perspectiva de que aquele seria um passo na direcção da última versão com orquestra sinfónica que hoje iremos ouvir. Os narradores partilham as nacionalidades dos autores dos textos: italiano, argentino e português. No primeiro momento de 2001 não poderia imaginar a actual situação do mundo. No entanto, essa inscrição geocultural estava já inscrita no projecto de peça a fazer. Não terá sido um acaso uma vez que é essa a minha condição: sou um compositor português que vive e trabalha em Portugal. Essa condição, a forte consciência dela, não impede “o desejo de universal” inerente à obras de arte, mas a todas elas nascem num determinado lugar do mundo e não noutro. Gostaria de acrescentar duas palavras sobre a relação entre o texto e a música. Sempre que se verifica uma tal sobreposição – cantada ou dita – o texto transforma-se numa espécie de libreto que interage, amplifica, modifica, determina e é determinado pela música e com a música. Torna-se uma terceira coisa, uma sinfonia-ópera ou ou ópera-sinfonia. Defendo há já longo tempo a liberdade como atitude base do compositor. A leitura de uma artigo de Wolfgang Rihm em 1989, On freiheit, desencadeou essa reflexão que prossegue até hoje, de várias formas. Parafraseando uma frase do compositor alemão que diz “a tradição é sempre a ‘minha’ tradição” posso escrever que a liberdade e sempre a ‘minha’ liberdade. Não teria qualquer sentido que fosse de outro modo. Agradeço às três instituições que me honraram com a sua associação para esta encomenda no ano em que completei 60 anos de idade, a Casa da Música, o Centro Cultural de Belém e o Teatro Nacinal de São Carlos.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Estado e mercado hoje: Articulações e problemáticas da criação musical publicado em EsquerdaNet

Estado e mercado hoje: Articulações e problemáticas da criação musical

DOSSIER | 16 SETEMBRO, 2011 - 14:31
Não será necessário que uma nova política de esquerda seja capaz de reinventar o papel do estado na cultura para além do que ele tem sido até hoje? Texto de António Pinho Vargas.
A questão das relações entre o Estado e a Cultura é hoje um factor de divisão entre duas opções que, apesar de algumas variantes, se podem resumir ao seguinte: a esquerda até à social democracia defende a acção do Estado na actividade cultural como forma que assegurar a diversidade da produção e a diversidade da oferta. A direita, da neoliberal até aos movimentos emergentes de extrema-direita contestam esta visão e reclamam que, neste como noutros aspectos, o Estado deve retirar-se desse papel e deixar ao mercado a tarefa de levar a cabo as suas escolhas.

Um exemplo recente do crescente radicalismo das posições da direita vem da Holanda, do líder do partido que naquele país subiu bastante nas últimas eleições, uma frase na qual, segundo me transmitiu um compositor holandês meu amigo, terá defendido que “o estado não tinha nada que se ocupar dos hábitos de uma minoria de esquerda snob”.

Entre os vários partidos que defendem a acção cultural do Estado há, no entanto, uma divisão entre uma visão da cultura como principalmente património monumental do passado e outra que considera igualmente as artes performativas do presente como merecedoras da acção do Estado. O debate em Portugal até hoje circunscreve-se a esta divisão e as diferentes práticas governativas mostram de alguma forma esta divisão. Os ataques à política cultural do estado normalmente dirigem-se às artes performativas.

Feita esta distinção deve-se interrogar se os termos em que a questão tem sido posta não traduzem, de alguma forma, o resultado de uma política seguida desde o 25 de Abril e nesse sentido, se não será forçoso no seio da esquerda uma nova discussão aberta destes problemas e de algumas perversões que podem ter ocorrido durante estes anos. A questão é portanto a seguinte: a Esquerda que aqui se procura repensar globalmente pode ou deve manter inalteradas as posições-tipo que se têm mantido até aqui ou deve igualmente repensar a sua posição?

Vou procurar colocar algumas questões que poderão contribuir para esse eventual debate.

Os apoios do Estado à cultura na Europa, associam-se normalmente aos ministros franceses André Malraux e Jack Lang mas, na verdade, deve-se recuar até ao inicio da Guerra Fria para os compreender cabalmente. Sendo a auto-descrição do Ocidente democrático e capitalista uma descrição que nessa altura incluía a “liberdade dos artistas” contra a visão oposta do regime soviético, no qual um conjunto de regras formais e determinações ideológicas eram impostas aos artistas para cumprirem a função que lhes era atribuída pelo estado totalitário, em duas palavras, “por a arte ao serviço do povo” e erradicar os modernismos e a experimentação como uma degenerescência elitista das “democracias burguesas”. Foi este o quadro geocultural e geopolítico que explicou os investimentos que foram feitos no Ocidente no pós-1945. Radica neste período o início de muitos festivais de música na Europa e eventos similares noutras artes que ainda hoje existem. Uma vez que se alterou o quadro geopolítico, com a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética e a emergência triunfante das ideias neoliberais no Ocidente, alterou-se igualmente o discurso ocidental sobre o papel do Estado como vimos no início. O discurso habitual da esquerda considera que a acção do Estado no apoio às actividades culturais é fulcral para preservar a diversidade do mundo face à dominação global exercida pelo do mercado – entretanto ele próprio tornado global – e os seus enormes dispositivos de poder. Penso que esta ideia é consensual e que a esquerda pode reconhecer-se nela sem grandes problemas.

Se eu continuasse com este discurso apenas desta maneira não suscitaria nenhuma reflexão particular. É um discurso repetido e aceite. Mas alguns problemas práticos (e talvez teóricos) se devem colocar, mesmo correndo o risco de dividir os meus ouvintes. Penso que é necessário ir mais além.

Convido por isso as pessoas a pararem um momento e pensarem no que é que acontece de cada vez – e são muitas – que os sucessivos governos do PS ou do PSD até agora anunciaram através dos seus Ministros da Cultura ou dos seus Secretários de Estado, cortes nas verbas, nos subsídios ou mudanças nos regulamentos que vão sendo refeitos de cada vez que muda um ministro, o que, por si só, não é um bom sinal.

Neste circunstâncias recorrentes – os momentos dos cortes – deparamos com uma fissura, com uma patente desigualdade entre diversas áreas artísticas e vários outros aspectos.

1. Em primeiro lugar ressalta à evidência uma diferença entre várias áreas na capacidade de tornar público o seu protesto, a sua reivindicação; isto nota-se na publicação nos jornais de tomadas de posição em textos assinados em defesa da razão de ser do subsídio ou na crítica da indignidade do seu corte. Os artistas que têm maior capacidade de acção no espaço público são os do cinema, os do teatro e alguns da dança.

2. Em segundo lugar o que foi referido é complementado por outro aspeto que é simplesmente a capacidade muito diferenciada de se associarem ou levarem a cabo alianças tácticas. No cinema há uma Associação de Realizadores que assina manifestos mas sabemos que não incluiu todos os realizadores. É uma facção larga mas não é a totalidade da classe profissional. No teatro avultam as companhias há mais tempo no activo e os seus directores/encenadores. Estes agentes culturais promovem por vezes encontros e acções conjuntas.

3. Em terceiro lugar há que admitir – sob pena de se considerar apenas quem tem voz no espaço público e não quem faz parte realmente do real no seu todo – que artistas de outras áreas não se fazem ouvir e raramente participam nos manifestos. Quero referir duas áreas, antes de avançar com uma hipótese explicativa. Os músicos em geral e os compositores, normalmente não estão representados nesse protestos. Também os artistas plásticos raramente se manifestam desse modo, para não falar de escritores, poetas ou arquitectos. Quando tomam posições públicas fazem-no individualmente, em peças jornalísticas a respeito da inacção do Estado no que respeita às representações nacionais e presenças nas várias Bienais de Arte, actualmente uma base importante de circulação das obras. No campo musical, ainda a propósito da capacidade de ter voz no espaço público, neste quadro da problemática Estado/Arte, verifica-se que as únicas coisas capazes de despertar um interesse jornalístico cultural, são o momento da substituição de um director do Teatro de São Carlos, a saída de um conselho de Administração de uma instituição, ou uma guerrilha qualquer a propósito de uma Capital Cultural. Questões de carácter administrativo e não artístico.

Quase sem darmos conta passamos dos artistas eles-próprios para a figura do intermediário cultural.

Esta figura tem assumido crescente importância, e essa importância pode ser vista em si mesmo como um problema. Veremos mais adiante de que forma alguns intermediários culturais revelam não apenas uma tendência de “autor” como muitas vezes esse programa se traduz numa exclusão de artistas portugueses ou de artistas fora do âmbito dos seus gostos estéticos – a estética não passa de uma determinada política do gosto, como escreveu Georges Steiner – e, pior ainda, hoje para justificar uma opção, já não é necessário escrever nenhum Tratado de Estética, nem nenhuma Crítica da Faculdade de Julgar para que uma determinada hegemonia de um gosto se afirme na prática. Basta acreditar em dois ou três lugares comuns e, sobretudo, ter o poder real de os pôr em prática.

As diferenças que identificámos até aqui podem servir para desocultar outras. Julgo que no centro dessas diferenças e desigualdades entre as artes está um conjunto de articulações mais complexas entre o Estado e o mercado em relação às quais pensar apenas com essa dicotomia tradicionalmente aceite não é suficiente para chegar muito longe.

As artes plásticas, por exemplo, articulam-se de um modo complexo e, por vezes, pouco visível, com várias estruturas diferentes: museus de arte contemporânea, galeristas e coleccionadores privados, compras ou Prémios atribuídos por Bancos – sendo que por vezes se verifica uma teia de interesses pouco clara ou transparente entre interesses do Estado e interesses privados do mercado da arte. Tornou-se difícil distinguir nesta actividade artística, onde acaba um e começa o outro. O crítico Augusto M. Seabra escreveu há já alguns anos, alguns textos no jornal Público, sobre a ambivalência ou talvez mesmo sobreposição de interesses entre directores de museus de arte contemporânea tutelados pelo estado que desempenham, ao mesmo tempo, o papel de membros de júris financiados por entidades bancárias e outras instituições privadas que, para ele, tem todo o interesse clarificar e separar. Como já disse nesta área o papel do Estado tem sido assegurar o funcionamento dos museus e organizar (ou não) as representações nacionais nas mostras internacionais. No campo musical o papel do estado é algo semelhante, apesar de não haver nada de parecido com representações nacionais em Mostras Internacionais. Na música o papel do Estado tem sido o de assegurar o funcionamento das Orquestras nacionais ou regionais, a manutenção do funcionamento do Teatro Nacional de Ópera ou da Casa da Música e outras instituições públicas com parcerias com autarquias ou com entidades privadas – em Fundações mistas – e finalmente a atribuição de subsídios pontuais ou para períodos de 4 anos. Estes subsídios são relativamente reduzidos por vezes incluem apoios a festivais de música, a edições de partituras ou a gravações. Não é necessário sequer acrescentar que os valores envolvidos nestes diferentes casos é muito variado, como é óbvio.

Neste campo há no entanto uma diferença fundamental uma vez que o Estado financia instituições e raramente entabula relações directas com artistas. O contacto do Estado é o director da instituição e/ou o programador, mas estes, uma vez acordados os financiamentos anuais, dispõem de grande autonomia. O que se lhes pede é uma “temporada”, de preferência de “nível internacional” eufemismo usado para designar uma certa visão de “qualidade” na prática a contratação sistemática de artistas de outros países, artistas com nomes intimidadores. Este aspecto manifesta-se igualmente em múltiplos festivais de jazz dispersos por todo o país: o intermediário cultural assume muitas vezes uma papel ambíguo: por um lado é o “criador” do evento; por outro, é o produtor activo da ausência de artistas portugueses, apesar de funcionar em contextos financiados pelo estado. Voltarei a este aspecto.

Daqui resulta uma diferença crucial. Quando se fala do cinema, do teatro ou da dança, fala-se de realizadores, encenadores – mais do que de autores teatrais, diga-se – de performers e coreógrafos, em grande maioria portugueses. No campo musical fala-se dos directores das orquestras, dos maestros convidados, dos grandes artistas contratados, na grande maioria não portugueses. O compositor ou o intérprete português de música erudita ou de jazz – já vimos que não há grande diferença entre os géneros deste ponto de vista – pode manter contactos pontuais com essas instituições, obter uma encomenda, conseguir um concerto, de preferência numa sala pequena, mas disto resulta que se vai habituando à sua própria importância residual no quadro do normal funcionamento das instituições; por outro lado, e como alternativa, coloca-se no mercado existente de acordo com a inventividade, a capacidade de resistência e a criatividade que estão normalmente associadas aos artistas, de modo a encontrar oportunidades e mesmo lugares onde possam apresentar o seu trabalho.

É de salientar que essas características associadas ao “carisma do artista”, àquilo que Bourdieu designa como ideologia do artista “carismático” não estão associadas de modo equivalente nos discursos correntes aos ministros, aos programadores ou mesmo aos directores de teatros. A estes, nos meios culturais e de modo muitas vezes surdo – embora audível – associa-se mais facilmente a figura do “conspirador do campo cultural” ou, no mínimo, do detentor de um projecto de poder pessoal. Convém lembrar um exemplo, conhecido de todos, que associava tudo isto numa só pessoa. Chamava-se Richard Wagner.

Para além do que já foi dito, em todas as outras músicas que não a “grande música europeia – o jazz, o rock, as músicas experimentais e mesmo populares de vários matizes - os músicos colocam-se principalmente no mercado: o mercado discográfico, nas salas de concertos (convencionais ou não, tradicionais ou não), por vezes, conseguem inventar lugares abandonados para aí construirem espaços possíveis de apresentação pública e, deste modo, só de forma muito indirecta sentem a “presença do estado” na sua actividade, mesmo nas autarquias que cumprem funções do estado com relevo local fora dos dois grandes centros Lisboa e Porto. A uma macrocefalia dividida entre as duas cidades ao nível nacional, corresponde uma macrocefalia local variada, nas margens das quais são necessárias, para poder trabalhar, formas da tal criatividade que é atribuída aos artistas. E o facto é que ela existe. Daqui decorre uma pergunta inevitável.

Esta existência algo distanciada dos apoios directos do Estado também não explicará a ausência destes artistas nas várias guerras civis contra os cortes recorrentes dos vários ministros? Não traduzirá uma sentimento distanciado do tipo “para mim é igual”? Não será necessário que uma nova política de esquerda seja capaz de reinventar o papel do estado na cultura para além do que ele tem sido até hoje?

Podemos concluir, face ao que foi dito, que as companhias de teatro em geral, as companhias de dança e os seus projectos pontuais e o cinema português, não existiriam tal como têm existido sem os apoios do Estado. O mesmo é válido para as instituições culturais em geral: os museus, as fundações do estado e os teatros nacionais. Mas é nestas artes que a dependência da acção do Estado e da sua política é mais patente. Sem essa participação teriam grandes dificuldades para manter os espectáculos e fazer os filmes. Mas, como em qualquer campo de produção cultural, como Bourdieu nos ensinou, a sua estrutura interna é constituída por disputas internas, por lutas pela primazia, por diversas perspectivas estéticas em confronto. É neste quadro que, nos momentos de combate contra os cortes do Estado, os discursos de alguns artistas, regressa ou regride para o período das vanguardas pós-1950, para a ideologia carismática daquele período. Ouvir hoje um artista dizer que “não lhe interessa que haja um único espectador” é uma manifestação arqueológica de um período já pertencente ao passado e, se não deixa de ser uma expressão do direito à expressão artística, é também uma manifestação algo desrespeitosa e arrogante em relação à própria definição ontológica de “obra de arte” na qual a “recepção” é parte fundamental. Não há obra de arte sem “recepção” sem um outro que a receba.

Para concluir, porque é que na música - com as muito raras excepções igualmente ligadas à ideologia vanguardista do pós-guerra – nunca há as verdadeiras guerras civis de protesto que se verificam nestas artes?

Para responder devemos ter em conta dois aspectos. Os músicos que fazem parte das orquestras mantêm uma relação laboral mais ou menos estável com as entidades patronais e nunca ouvi um neo-liberal protestar por haver execuções de Sinfonias de Mahler. Em larga percentagem é este repertório da “grande música” da tradição ocidental que ocupa cerca de 90% dos programas no mundo, o “cânone ocidental” dominante no mundo nenhum compositor, nem nenhuma obra portuguesa faz ou fez alguma vez parte no passado.

Os compositores portugueses – que têm uma ou outra peça tocada por ano neste contexto – tem estado consideravelmente isolados, algumas vezes excluídos por longos anos desta ou daquela instituição ou das várias “Festas da Música” que algumas vezes são criadas por programadores inventivos. Neste sentido, o compositor – apesar do carácter performativo inerente às obras que compõe – estará mais próximo da figura do escritor ou do poeta, fechado no seu quarto de trabalho, em extrema solidão no acto de fazer a obra, só tendo apenas contacto com os músicos que a irão tocar durante os 3 ou 4 dias de ensaios.

Mas os músicos que assumem a dupla função de criador/performer, os músicos de jazz, de rock, das músicas populares de vários matizes do mundo em geral, têm, pelo contrário, uma vida artística muito mais próxima dos actores de teatro os dos performers de dança: fazem parte de grupos de trabalho colectivo. Mas, de outro modo, raramente beneficiam da acção directa do Estado, e, como já disse, colocam-se no mercado e aí vivem como podem. Se desta área emerge um protesto, um lamento, ele dirige-se contra os critérios do programador dominado como é usual pela tarefa de “trazer cá” os artistas “internacionais”. Este facto que é considerado normal nas músicas pela generalidade das pessoas, seria absurdo ou impensável se imaginado noutras áreas. Duas ou três provocações tornam-no claro. O equivalente no teatro seria terminar com o subsídio da Cornucópia, dos Artistas Unidos ou da Escola da Noite, e por aí fora, fechar os teatros nacionais excepto para convites ao Berliner Ensemble ou o Piccolo Teatro de Milão, ou ainda mais, no caso do cinema, usar os dinheiros do Estado para financiar uns filmes de Spielberg ou de Coppola ou Almodovar. Não teria qualquer sentido. No entanto é precisamente isso que acontece às verbas gastas na manutenção das instituições dedicadas à música.

Sabemos que há duas dominações de âmbito global: a da música pop-rock anglo-americana e, no campo da criação erudita, na tradição da música escrita, a dominação do cânone clássico constituído no século XIX e prosseguido até hoje. Para os melónamos das duas grandes cidades portuguesas é assim e está bem, tal como se verifica em muitos países embora com proporções diversas. Nem todos os países vivem esta nossa relação de “ressentimento e fascínio” em relação à Europa, vista como um todo uno, para usar a expressão de Eduardo Lourenço em Nós e a Europa ou as duas razões. Daqui resulta que, durante muitas décadas do século XX, para os compositores e muitos músicos e intérpretes portugueses, este estado de coisas vigente se traduziu por uma espécie de “exílio no próprio país” uma figura retórica que foi ampla e justamente usada durante o regime da ditadura de Salazar e que pode ser usada hoje por outros motivos. Não se trata de regressar ao isolamento do “orgulhosamente sós” desse tempo. Mas seria necessário estabelecer uma outra ordem de proporções menos desigual entre as músicas dominantes e as músicas dos compositores e músicos portugueses.

Julgo ser por este conjunto complexo de razões – nas quais a relação entre o Estado e o mercado nem sempre é bem analisada – que os músicos e os artistas plásticos não se manifestam nos protestos contra os cortes dos subsídios para a cultura.

Embora longe de ter tratado o assunto destas desigualdades exaustivamente, espero ter conseguido colocar alguns problemas merecedores de maior reflexão no futuro.

Texto de António Pinho Vargas, Coimbra, Setembro de 2011.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Para tentar estabelecer relações nem sempre visíveis: uma introdução ao artigo de Rui Tavares hoje no Público.

O artigo de hoje de Rui Tavares trouxe à colação alguns aspectos relacionados com as conclusões do meu livro Música e Poder. A ausência de música portuguesa no contexto europeu verifica-se fundamentalmente por duas razões. Primeiro o dispositivo de poder activo no campo musical dos países centrais – termo que, quando o comecei a usar na tese entre 2006 e 2009 não era usado no espaço público como é hoje – revela-se como um poder de exclusão dos produtos artisticos das periferias, entre as quais está naturalmente Portugal, preferindo prosseguir com êxito a exportação dos seus próprios produtos. Em segundo lugar e com estreita relação com o primeiro factor, esse dispositivo de poder, dispondo de meios de divulgação da ideologia que consagra os seus produtos – a música dos seus países – como “naturalmente de superior qualidade”, consegue disseminar essa ideologia já com séculos de existência – a primazia da modernidade dos países do norte – e fazê-la interiorizar pelos próprios agentes culturais dos países periféricos, que se tornam assim “agentes activos” da persistente produção activa de inexistência nos seus próprios paises. Como se produz essa inexistência? Um exemplo referido há uma semana por Mário Laginha no Programa Autores II na TVI24 que passo a descrever pelas minhas palavras. Há cada vez mais músicos de jazz portugueses de qualidade da nova geração. Há cada vez mais festivais de jazz no país todo. Pois bem. Os programadores desses festivais – começando naturalmente me Lisboa - atingidos pelo vírus pseudo-cosmopolita, mas no fundo profundamente provinciano e revelador de complexo de inferioridade, que atribui ao “lá fora” – na expressão de Eduardo Lourenço – a tal superioridade “natural” inculcada pelas vias conhecidas, optam sistemáticamente e há longo tempo por “trazer cá” – outra expressão corrente no seu vocabulário – artistas de “lá fora”, uma expressão simétrica de “cá dentro”. Resultado: o jovem artista português de qualidade não tem grandes possibilidade de se apresentar nesses festivais que se tornam deste modo produtores activos da sua “inexistência”. É relativamente fácil de analisar e quaquer pessoa dentro deste meio ou do meio da música erudita sabe que é assim que as coisas funcionam.


Se isto funciona desta forma no interior do país é necessário considerar igualmente a resistência dos países centrais, as suas estruturas de poder e as suas convicções ideológicas. Antes da crise, a minha análise sobre a ausência seria facilmente considerada como “um delírio” de um compositor que se sente maltratado (e sente, dentro de alguns limites). Mas a crise trouxe ao de cima, aspectos que, estando presentes no campo cultural, não se manisfestavam com a clareza que as diferentes esferas da politica e da economia lhes veio trazer.
É por isso que trancrevo o artigo de hoje de Rui Tavares, no jornal Público. Claro que não aborda nenhum aspecto da ausência da música portuguesa “lá fora ou cá dentro”. Mas aborda um tipo de funcionamento que lhe está subjacente e a que, antes da crise, ninguém prestava a menor atenção.
A nossa tarefa é ser capaz de estabelecer relações entre as diversas esferas da actividade e, pelo menos, admitir que, em áreas onde nunca nos interrogamos sobre nada, há coisas para discutir, coisas para transformar, coisas para contestar.



Os indígenas
Por Rui Tavares
Acontece de vez em quando chegar um jornalista do Centro da Europa, incumbido de ouvir uns quantos portugueses, que me pede a opinião sobre a crise da zona euro. E eu, ingénuo, dou-lhe a minha opinião sobre a crise da zona euro. E depois, mais ingénuo ainda, digo-lhe que o tema não acaba ali, e que é importante que falemos, enquanto europeus, sobre o futuro da União Europeia. E, tonto que sou, dou-lhe também as minhas opiniões sobre isso.

Grave erro! O jornalista centro-europeu quer saber duas coisas, e duas coisas apenas. A primeira interessa-lhe enquanto centro-europeu: saber se os portugueses aguentam as reformas da troika, as implementam todinhas, e não chateiam mais. Caso contrário, quer saber se há possibilidade de os portugueses saírem da toca, revoltarem-se, quebrarem umas montras e incendiarem uns carros - e isto interessa-lhe já por motivos profissionais.

Ai se esse jornalista nos visse hoje. Neste dia mesmo, lá vamos nós aprovar mais uma medidinha da troika: despedir gente vai passar a ser um terço mais barato. Porque aquilo de que nós precisamos agora, imaginaram alguns centro-europeus (e acreditam alguns portugueses) é de mais desempregados, com menos dinheiro no bolso, para contrair o consumo e gerar mais futuros desempregados.

Segue-se esta medida ao corte de metade do subsídio de Natal. E antecederá a venda da RTP, da TAP e da Águas de Portugal, três crimes de lesa-pátria. E tudo isto os portugueses, que não são gregos nem espanhóis (e nem sequer franceses ou ingleses!), aguentarão estóica e pacificamente.

Insisto eu: mas isto não era uma entrevista sobre o euro e a União?

A essa altura, já o centro-europeu apanhou o avião para o Centro da Europa, onde a divisão de tarefas é bem clara. O futuro da União é coisa para perguntar a um francês ou uma alemã, de preferência a esses dois que o leitor está a pensar. Berlim e Paris mandaram fazer uma sangria; de Lisboa só é preciso saber se vai esbracejar demasiado ou esvair-se em sangue.

Às vezes passo-me e digo que este neocolonialismo intraeuropeu é que está a matar a União. Que aquilo que tiverem a dizer os portugueses, irlandeses e gregos não é só importante porque estes países estão na linha da frente da crise, mas simplesmente porque eles são membros de pleno direito da União, e não países de segunda categoria. Que, em democracia - a que ainda estamos apegados, por a termos há uma geração apenas -, os remédios só funcionam quando são decididos por todos.

Mas, sabem? Não é fácil. Em parte porque temos um Governo, aqui em Portugal, que não só aceitou o neocolonialismo intraeuropeu como fez dele o seu ideal. Se nos receitarem uma sangria, diz a doutrina, a nossa melhor opção é sorrir enquanto esticamos o pescoço. A docilidade ainda vai mais longe: escolhemos não ter opinião sobre para onde vai a União Europeia. Governo económico? Metas de inflação? Eurobonds? Portugal não tem posição. Disso sabe Berlim e Paris, que são coisas muito complicadas para a cabecinha de Lisboa.

Isto vai acabar mal. À força de não emitir opinião sobre as questões mais cruciais do nosso futuro ainda chegará o dia em que, num Conselho Europeu qualquer, Passos Coelho não será ouvido nem se quebrar uma montra ou incendiar um carro. Historiador. Deputado independente ao Parlamento Europeu (http://twitter.com/ruitavares); a pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico

sábado, 6 de agosto de 2011

Entrevista completa ao Ypsilon sobre o livro "Música e Poder", 29-7-2011.

A música portuguesa nunca existiu [na Europa] - esta era a proposta de título segundo fui informado por Cristina Fernandes.


António Pinho Vargas andava há tanto tempo inquieto com esta questão que decidiu trocar as ferramentas do compositor pelas do sociólogo e escrever "Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu". Uma obra apaixonante, e particularmente polémica, sobre os mecanismos da nossa subalternidade.
Por Cristina Fernandes e Pedro Boléo (texto) e Miguel Manso (fotos)

Como é possível que nenhuma obra portuguesa tenha alguma vez integrado o cânone da música ocidental? Os mais cépticos dirão talvez que a razão seja o facto de nenhuma ter qualidade suficiente, mas essa é uma resposta simplista, desmentida quer pelo facto de algumas obras portuguesas não serem piores do que outras estrangeiras que integram o referido cânone, quer por muitos dos grandes monumentos desse "museu imaginário de obras musicais", como lhe chamou Lydia Goehr, terem sido noutros momentos históricos excluídos. Basta pensar nas Sinfonias de Mahler, olhadas de lado até aos anos 60. António Pinho Vargas não se contenta com respostas simples. Há muito que se dedicava a reflectir sobre o tema, mas só a partir de 2005 iniciou uma pesquisa sistemática no âmbito de um doutoramento.
O compositor nunca quis que a sua tese ficasse esquecida nas estantes das bibliotecas e pensou-a como um livro, agora disponível na Almedina, com o título "Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu". Um livro polémico, em que nenhuma instituição está a salvo. Pinho Vargas, compositor e intérprete, pôs-se a fazer sociologia porque estava cansado das mesmas perguntas e das mesmas respostas sobre o suposto "atraso" e a irrelevância da música portuguesa. O resultado é uma crítica profunda da vida musical portuguesa e dos mecanismos que reproduzem a subalternidade, em particular no subcampo da nova música. O autor assume que o livro é polémico e devia ajudar a gerar um intenso debate mas, com uma certa melancolia, pensa que só será discutido pelas gerações futuras. Porque "ninguém se quer incomodar" e este livro é, certamente, incómodo.

Como é que um compositor se põe a fazer sociologia?
O projecto inicial foi sempre a música portuguesa hoje e alguns dos seus problemas, mas não estava decidido se iria desviar-me mais para o lado da sociologia ou da estética. Em 2005, quando comecei a investigação, era claro que havia uma dominação dos países centrais e uma extrema desigualdade em relação às várias periferias europeias. "A Europa vai à frente e Portugal tenta recuperar o atraso" é uma afirmação que percorre todas as áreas da vida portuguesa. O meu orientador era o professor Max Paddison, da Universidade de Durham, e tinha como co-orientador Boaventura Sousa Santos. Paddison desconhecia não só toda a música portuguesa como toda a cultura portuguesa. No livro, relato a estupefacção de um musicólogo inglês quando lhe expliquei o tema e lhe falei de Lopes-Graça. Ele comentou: "Qquem havia de dizer, Portugal tem um Béla Bartók!" Este tipo de discurso começou a ser um obstáculo à investigação, tinha de estar sempre a fazer "papers" a explicar quem era quem. Acabei por inverter os supervisores e ficar com Boaventura como orientador principal, o que levou à sociologia e ao trabalho com conceitos como a "produção activa de inexistência".

O que é a "produção activa da inexistência" no campo da música?
É encomendar uma peça, fazer a estreia e deixá-la cair para todo o sempre. É um conceito aplicado às coisas que são feitas, mas que já se sabe que não vão existir. Boaventura refere-se ao facto de os países mais pobres e periféricos muitas vezes produzirem objectos que, não sendo reconhecidos pelas instâncias de consagração do centro, acabam por ser considerados inexistentes. A cultura portuguesa tem esse problema no seu todo. Há um artista que emerge aqui e ali, mas no geral não conta para o centro.

O reconhecimento internacional dos artistas portugueses é uma ilusão?
Nos anos 80, os músicos que viviam em Portugal viam Emmanuel Nunes como um exemplo de reconhecimento internacional. Mas, ao sair do país, reparei que fora de Paris ninguém conhecia Nunes. Há um artigo do José-Augusto França que fala da "mais-valia geo-artística" e que diz: "Se eu, como crítico de um país periférico, disser que tenho um pintor lá em Portugal tão bom como aqueles que eles estão a mostrar em Paris ou em Londres, por princípio ninguém me acreditará". Um dos conceitos principais da minha tese é a localização, ou seja, o lugar de enunciação. Cada país tem uma agenda específica. O que se toca em Londres não é Philippe Manoury e em Paris não se ouve música dos ingleses, a não ser talvez Thomas Adès ou dos que passaram pelo IRCAM. O centro nem sequer é monolítico. A Europa só é una para o olhar do periférico. Quando se diz "a cultura portuguesa não é reconhecida lá fora", pressupõe-se que o lá fora é tudo. Não é tudo, é Paris e alguns arredores.

A situação da música é diferente da das outras artes?
A música é talvez a arte onde o cânone ocidental se manifesta com maior poder. A vida musical internacional corresponde a um museu imaginário, à arte de interpretação viva da repetição de peças de compositores mortos. Depois, de vez em quando, há uma estreia. A vida musical tornou-se no prazer do reconhecimento do já conhecido. É o que fazem os melómanos. Mas não foi assim sempre, porque não havia discos. O uso de uma linguagem mais acessível também não resolve o problema. Quantas óperas compôs o Philip Glass? E quantas estão no repertório? O que se passa em Portugal não é diferente, mas é agravado pela condição periférica. O país onde a música contemporânea está menos isolada talvez seja a França, por causa daquilo que o Jean-Jacques Nattiez classificou como "a mais gigantesca operação de salvamento desencadeada por um Estado para salvar uma arte", referindo-se ao IRCAM.

Porque é que o cânone se impõe tanto?
Porque tem dispositivos de poder, que são as narrativas que herdámos, as que ouvi no conservatório e que as gerações mais novas continuam a ouvir. O que está em causa não é o cânone, mas a sua pretensão à exclusividade. O que é criticável não é contar-se uma história da música em que Bach, Mozart, Beethoven são importantes, é não contar o que se passava no mundo na mesma altura e que outros criaram obras que ficaram de fora por determinadas razões. O que vou dizer é forte, para mim próprio: nós conhecemos melhor o cânone do que a música portuguesa. E por isso temos mais facilidade em ler em função das narrativas e das influências. O Alexandre Delgado é um grande lutador pela música portuguesa, mas quando quer elogiá-la usa termos como "o primeiro tema sofre um desvio brahmsiano e depois um desvio wagneriano"... O cânone é o espelho face ao qual nós estamos permanentemente a avaliar aquilo que é feito. Agir de outro modo implica um esforço da nossa parte. No livro faço esse esforço. Não me ponho fora da crítica que faço ali.

No livro, o papel da Gulbenkian é visto de forma bastante crítica...
A criação da Gulbenkian é referida nas histórias da música portuguesa como um momento da maior importância. O que é sublinhado é que finalmente Portugal tinha uma instituição com uma temporada ao nível das grandes capitais europeias. Como diz José Gil, a "pequena montra da Europa na Avenida de Berna". No entanto, como é apontado nos polémicos artigos do Mário Vieira de Carvalho nos anos 70 e por João Paes no "Dicionário de História de Portugal" (1998), quando se dá a abertura do edifício com uma temporada regular, a Gulbenkian já tinha enfraquecido todas as outras instituições através do peso dos festivais - as orquestras da rádio, as pequenas sociedades de concertos - e a sua hegemonia era total. No campo da criação, foi relativamente fácil, com os Encontros de Música Contemporânea, instalar em Portugal a hegemonia dos seguidores da Escola de Darmstadt, não nos anos 50, mas dez anos mais tarde, a partir das viagens de Jorge Peixinho, de Emmanuel Nunes e dos seus discípulos. A partir dos anos 80, os seminários do Nunes (que se prolongaram por 20 anos) e o tipo de encomendas levaram ao afunilamento estético em torno da corrente pós-serial. O favoritismo em relação a Nunes é também visível nas encomendas [23 encomendas entre 1967 e 2007, seguindo-se Peixinho com apenas 12]. Aplica-se aqui o que António Pinto Ribeiro escreveu no livro comemorativo dos 50 anos da fundação: "A Gulbenkian tornou-se uma instituição pesada, a vanguarda no mundo todo explodiu em múltiplas diversidades e a Gulbenkian não acompanhou esse movimento."

Mas hoje a situação mudou...
Grandes acontecimentos como a Europália, Lisboa 94, a Expo 98 e o Porto 2001-Capital Europeia da Cultura foram acompanhados pela abertura de uma série de novas instituições: Centro Cultural de Belém, Culturgest, Museu de Serralves, Casa da Música... Estas instituições terminaram com a hegemonia total da Gulbenkian, começaram a fazer encomendas e começou a haver maior diversidade.

Portugal não acompanhou os mesmos tempos da Europa?
Portugal andou a contraciclo. Construiu estruturas do Estado que terminaram com a hegemonia da Gulbenkian no momento em que a crise começou a instalar-se no centro. De repente começam a aparecer imensos compositores portugueses, a ter encomendas e estreias umas atrás das outras. Este é o aspecto positivo que ressalta da minha investigação. A diversidade interna neste momento é um factor positivo porque corresponde à diversidade interna do mundo. É uma coisa pela qual é preciso lutar politicamente. Não gosto de impérios.

A diversificação não é oportunidade para a mudança?
É. Seria... Eu tive muitas peças tocadas fora e considero que elas não se implantaram em lado nenhum. O compositor local continua a ser local. Verifico que da parte das instituições portuguesas há mais preocupação em fazer boa figura perante o europeu do centro que tem a autoridade, que "vai à frente", do que com a ideia de que este é um veículo da nossa cultura. A Casa da Música até agora foi ambivalente, tal como a Gulbenkian foi antes. Dá uma no cravo, outra na ferradura. A orquestra da Finlândia vem tocar à Casa da Música e faz um programa todo finlandês: o seu Sibelius e mais uma peça da Kaija Saariaho e outra do Magnus Lindberg. A Orquestra da Coruña vai tocar ao Centro Cultural de Belém Mendelssohn e Haydn, mas na primeira parte dos dois concertos apresenta dois compositores espanhóis, um dos quais galego.

As instituições tentam também por vezes encomendar peças que possam ficar no repertório...
Sim, mas falharam essas tentativas. O D. João V e a Fundação Gulbenkian são muito parecidos: trata-se de contratar grandes artistas. D. João V contratou grandes cantores, músicos e o Scarlatti. E por isso o D. João V é o único português mencionado na história da música do Taruskin e na história do Grout. Revela de uma forma extraordinária o inacreditável grau de ausência, como se durante mil anos as pessoas que aqui estiveram não tivessem feito música. Nós sabemos que não foi assim. Mas ao olhar do outro não conta. Há aqui um lance de exclusão que não passa sequer pelo conhecimento da peça musical. Simplesmente não conta, à partida. E quando ouvem, ouvem com preconceitos em relação aos europeus do Sul.

Mas se essas histórias estão mal contadas, porquê exigir estar presente nelas?
Não posso cair nessa armadilha, não tenho de justificar porque é que um português tem de estar lá, têm é de me justificar a mim porque é que não há-de estar. Não há razão, nem sequer decisão. Há ignorância e desconhecimento.

Um livro sobre a inexistência não corre o risco de reforçar a inexistência?
Nenhum. O livro é contra o lamento, critica o lamento o mais que pode. Mas um livro não muda o mundo. Nós estamos numa posição subalterna. Nós saímos cá para fora e a vida musical vai continuar de acordo com as suas forças internas, com a lógica interna do campo estrutural que se chama vida musical europeia.

Então não pode haver presença da música portuguesa em vez de ausência?
A presença tem primeiro de passar a ser local. O português tem de deixar de ter vergonha de ser português em Portugal. O que se tem sentido, desde os anos 90, é que em grande parte das instituições, não todas, há mais gente a querer música nova portuguesa. O problema não está na primeira audição, está na possibilidade da segunda audição, de reapresentar as peças. Sinto uma enorme diferença de qualidade entre 1992 e 2012. As instituições já perceberam que não é por haver compositores portugueses que o público diminui ou aumenta.

Tem tido reações ao livro, polémicas?
Não, não, ninguém se quer incomodar. O meu livro é incomodativo. Julgo que terá reflexos apenas na geração seguinte. As pessoas dos 50 anos pensam é na sua vidinha de compositores, como eu, que tenho de regressar à minha vidinha de compositor. Intérpretes, compositores e musicólogos são três tribos que se ignoram totalmente. É uma comunidade que não se vive a si própria, que não tem curiosidade mútua. Com excepções, claro, generalizar é sempre um abuso.

E dentro dos meios académicos?
Os cães marcam o seu território. E eu entro por um território onde não devia fazer chichi. O Boaventura Sousa Santos disse-me: "Você fez uma sociologia transgressiva de uma grande importância para a vida cultural portuguesa. Os mecanismos que expõe... há agentes que fazem isso. E esses agentes não vão gostar de ver os mecanismos expostos." E avisou-me que podia contar com detractores. Se se sentem atacados, o que é que se há-de fazer?

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Trabalho depois das férias

Novo disco em Setembro de 2011 na Editora Althum.

António Pinho Vargas (piano solo)
Concerto do IST - Improvisações
Setembro de 2011, Editora Althum
Integrado nas comemorações dos 100 anos do Instituto Superior Técnico

Obras de Outubro a Dezembro: estreia e concertos


Onze Cartas
para Orquestra Sinfónica, electrónica e três narradores (pré-gravados), 2011

Textos de Italo Calvino, Jorge Luis Borges e Bernardo Soares ditos nas línguas originais por Giacomo Scalisi, Roberto Perez e António Pinho Vargas.
Electrónica: António Pinho Vargas com assistência de Ricardo Guerreiro.
Assistência e dispositivo informática musical de José Luís Ferreira.

Primeira audição absoluta dia 1 de Outubro na Casa da Música no Porto; Orquestra Sinfónica Casa da Música, dir. Christopher Konig
Primeira audição em Lisboa dia 19 de Novembro no Teatro de São Carlos; Orquestra Sinfónica Portuguesa, dir. Diego Masson

Encomenda da Casa da Música, do Centro Cultural de Belém e do Teatro Nacional de São Carlos.

Six Portraits of Pain (2005)
para Violoncelo Solo e Ensemble
Primeira audição em Lisboa dia 21 de Outubro no PA do Centro Cultural de Belém.
OrchestrUtópica dir. Cesário Costa, violoncelo, Marco Pereira
Concerto comemorativo dos 10 anos da OrchestrUtópica

Duas Peças para Orquestra de Cordas
(1992-99)
dia 9 de Novembro na Centro Cultural de Belém.
Orquestra Metropolitana de Lisboa dir. Cesário Costa
integrado da série Estreia Outra Vez

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Nota a Obra Completa para Piano de Schoenberg, para o CD de Madalena Soveral, Açor, 2009

During his lifetime and even – astonishingly – in the half-century
since his death, the music of Arnold Schoenberg
has been influential and controversial out of all proportion
to the frequency with which it has ever been performed
or otherwise disseminated

Richard Taruskin, The Musical Times, 2004

A história das gravações da obra completa de Schoenberg confirma em absoluto a frase de Taruskin em epígrafe. Não sendo de modo nenhum conforme ao seu estatuto mítico de compositor fulcral do Século XX será mais conforme à dificuldade habitualmente associada à sua música. Essa dificuldade é antes de mais nada verificada na recepção da sua obra por parte dos frequentadores de concertos, que vê em Schoenberg o primeiro e fundamental responsável pelo esoterismo isolacionista que marcou o modernismo musical durante todo o Século XX. Para além disso, a relativamente reduzida discografia da obra para piano releva uma segunda dificuldade: não só provocou a problemática recepção pública como não foi propriamente adoptada pelos pianistas. Os casos que se podem apontar revelam em primeiro lugar o facto de terem sido já “especialistas de música contemporânea” – como, por exemplo, Claude Hellfer em França – aqueles que se tornaram intérpretes da música dos compositores da Segunda Escola de Viena. As duas notáveis excepções na sua discografia confirmam esta regra pela sua particularidade. Glenn Gould, o genial e excêntrico pianista canadiano editou em 1968 as cinco peças que constituem o legado pianístico de Schoenberg. Alguns anos mais tarde, Maurizio Pollini fê-lo igualmente; o grande pianista italiano pertencia ao grupo de amigos de Claudio Abbado e de Luigi Nono, aliás, genro de Schoenberg. Pollini teve sempre interesse por alguma música do século XX ao contrário de pianistas de estatuto equivalente que normalmente se circunscreveram ao “grande” repertório canónico clássico-romântico acrescentado nalguns casos por obras de Prokofiev e poucos mais. Não se cumpriu a profecia-expectativa de Schoenberg que esperava que o tempo viesse a permitir a aceitação geral da sua música.
Para já algumas informações sobre as datas da composição destas obras: as três peças Op. 11 foram compostas em 1909; as Seis pequenas peças Op. 19 em 1911; as Cinco peças para piano Op 23 em 1921 e completadas em 1923, data composição da Suite Op 25. As duas peças Op 33a e 33b são de 1930.
A primeira ideia associada a Schoenberg é a da invenção da série de doze sons. Este procedimento técnico, que visava obter uma forma de organizar o total cromático de acordo com princípios lógicos, sobretudo no que respeita às deduções a partir de uma forma serial original, surgiu após uma longa maturação durante a qual Schoenberg viveu uma crise criativa que o impediu de completar sequer uma peça durante uma década. As Suites Opus 23 e Opus 25 são justamente das primeiras peças a serem compostas já com a nova técnica e se confrontadas com o Opus 33a e 33b, publicadas já durante o seu exílio nos Estados Unidos, permitem vislumbrar a evolução das técnicas seriais de Schoenberg. No entanto, mais rico ainda para os ouvintes será comparar as peças Opus 11 e Opus 19 da chamada fase da atonalidade livre com as outras três obras seriais. Para além das comparações tradicionais entre estes dois grupos de peças, que abordaremos mais adiante, foi de certo modo preciso esperar por Wolfgang Rihm para voltar a olhar para as obras da fase atonal de Schoenberg não como antecipações cromáticas do princípio serial – mas ainda não completamente “organizadas” – mas antes como exemplos prodigiosos de expressão musical intuitiva e livre. Adorno e Boulez marcaram a recepção de Schoenberg nos círculos estreitos da música contemporânea. Enquanto o primeiro, sempre no fio da navalha que caracterizava a sua prosa torrencial e contraditória –de tão dialéctica – considerava que, se o dodecafonismo correspondia às “tendências objectivas do material musical” revelava, simultaneamente, a presença inquietante da racionalidade própria da sociedade administrada, Boulez foi talvez mais claro, sendo as suas preocupações centradas exclusivamente na linguagem musical. Para ele, Schoenberg não teria sido capaz de levar até às últimas consequências a sua descoberta genial original. Assim, Boulez esconjurou o uso das formas barrocas e a rítmica típica das obras seriais de Schoenberg em detrimento da eleição momentânea de Webern como o verdadeiro modelo a seguir por volta de 1950. Enquanto Adorno criticava um excesso de racionalidade, Boulez censurava o defice de aplicação do modulo 12 apenas às “alturas”, como se dizia com o vocabulário da época.
Em todo o caso esta trilogia - Schoenberg, Adorno e Boulez - criou aquilo que se transformou, por um lado, numa vulgata na qual é virtualmente impossível discernir quem disse o quê e, por outro lado, no discurso hegemónica que dominou o ensino da composição e, até certo ponto, o pensamento musical no campo contemporâneo até grosso modo 1980. Um bom exemplo desta posição, entre os muitos possíveis, encontra-se no texto de Henry-Louis de la Grange, incluído no CD de Gould. O autor escreve sobre o Op. 11: “A primeira e a segunda desta peças traem ainda influências nitidamente românticas. Schoenberg permanecerá sempre fiel a certas fórmulas pianísticas herdadas de Brahms, mas que aqui insere num contexto inteiramente novo. Com efeito usa uma linguagem resolutamente atonal, de uma polifonia cada vez mais serrada, ao mesmo tempo que tende para o “total cromático” e a “variação perpétua”, princípios de base da futura técnica serial”.
Um dos erros mais comuns da musicologia e da critica musical é assumir sem hesitações tudo aquilo que Foucault problematizou em torno da noção de autor. É desta assumpção do conceito de autor e do conceito de obra de forma não-interrogada, não questuionada, que deriva a tendência para leituras retrospectivas daquelas duas obras atonais. Nós sabemos efectivamente que, mais tarde, Schoenberg criou os princípios do dodecafonismo serial. Deste conhecimento actual, dá-se o pequeno passo para ouvir e interpretar estas obras como contendo já em si, em germe, o princípio serial. É isto que explica que os teóricos americanos da Set Theory tenham dedicado inúmeros escritos e análises ao estudo das peças atonais de Schoenberg, à procura de princípios intervalares de similitude ou equivalência entre grupos de notas, justamente aquilo que caracterizava, por definição, uma série dodecafónica: ser uma determinada estrutura de notas e intervalos dotada de propriedades invariantes. Este método foi proposto principalmente em The Structure of Atonal Music de Allan Forte, a partir dos escritos seminais de Milton Babbit do final dos anos 1940, mas os seus limites analíticos residem principalmente no facto de se concentrar apenas nas relações entre grupos de notas sem ter em conta sequer o ritmo para não falar de um vislumbre de análise de figuras ou gestos.
O meu ponto principal neste aspecto considera que a noção de autor, com a sua ilusão intrínseca de abarcar “toda a obra”, descarta a contingência humana que, apesar dos lugares comuns das narrativas hegemónicas sobre a história da música do século XX, é absolutamente decisiva na criação artística. O exercício que é necessário fazer é colocar-mo-nos na situação e na circunstância de Schoenberg nesse período atonal. Teria sido absolutamente inevitável para ele evoluir na direcção da criação da série? Teria sido possível, como hipótese técnica, que Schoenberg tivesse prosseguido o seu modo de compor desse período?
Claro que estou a ouvir os partidários que restam da noção de “tendência histórica do material” (adornianos orfãos de Adorno) – conceitos aliás idênticos aos conceitos marxistas sobre a evolução das sociedades – afirmarem: “Mas, na verdade, o serialismo já lá estava implicitamente, em estado potencial e, por isso, o percurso de Schoenberg correspondeu efectivamente às tendências históricas do material”. Não creio. Julgo que alguns aspectos de ordem ideológica e, mesmo, psicológica terão sido muito (mais) importantes. Dentro das determinações que conduziram o compositor nessa direcção avulta, por exemplo, a consciência messiânica de uma missão a cumprir. “Alguém tinha de o fazer, ninguém se ofereceu, respondi eu à tarefa”. Esta ideia deriva da sua inserção total no pensamento de raiz hegeliana - “A história do mundo é a do progresso da consciência da liberdade”– e a convicção de que, no campo musical, cabia aos alemães cumprir esse desígnio histórico. Tinha sido Franz Brendel o primeiro autor a publicar, já em 1852, uma Geschiste der Musik in Italien, Deutschaland und Frankreich aplicando conscientemente a dialéctica hegeliana, “que não se limitava a mostrar que as coisas mudam, mas qual era o propósito das mudanças”, ou seja, o seu fim, o seu destino, a sua razão de ser já inscrita na história.
Para Adorno – que via na fase atonal o momento exemplar do percurso criativo de Schoenberg - e a sua tendência para aplicar conceitos da recém-criada psicanálise freudiana às suas análises musicais - uma das razões que levaram à série dodecafónica teria sido “o medo da liberdade”. A fase “da liberdade” atonal – anterior à conceptualização do sistema dos doze sons – tinha sido, no entanto, muito problemática para o compositor. Apesar dos sucessos das suas peças pós-românticas - Gurre-Lieder e Noite Transfigurada – e mesmo de Pierrot Lunaire, obra composta pouco depois do Op. 11 e do Op 19, sobretudo a partir do Quarteto nº 2, Schoenberg foi muito criticado em Viena e radica nesse facto a necessidade que levou à criação de uma Sociedade de Concertos para apresentar em público as obras do seu círculo. Das acusações de caos sonoro derivou para o compositor uma gradual necessidade de, após ter realizado a sua missão destrutiva – consumar o fim da tonalidade - evoluir para um sistema de composição que lhe permitisse organizar o total cromático que tinha atingido o que ele próprio definia como a “emancipação da dissonância”. Para Schoenberg, era agora necessário organizar as dissonâncias que ele próprio tinha “emancipado”. A sua ideia de Grundgestalt – o núcleo original de onde derivasse o todo – concretizava-se na série dodecafónica de uma forma que, para além disso, se inseria na ideia de Goethe da Urpflanz – a planta arquetipal – base do objecto artistico, feito a partirde uma célula original, considerado como organismo, dotado de vida própria, em função das suas virtualidades internas, o chamado organicismo. Segundo Taruskin, Schoenberg escreveu no seu caderno de esquissos, aquando a composição do Quinteto de Sopros Op. 26 o seguinte: “Penso que Goethe estaria muito satisfeito comigo”. A série era a promessa cumprida do perfeito organicismo.
O sucesso desta ideia e destes argumentos foi muito superior ao sucesso da música de Schoenberg propriamente dita. É deveras espantoso – mas é um facto – ouvir ainda hoje a repetição destes argumentos, enunciados com um tom solene de descoberta pessoal pour épater les jeunes compositeurs e vários outros tipos de ignorantes. É igualmente de considerar, finalmente, a obsessão de Schoenberg com o seu próprio lugar na história da tradição alemã da qual resultaram as ambiguidades do seu discurso oscilando entre a recusa radical da tradição tonal – a partir do conceito disseminado do “colapso da tonalidade” - e a tentativa de legitimar o presente justamente no passado, pelo seu uso de motivos e a sua técnica da “developing variation”, por exemplo, no artigo “Brahms, the progressive”.
Face a tudo o foi dito penso não será de todo descabido colocar a hipótese de, apesar de ter sido essa a evolução real que Schoenberg prosseguiu, ela não ter constituído nenhuma resposta obrigatória a uma qualquer necessidade histórica mas ter sido antes uma opção do compositor. Na verdade, muitos outros compositores seus contemporâneos e/ou posteriores a Schoenberg, não partilharam a sua opção e continuaram a compor com base noutros pressupostos. A narrativa hegemónica procurou excluí-los da história, procurou anular ou desqualificar o seu trabalho e é por essa razão que assistimos actualmente a vários esforços no sentido de reescrever a história da música do século XX, definitivamente mal contada durante demasiados anos.
Sublinhar este aspecto – a opção em detrimento da raiz – reconfigura o contexto teórico e ideológico que marcou fortemente a nossa visão da obra de Schoenberg. É nessa perspectiva que se pode e deve voltar a ouvir estas peças. Já não sob o peso das perspectivas anteriores que procurei desmontar, mas simplesmente como peças de um compositor importante. Certamente que todo o contexto descrito é relevante para uma compreensão plena do seu percurso. Mas o tempo e as suas propriedades, tanto escultóricas como assassinas, obriga-nos a recolocar as questões de um outro modo. É nesse sentido que se pode interpretar a posição de Rihm. Ao incluir o Schoenberg da fase atonal como exemplo de liberdade, ao lado do Beethoven dos últimos quartetos, de Debussy, Varèse e, acima de todos, de Robert Schumann, Wolfgang Rihm chama a atenção para aquilo que me parece ser o mais importante: o facto de haver mais “potencial de futuro” nessas obras de Schoenberg do que no seu sistema posterior.
Gostaria de terminar estas notas sobre este excelente e importante disco com interpretações transbordantes de energia e clareza – com uma referência pessoal ao percurso de Madalena Soveral. Esta petite histoire poderia poupar algum trabalho aos musicólogos históricos futuros, que, em Portugal, tem uma existência incipiente e bastante confinada às estufas universitárias onde tem lugar as suas investigações, se o assunto lhes merecesse algum interesse.
Por volta de 1976, Álvaro Salazar iniciou na Escola de Música do Porto, dirigida por Hélia Soveral, um dos primeiros senão o primeiro curso de análise musical em Portugal. Essa disciplina não era então parte do curriculum. A esse grupo de jovens interessados, na descoberta dos mistérios da música contemporânea, do qual fazia parte, juntou-se pouco depois Madalena Soveral. Após uma estadia em Paris a pianista regressou ao Porto onde nos satisfazia a ânsia modernista, até então frustrada, com recitais que incluíam as Klavierstück IX e XI de Stockhausen, a Sonata de Alban Berg e várias das obras incluídas neste CD. Esta gravação, deste modo, não só realiza um documento essencial e inédito na discografia portuguesa – que provavelmente permanecerá único durante muitos anos – como dá materialidade a um percurso artístico exemplar para a nossa geração.
António Pinho Vargas, Outubro de 2008

terça-feira, 5 de julho de 2011

Os discursos sobre arte e os limites da linguagem a partir de George Steiner

Sobre a questão dos juizos de valor estéticos talvez o pedaço de prosa mais importante que li nos largos últimos anos está no livro “Paixão Intacta” de George Steiner (em francês “Passions Impunies” e em inglês “No Passion Spent”).
Fiquei em estado de choque quando li por duas razões: primeiro, porque pude avaliar retrospectivamente de que forma era verdade para mim o que estava escrito; segundo, porque tomei consciência de quanto tempo tinha perdido em discussões infinitas na expectativa de convencer o adversário momentâneo das minhas razões com resultados nulos.
Diz então Steiner: “A relatividade, a arbitrariedade de todas as propostas estéticas de todos os juizos de avaliação é inerente à percepção humana e ao discurso humano. Pode-se dizer seja o que for a respeito do que quer que seja. A asserção de que Rei Lear de Shakespeare “não merece uma criíica séria (Tolstoi) , e a descoberta de que Mozart compõe apenas trivialidades são totalmente irrefutáveis. Não podem ser desmentidas nem numa base formal (lógica) nem na sua essência existencial. As filosofias estéticas, as teorias críticas, as construções do “clássico” ou do “canónico” nunca podem ser senão mais ou menos persuasivas, mais ou menos abrangentes, mais ou menos descrições derivadas deste ou daquele processo de preferência. Uma teoria crítica, uma estética, é uma política do gosto. Procura sistematizar [... mas] não pode haver prova nem refutação. […] Nenhuma proposta estética pode ser designada como “certa” ou “errada”. A única reacção adequada é a concordância ou a discordãncia pessoal". (38)

Julgo que Steiner está certo nesta posição, tanto como creio que ninguém a aplica na sua vida quotidiana. Esta posição contraria a posição implícita que motiva milhares de debates que ocorrem diariamente; toda a gente parte e pratica o ponto de vista contrário: confia no discurso como meio de rebater as posições diversas e atingir a "vitória" através da retórica usada. Penso que nunca dá resultado senão por desistência passageira do opositor (que no fundo continua convencido da justeza das suas posições). Este lado óbvio dos limites da linguagem humana tem algo de assustador e contraria as nossas práticas quotidianas de tentativas sucessivas de persuasão através do uso dos argumentos.
Mas, como diz Steiner, “pode-se dizer” (e diz-se) “seja o que for a respeito do que quer que seja” sem nenhumas consequências para o próprio, por maior que seja o disparate dito, do nosso ponto de vista.
Não há senão a opção de viver com isto.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Lema futuro para programadores culturais, críticos e políticos-culturais

"Será preciso que alguém me diga - de um outro país qualquer - que o Fernando Pessoa é genial para que eu acredite nisso? É que eu já sei, já sabia desde 1965. Cada um de nós devia ser capaz de acreditar na sua própria capacidade de efectuar julgamentos de valor autónomos, sem a necessidade da caução exterior" (extraído de uma intervenção num debate no Facebook).

Um exemplo: "agora que se fala tanto da empresas que exportam, é quase um escândalo que muitas instituições culturais quase só apresentem artistas cuja maior qualidade é não serem portugueses. E fazem-no com satisfação dos pseudo cosmopolitas sendo o estado a pagar. Se fossem eles pensariam duas vezes. Só em viagens vai uma pipa de massa. Não defendo que não viesse ninguém de lado nenhum (Salazar est mort, felizmente) mas - para dar um exemplo que não me afecta - toda a gente diz que agora, nos últimos anos, surgiram em Portugal muitos músicos de jazz de grande qualidade. Mas olha-se para o programa do Jazz em Agosto e de bastantes outros festivais de jazz cá organizados e não aparece nem um.
Ah, há um: o programador que se esqueceu que no tempo da Dr. Madalena Perdigão havia sempre pelo menos um concerto de um grupo português.
Conclusão: Rui Neves há muitos; Madalenas Perdigão há poucas. " (extraído de uma intervenção no mesmo debate).

Este seria o exemplo a seguir. O outro é o exemplo a evitar.

Confirmação momentânea

Uma frase que confirma uma das conclusões do meu livro Música e Poder foi ontem escrita por Miguel Sousa Tavares: "Uns dias fora daqui fazem sempre um inestimável bem às ideias e à perspectiva. Fora de Portugal, Portugal não existe: o mundo não quer, rigorosamente, saber de nós para nada."
Pequeno prazer pessoal; assim não sou só eu que digo, suspeito como sou... Viajar mais, daria para medir melhor a ausência. Acreditem

sábado, 18 de junho de 2011

Sobre o real e as imagens do real: ver na televisão ou estar lá. Não é a mesma coisa.

Estive em Londres no dia a seguir ao atentado de 2005. Antes de partir uma amigo disse-me que era "histórico porque de certo modo ia para um país em guerra". Passei de taxi numa rua de onde pude ver o autocarro destruído. Vi as notícias e as análises (recatadas) na BBC. Saí à rua e nessa noite assisti a uma ópera de Ferneyhough. Nos dias seguintes, passei várias vezes na estação do comboio onde estavam as flores em homenagem aos mortos, de que se devem lembrar.

Comecei a sentir um mal estar crescente. Não por o país estar em guerra (não estava, pura e simplesmente). Mas porque senti que nós, em Portugal, vemos tudo na televisão desde 1918 (passe o exagero cronológico: não havia tv), com excepção da guerra colonial. Quem lá esteve viu e sofreu o que havia para sofrer. Com essa excepção, tudo o que se passa no mundo só nos afecta - desse ponto de vista particular - muito indirectamente: os emigrantes negros lembram-nos a pobreza das populações desses países; os ucranianos, os romenos, e outros lembravam-nos o fim da guerra fria e o descalabro económico que se seguiu para muitos milhões de pessoas, apesar de meia dúzia ter enriquecido. Para os que enriqueceram recuperou-se até uma palavra quase já esquecida na nossa língua: o magnata, o magnata russo.

Finalmente consegui pensar o seguinte: é muito diferente estar aqui, ver aqui ou ver na televisão, mesmo que seja a daqui. Há um efeito de aterrorizacão, de intensificação nas imagens que, por um lado, banaliza e por outro, reforça e por isso, "constrói", algumas dimensões dos acontecimentos
Nas TVs parece que o mundo vai acabar. No local, tudo leva a crer que a vida continua.

Este problema é o do efeito de transformação do real que os media audio-visuais realizam.

Vou acrescentar aqui um texto que saiu no jornal Público em 2004. O problema é o mesmo: qual é o efeito da circulação das imagens que nos são dadas a ver - alguém as filma, alguém as escolhe, como se verá em baixo, alguém põe música por vezes - nas nossas percepções do mundo?

A Estetização do Horror
Por ANTÓNIO PINHO VARGAS COMPOSITOR
Domingo | 05 de Setembro de 2004

Ontem [dia 3 de Setembro] fiz um esforço para chegar a casa a tempo de ver as notícias às 8 horas sobre o desenlace do assalto terrorista na Rússia. Ia pensando no caminho que o tempo da guerrilha "heróica" de Guevara ou do Vietname tinha acabado há muito, que as lutas contra as potências pela via terrorista tinham chegado a níveis de inumanidade bárbaros e que, com Putin, as respostas eram sempre brutais e trágicas, com muitas vítimas inocentes. Vi as notícias, as imagens de terror, tirei as conclusões que pude mas no final vi outro objecto digno de análise. Antes de avançarem para outros assuntos do dia, a SIC e a TVI - não vi na RTP - passaram resumos de 30 ou 45 segundos do já mostrado. Sem palavras e com música. Este momento realiza a passagem para a estetização do horror.
Não acrescenta nada às notícias, mas configura um formato determinado dos media. Num caso com música lúgubre, próxima das atmosferas mais sinistras de Bruckner, com incidência no plano da menina loira dentro de um carro, no outro, com música mais dissonante e rítmica, no estilo dos herdeiros modernos de Stravinsky dos filmes de acção de Hollywood: planos de automóveis e ambulâncias a grande velocidade, soldados ou pais a correr com crianças mortas ao colo.
Escrevo e é-me insuportável o que escrevo. Tento descrever o que vi e ouvi mas a minha descrição ofende-me. O resumo que estetiza o horror desloca-se do simples registo noticioso para o do videoclip da catástrofe. Lembrei-me de um amigo me ter dito que, na guerra de Angola, a coisa mais estranha para ele era a guerra verdadeira não ter música de fundo. Esta falha grave da realidade estará em parte já resolvida com a possibilidade do uso de auscultadores dentro dos capacetes; como, no filme do Michael Moore, o daquele piloto do tanque americano no Iraque que, em plena acção, está a ouvir um rock adequado: "Let them burn". Nada me garante que os membros da Al-Qaeda, na sua mistura peculiar de fundamentalismo pré-moderno e sofisticação tecnológica assassina não usem Portable CD Players com os mesmos objectivos.
Que audio-mundo é este que estamos a fazer?

Músico, compositor http://jornal.publico.pt/2004/09/05/EspacoPublico/O04.html

Este texto está disponível em pdf no meu site desde essa altura;
http://www.antoniopinhovargas.com/ideias.php

terça-feira, 31 de maio de 2011

Two statements on and by Helmut Lachenmann and two conclusions by myself

1.
"Do not torment yourself too much with analyses. The question is always: which means are used in which ways, why and to what effect, or better, inasmuch to what innovative effect. It is therefore more important to define the categories which are used, installed and stretched rather than to measure things—hence it is more important for analysis: WHAT IT IS rather than how it is made—processes which are often totally buried under later interventions." (H. Lachenmann, personal communication, March 27, 1994) in Hockings, Elke, (2005) "All dressed Up and Nowhere to go", in Contemporary Music Review Vol. 24.nº1, Feb 2005,pp 89-100
2.
"When I studied with Helmut Lachenmann in 1988, I occupied myself with many things, but primarily with how the sounds, movement and structure of a composition should be determined using a numerical system. For some reason or other, Lachenmann was not convinced by the way I worked. One day he told me that my works were typical New Music, lacking a sensuality of sound, and that I should from this point forward work in a new way. This meant that I should first write brief, spontaneous pieces then analyze them, and from them, derive various possibilities that would enable me to write a full piece."
Shim, Kunsu, (2005) The source of Music - From a lesson with Helmut Lachenmann, in Contemporary Music Review Vol. 23, nº1, 2004, pp 19-20

My conclusions:
1.
I very much agree with Lachenmann's attitude as a composition teacher in these two occasions. The question is to know if these two composers, Elke Hockings and Kunsu Shim, compose today music, in some way or another, similar to Lachenmann's own music; if so the lessons have failed. If they have become independent composers, autonomous from the master, they have succeeded.
2.
In composition teaching there are always two terms of an equation or two dramatis personae. They both have their own responsibilities but they are, each one, to a certain degree, isolate in itself and, therefore, incommensurable.

António Pinho Vargas, May, 2011

domingo, 29 de maio de 2011

Arte, vida e melancolia (2010) António Pinho Vargas

(texto publicado nas actas do colóquio Arte e Melancolia, coord. de Margarida Accacciaiuoli e Maria Augusta Babo, Instituto de de História de Arte /Estudos da Arte Contemporánea / Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens, Lisboa, 2011)

Um conjunto de circunstâncias de carácter pessoal explica que a temática da arte e da melancolia esteja neste momento relativamente afastada das minhas preocupações, sobretudo se tomada no seu sentido mais estricto, talvez a relação entre a melancolia e o fazer das obras de arte. Por isso, terei de começar por dois pontos prévios. que permitam estabelecer um conceito provisório de melancolia social.
Passei os últimos quatro anos da minha vida, naturalmente a compor e a tocar, mas principalmente a trabalhar numa investigação no Centro de Estudos Sociais da Unievrsidade de Coimbra e no Departamento de música da Universidade de Durham com vista à minha tese de doutoramento, sob a orientação do Prof. Boaventura de Sousa Santos e a co-orientação do Prof. Max Paddison. O titulo da tese é “Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu”. Essa investigação constituiu em si uma experiência profundamente melancólica. Em primeiro lugar, porque a extensão da ausência da música portuguesa é enorme. Sendo eu um agente activo nesse campo como muitos outros (seremos uns 50 em actividade neste momento). A extensão da ausência do trabalho dessa comunidade artística é de tal modo vasta que a maior parte dos portugueses, mesmo melómanos, não faz grande ideia da dimensão do facto. Por vezes lemos umas notícias no jornal, fulano de tal ganhou um prémio internacional no concurso tal, vai ser tocada uma obra de sicrano em tal parte. Esses factos são verdadeiros mas o seu alcance na vida musical é completamente residual. Não é por exemplo o facto de eu ter tido várias obras executadas em Paris, Londres, em Amesterdão e várias cidades da Alemanha e de outros países da Europa e até S.Francisco, Moscovo e Pequim que me permite afirmar sob qualquer forma a presença da minha música. São circuitos secundários – que existem e são dotados de importância real – mas não contrariam a ausência e a sua enorme dimensão.

Face a isto quando me perguntam qual é o tema da minha tese tenho de dar alguns exemplos para as pessoas terem uma ideia mais exacta da realidade e da realidade simbólica que os exemplos ilustram. O livro no qual várias gerações de estudantes e músicos se formaram em história da música foi a History of Western Music de Donald J. Grout, na sua 3ª edição de 1984, em especial nos países de lingua inglesa e nos outros onde a obra foi traduzida. Em Portugal foi traduzido pela Gravida em 1999. Este livro refere apenas um português e chama-se D. João V. Esta referência surge porque num dado momento o monarca português contratou Domenico Scarlatti para Mestre da sua Capela Real e professor de cravo da sua filha. Portugal aparece nessa história da música não por nenhuma produção de nenhuma compositor português mas apenas porque esteve no trajecto de um dado compositor hoje canónico que num dado momento foi contratato pelo Rei português. Recentemente foi publicada outra história da música – a Oxford History of Western Music - que se reclama de outros pressupostos do autor Richard Taruskin. Foi editada em 2005 e saiu agora em 2009 a edição paperback. Trata-se de uma obra monumental, em cinco volumes, o autor é geralmente considerado o mais brilhante musicólogo da sua geração nos países anglosaxónicos, reclama-se da hermenêutica da suspeição e utiliza métodos de análise histórica e musical nunca antes reunidos num livro desta natureza. Taruskin considera que a sua história é a primeira a ser escrita fora dos canones da musicologia tradicional e das mitologias discursivas da mais diversa natureza que constituem as narrativas das históricas da música tradicionais. O seu aparecimento provocou-me algumas expectativas, dado o seu carácter heterodoxo e crítico face às obras anteriores, nomeadamente a de Paul Henry Lang, igualmente usada longo tempo até Grout, na qual não há qualquer referência a portugueses (incluindo D. João V) e algumas outras traduzidas em português como várias obras do autor francês Roland de Candé, que são livros menos sofisticados do ponto de vista musicologico, mais destinados ao público em geral, como Convite à Música, ou História Universal da Música, sendo no entanto exemplos de obras escritas na perspectiva tradicional. Também nestas a ausência é a regra. Se a expectativa em relação à obra de Taruskin, obra de resto notável de vários pontos de vista, era grande, o facto é indiscutivel: o único portugues incluido por Taruskin nos mil anos de música ocidental volta a ser D.João V pelas mesmas razões de Grout. Por isso entre a história tradicional e a história pós-moderna, digamos assim, escrita já no século XXI não há diferenças do ponto de vista da ausência da música portuguesa. A razão é simples. Taruskin afirma que está a escrever a história da música ocidental, incide particularmente na construção do canone musical ocidental por volta de 1800. Antes disso nem sequer havia o conceito de história da música e este é um dos mitos: nós ouvimos Bach e pensámos que sempre esteve na história da música tal como a vemos hoje. Não, fazia a música para fins específicos e nunca pensou que duzentos anos mais tarde alguém pudesse querer tocar a sua música. Neste aspecto o autor problematiza efectivamente de modo muito mais rico do que as obras anteriores a própria história da formação dos mitos ainda hoje operativos e essa é uma das diferenças fundamentais em relação às coisas que nos eram contadas. Dessa história canónica de que Taruskin nos quer fazer a narrativa crítica, nenhuma obra de qualquer compositor portugues faz parte. Mas faz parte de facto Scarlatti.
Podemos concluir que tanto nas narrativas tradicionais, como a de Grout, como nas narrativas pós-modernas e críticas, como a de Taruskin, Portugal, como país no qual existiu música, onde compsitores escreveram música ao longo de séculos, não existe. Os portugueses estudantes de música, de instrumentos, de canto, de composição ou de musicologia lêem estas obras e nelas não vêem, de uma forma geral, Portugal. Começa assim o processo de interiorização da inexistência, da ignorancia a que é votada, e consequentemente, começa a naturalização da ausência que prossegue de muitas outras formas: nos programas de estudos das escolas superiores e conservatórios, nos programas das temporadas das instituições culturais e das orquestras em geral.

No entanto, devemos atender primeiro às diferenças que existem quando passamos para o século XX. Em várias obras, aparecem capitulos dedicados ao nacionalismo aliás desde o século XIX mas particularmente no século XX. Surgem países dedicados a compositores provenientes dos países periféricos da Europa, países fora da zona geográfica do centro onde se estabeleceu o cânone, dominado pela Alemanha, a França e a Itália até certo ponto. Como sabemos, são destes países grande parte das obras que são repetidas ano após ano, temporada após temporada, nas salas de concertos e nos teatros de ópera.
Por outro lado, com o modernismo musical do inicio do século XX e o cisma que se lhe seguiu, sobretudo depois de 1945, há alguns livros sobre a música do século XX e mesmo obras dedicadas exclusivamente às correntes dominantes no interior do subcampo contemporâneo. É o caso da obra de Célèstin Deliège, “Cinquenta anos de modernidade musical: de Darmstadt ao IRCAM”. Os lugares referidos no subtítulo são os pontos de referência mais importantes do ponto de vista simbolico nessa história particular, mas, ao mesmo tempo mostram-nos qual é o lugar de enunciação principal desta corrente, qual é o ambito geocultural que ela ocupou até há poucos anos. Após o cisma moderno, criou-se um conjunto de estruturas, instituições, musicos especializados, críticos e programadores dedicados exclusivamente à parte cismática, a parte da vanguarda que se separou do tronco comum histórico que domina nas salas – é a este conjunto de agentes que chamo subcampo contemporaneo, seguindo as posições de Pierre-Michel Menger – e o livro de Deliége apresenta-se como um testemunho de um homem ele próprio activo no subcampo, amigo e admirador de Boulez, a quem dedicará aliás cerca de 500 das suas 1000 páginas.
Falo desta obra – em lugar por exemplo da obra Cambridge History of Twentieth Century – porque nesta última não existe nenhuma referência a Portugal nem a portugueses e em virtude da maior importância simbólica de Deliége como membro activo e testemunha interna do subcampo. Neste livro de 2005 há dois portugueses referidos. Um é relativamente previsível que o seja, é um compositor que vive em Paris desde 1964, chama-se Emmanuel Nunes e, nesse sentido, está localizado nos países centrais, no local de enunciação, no local onde existe a música contemporanea. Muitos compositores provenientes de muitas partes do mundo optaram por lá viver. Eu posso citar Mauricio Kagel, argentino desde 1950, Xenakis, grego, desde 1947 ou 8, Isang Yung, coreano, desde 1950, Ligeti, húngaro, desde 1956. A lista seria interminável porque são muitos os compositores que vieram dos seus países periféricos de diversa natureza, e se instalaram ou em França ou na Alemanha. Aconteceu o mesmo com compositores russos e de repúblicas soviéticas, especialmente depois da Queda do Muro de Berlim em 1989 e do colapso da União Soviética, serão mais de uma dezena, Arvo Pärt, Alfred Schnitke, Sofia Gubaidulina, Valentim Sylvestrov, por exemplo, vivem todos na Alemanha aqueles que ainda não morreram. Naturalmente Emmanuel Nunes, integrado com sucesso, faz parte desse numeroso grupos de compositores emigrantes e tem direito no livro de Deliège a 4 páginas em dois capitulos. No entanto não é o unico portugues referido. O outro português citado, ao contrário das minhas expectativas, não é Jorge Peixinho, o primeiro a frequentar os cursos de Darmstadt, aluno de Boulez em Basileia no início dos anos 60 e participante em algumas performances de obras de Stockhausen. Não, não é Jorge Peixinho. Tendo regressado a Portugal a dada altura localizou-se, aos olhos do centro europeu provincializou-se e deixou de contar para história (que eles escrevem). Quem está lá então? O Dr. Luís Pereira Leal, director do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian. Um é compositor e o outro é o mecenas dos compositor. Deliége diz o seguinte e cito de memória: “o sucesso [de Nunes] começou quando chegou à poderosa Fundação Gulbenkian o manager Luís Pereira Leal”. Pode-se portanto dizer que Pereira Leal, aparece na segunda metade do século XX em relação a Nunes, como D. João V apareceu no século XVIII em relação a Scarlatti. Esta questão, que pode fazer rir, como fez agora, é uma questão importante sobre a música que vivemos hoje que dava para uma outra conferência que não quero nem posso fazer. Digo apenas que se está a verificar uma passagem da nossa criação contemporânea para um modelo próximo do modelo pré-moderno, do modelo social anterior ao cânone. Nós vivemos dominados pelo repertório histórico, que se destina a ser repetido ano após ano, a integral das Sinfonias de Mahler, a integral das Sinfonias Beethoven, a integral das Sinfonias de Mozart – de Mozart não, porque são muitas! – e este é o cânone histórico que domina 90% da vida musical da tradição europeia. A música do século XX ocupa menos de 10% e da chamada contemporânea não tenho dados que me permitam arriscar um número. O que é importante é que acaba por existir no real da mesma forma que existia no tempo de Bach e dos seus antecessores. O mecenas deixou de ser o Frederico II da Prússia ou o D. João V passou a ser o director da Fundação Gulbenkian ou do Centro Cultural de Belém que existem no mundo inteiro, das várias fundações culturais e destina-se apenas e exclusivamente a uma ou duas execuções e depois desaparece tal como era prática corrente até ao final do século XVIII. Vivemos assim um imaginário que tem no horizonte a entrada para o cânone, e este imaginário tem sido sucessivamente frustrado ao longo do século XX – não apenas em relação aos portugueses mas em relação a todo o mundo – mas a prática mostra-nos que estamos numa espécie de divisão entre um imaginário moderno que vive na expectativa de um entrada no cânone e uma realidade pré-moderna – e por isso pós-moderna – de obra que destina a ser feita uma vez e logo de seguida descartada porque nunca entra no cânone. Esta minha tese é muito complicada mas talvez seja visionária. Quanto à ausência eu estive quatro anos a trabalhar nela e por isso no fim, fiquei com uma enorme tristeza que é o que o Bourdieu diz que acontece aos sociólogos no fim do seu trabalho: o mundo é como é, mas eu não fico satisfeito com isso e, no meu caso pessoal ainda menos porque sou como agente activo, como compositor; esta situação de desigualdade, esta situação periférica de irrelevância culltural – um problema da cultura portuguesa que o Eduardo Lourenço há muitas décadas vem analisando, que José Gil recentemente abordou de uma outra forma e a que Boaventura de Sousa Santos dedicou alguns textos brilhantes – coloca-nos perante uma forma de inexistência. Por isso, eu estou melancólico porque não existo!
A questão da melancolia, ela própria, não está no centro das minhas preocupações actuais porque foi ultrapassada por todas as outras melancolias, digamos assim, as melancolias da minha condição de artista. Eu não me sinto bem, sendo artista que está a viver aquilo a que Georges Steiner chama “a fatalidade das linguas menores”. A minha música é, por assim dizer, escrita em português. Surge aqui a importância da figura do tradutor. Nesse texto “An Exact Art” Steiner afirma mesmo que não havendo tradutor para inglês o escritor de uma minor language de qualquer parte do mundo está actualmente condenado ao silêncio, não existe no actual mercado global dominado pelo anglo-americano sob múltiplos aspectos. Do ponto de vista do mundo das artes em geral –espaço de enunciação restricto, lugar de disputas nacionais e transnacionais onde se manifestam enormes desigualdades e dispositivos de poder inequívocos, como vimos há pouco - esta problemática existe com a mesma dimensão que atinge na literatura e reclama a tarefa da tradução no sentido amplo: uma prática que promove e permite a troca cultural entre diferentes culturas. Contra a aceitação resignada do mundo tal como ele é em cada momento histórico particular.
Por outro lado não é preciso ser heideggeriano para saber que nós somos seres-para-a-morte e que a finitude é o horizonte que, mais tarde ou mais cedo, de uma ou outra maneira, nos pesa, nos faz sentir que é num determinado contexto temporal e perante esse horizonte obrigatório que nós vivemos. A minha música, em geral, se traduz isso traduz porque eu sinto como pessoa essa angústia existencial. Comprei, há uns vinte anos, um pequeno livro de Aristóteles em francês sobre a melancolia, li algumas partes mas não li tudo porque podia ficar ainda mais deprimido mas lembro-me que ele fala muito do vinho, o vinho como uma espécie de tratamento para a doença. Eu tenho um problema, é que, gosto imenso de vinho tinto mas não posso beber nem muito, nem depois das 5 da tarte e por isso estou impedido de aplicar a mim próprio a terapêutica aristotélica.

A partir de aqui, tendo antes procurado explicar as razões que produzem a melancolia associada à condição de artista, gostaria de mostrar alguns extractos de música na qual, em diversos momentos, tentei realizar em obra algumas das preocupações que acabei de referir nesta última parte.
O primeiro exemplo pertence a uma peça composta em 1993 que foi importante para mim em termos da descoberta da possibilidade de uma certa maneira de fazer. Dado que o mundo musical da música contemporânea é muito pequeno e muito restricto há debates internos próprios dos campos que, como diz Bourdieu, são campos artísticos de produtores para produtores - o público é constituído quase sempre por outros artistas que vão apresentar as suas peças a seguir, porque se não tiverem uma obra a seguir não irão lá ouvir – mas é também a arte na qual o corte modernista de 1910 e sobretudo o corte do spós-1945 se faz sentir mais patentemente até hoje. Actualmente os quadros de Jackson Pollock ou Mark Rothko tem grande valor no mercado da arte, na literatura o corte pós-moderno posterior a Samuel Beckett e James Joyce já se verificou, já ninhuém tenta seguir a direcção proposta pelo Finnewang’s Wake, considerou-se com relativa facilidade que aquele tinha sido um caminho que tinha sido seguido num dado momento mas que estava encerrado, fechado e, pelo contrário, a música foi a arte na qual a eleição desse momento radical historicamente localizado se prolongou incrivelmente mais do que nas outras artes. Talvez não seja indiferente nem separado deste processo o facto da música pop global, agora no século XX com “história” através de suporte discográfico, se tenha expandido tanto.
Eu não partilhava esta visão mas sair dela não era fácil então e ainda hoje há numerosos compositores, festivais, críticos e programadores que a tomam como regra imutável. Mesmo para além de Monodia quasi un requiem de 1993, as outras duas peças que iremos ouvir em parte significam para mim momentos desse longo percurso de construção de mim próprio como compositor autnónomo e livre, etapas do processo da individuação, no meu caso extravagante e pouco comum a segunda individuação.

Em Monodia quasi um requiem (1993) tentei escrever uma peça sobre a morte. Rarefacção extrema do material, um modo de produzir um auto-desenvolvimento no próprio acto de compor e a descoberta da possibilidade de construcção de uma narrativa a partir de um dado inicial simples, um gesto largo e pesado, foram muito importantes nesta peça e no meu proprio trabalho, justamente para evitar e encontrar uma alternativa àquele conjunto de princípios associados ao pós-serialismo a que tentava fugir.
Em Acting-Out para piano, percussão e orquestra (1998) parti do conceito psicanalítico que define uma acção fora do comportamento habitual do sujeito e construí uma dramaturgia, por assim dizer, com alternâncias entre acções e reacções até uma pacificação final. Ouviremos a partir da passagem sub-intitulada Brutal Response até o final.
Escolhi o episódio de Judas (2002) nos quatro Evangelhos para o tratar como problema humano, como momento de sofrimento de duas personagens, Jesus e Judas. Mas, para além disso, escolhi para o coral imitativo final dois fragmentos do texto de Mateus em torno da ideia de “assim se terem cumprido as antigas escrituras”, ou seja, da questão que se pode levantar entre a omnisciência de Deus e a crueldade predeterminada a que tais escrituras condenam, de certo modo, tanto Jesus como Judas. O seu destino estava “escrito”.
Se a música não ocupasse um lugar tão irrelevante na sociedade portuguesa –mesmo nos meios culturais – esta obra coral-sinfónica poderia ter provocado algum debate de tipo teológico. Mas não. A inexistência que me torna melancólico é mais forte.

Muito obrigado pela vossa atenção.

António Pinho Vargas


Referências Bibliográficas

Bourdieu, Pierre (1993), The Field of Cultural Production: essays on art and literature. Ed. e introd. de Randal Johnson. Cambridge: Polity Press.
Bourdieu, Pierre (1996a), As Regras da Arte. Lisboa: Editorial Presença.
Candé, Roland de (1982), Convite à Música. Lisboa: Edições 70
Candé, Roland de (2003-2004), História Universal da Música. Porto: Edições Afrontamento.
Cook, Nicholas, e Pople, Anthony (2004), The Cambridge History of Twentieth-Century Music. Cambridge: Cambridge University Press.
Deliège, Célestin (2003), Cinquante Ans de Modernité Musicale: de Darmstadt à l”IRCAM: contribution historiographique à une musicologie critique. Sprimont: Mardaga
Gil, José (2005), Portugal: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio D'Água.
Grout, Donald Jay (1973), A History of Western Music. Nova Iorque: Norton.
Grout, Donald Jay, e Palisca, Claude V. (2007), História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva.
Lourenço, Eduardo (1999), Portugal como Destino, seguido de Mitologia da saudade. Lisboa Gradiva.
Lourenço, Eduardo (2004), Destroços: O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios. Lisboa: Gradiva.
Menger, Pierre-Michel (1983), Le paradoxe du musicien: le compositeur, le mélomane et l'État dans la société contemporaine. Paris: Flammarion.
Menger, Pierre-Michel (2003), "Le Public de la Musique Contemporaine" in Musiques, une encyclopédie pour le XXIº Siècle vol I - Musiques du XXième siécle, ed. J.-J. Nattiez ed, Actes du Sud/Cité de la Musique, 1169-1188.
Ribeiro, António Pinto (2007), "Arte" in Fundação Calouste Gulbenkian: Cinquenta Anos; 1956 -2006 ed. A. Barreto Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 237- 405
Ribeiro, António Sousa e Ramalho, Maria Irene (org.) (2001), Entre Ser e Estar: Raizes, Percursos e Discursos da Identidade. Porto: Edições Afrontamento
Santos, Boaventura de Sousa (ed.) (1993a), Portugal: um retrato singular. Porto: Edicões Afrontamento.
Santos, Boaventura de Sousa (1993b), "Modernidade, identidade e a cultura de fronteira" in Revista Crítica de Ciências Sociais, 38, (Dezembro, 1993), 11-40.
Santos, Boaventura de Sousa (2001) "Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, Pós-Colonialismo e Interidentidade" in org. M. I. Ramalho e A. S. Ribeiro, Entre Ser e Estar: Raizes, Percursos e Discursos da Identidade. Porto: Edições Afrontamento. 23-85.
Taruskin, Richard (2005), The Oxford History of Western Music. Oxford: Oxford University Press.