Este texto foi publicado no Atual do Expresso do dia 20-7- 2013 com o título O cisma musical
Um novo paradigma emergente na vida musical?
O futuro permanece em aberto. Teoricamente toda
a gente aceita este postulado. Mas todas as mudanças que ocorrem no mundo, nas
fases de transição como a que atravessamos, defrontam, no início, a nossa falta
de imaginação histórica. Numa das formulações que lhe são próprias, Boaventura
de Sousa Santos escreveu que "as fases de transição são semicegas e
semi-invisíveis". Interpreto esta frase como sublinhando, primeiro, que as
transformações desencadeiam processos que não preveem todas as suas
consequências, processos-cegos e, segundo, pondo em realce o facto de, por
vezes, mesmo estando já em curso sinais potenciais de mudanças, as convicções e
as crenças antigas, tornam-nos semi-invisíveis. Parto desta frase para levantar
uma "hipótese de trabalho" que defronta certezas seguras acerca da
história futura como mera continuação ou variante do que já existe.
Na vida musical da tradição erudita no Ocidente
verificou-se, a partir sobretudo de 1950, um aumento progressivo de uma cisão
estética entre duas esferas, coexistentes no tempo, mas separadas nas suas
práticas dominantes e nos seus intervenientes. Refiro-me à predominância,
progressiva e em larga escala, do repertório histórico, da prática da repetição,
ano após ano, de um conjunto de obras restrito, o chamado "cânone
musical" constituído através de
inclusões e exclusões. Esta dominação realiza-se como "museu imaginário"
nas salas de concertos e teatros de ópera do mundo ocidental e a sua
factualidade não suscita grande discussão. Nos programas impera a importância da
interpretação, uma arte viva enquanto execução ou gravação de
obras mortas, no sentido de terem
sido compostas há muito tempo Do outro lado do cisma, está a "criação
musical de hoje" sobretudo a partir de 1950, mas já latente desde o início
do século XX. A tomada de consciência social do cisma conduziu a uma nova designação,
previamente inexistente: a da chamada "música contemporânea". Esta
separação resultou no aparecimento progressivo de um conjunto de agentes e
instituições específicas e especializadas, em muitos casos completamente
diversas das já existentes para a interpretação do repertório do passado. Segundo
Pierre-Michel Menger, este subgénero "tem os seus actores, os seus auditores, mas também o pessoal das
administracões culturais e das cadeias de radiodifusão públicas que financiam e
sustentam a producão e a difusão de obras que não têm mercado directo ou
imediato. Tem os seus mecenas, [...] a sua cronologia institucional, a invenção
dos ensembles especializados, dos festivais, dos centros de pesquisa e
de producão". Em Portugal, um exemplo desta estrutura de apresentação
pública terá sido os Encontros de Música Contemporânea da Fundação Gulbenkian, existentes
de 1977 até 2002. O seu fim assinala a sua exaustão, segundo alguns autores, ou
uma tentativa de criar uma nova forma. Esse modelo acabou
por aprofundar ainda mais o cisma referido. Nicolas Donin[1]
escreve em 2005, numa publicação do IRCAM: "raras são as obras da vanguarda dos anos 50 que entraram no repertório
dos músicos não especializados” e mais adiante, que "a primeira audição é o momento decisivo
no qual pesa o ritual do concerto sobre a obra: a ausência do direito ao erro
por parte dos intérpretes, o julgamento estético colectivo do público, a
expressão diferida do julgamento dos críticos (no dia seguinte ao concerto) e
ainda vários outros elementos, condicionam largamente o futuro da obra ao
expor-lhe as virtualidades”. Donin escreve pensando no seu país, a França, mas mostra-nos
que "a estreia seguida de descarte" e as suas várias consequências, não
é uma característica exclusiva dos países periféricos como Portugal.
Qual será então a emergência que pretendo
destacar? Um retorno parcial a aspectos do período prémoderno sob novas formas.
Deve-se considerar semelhanças e diferenças. Entre as primeiras destaca-se: 1. A
primazia das estreias e posterior descarte das novas obras aproxima-se cada vez
mais das práticas pré-modernas anteriores a 1800, ou seja, um reaparecimento do
formato social da vida musical pré-moderna, música destinada a ser tocada umas
poucas vezes. 2. Em lugar dos príncipes e dos bispos do séculos XVII e XVIII
surgem novos mecenas: as instituições culturais que encomendam novas peças mas
que de uma maneira geral praticam o descarte após a estreia. 3. No período
pré-moderno, compositores estavam ligados contratualmente aos seus patronos, com
a tarefa de compor sucessivamente novas obras; com maior incerteza mas alguma
regularidade o único rendimento dos compositores actuais é a encomenda. Os outros
rendimentos clássicos, os direitos de autor e as vendas de partituras, são hoje
residuais e ameaçam desaparecer.
No que respeita às diferenças entre os dois
regimes sublinho: 1. Na maioria dos casos as instituições culturais dedicadas à
música, mantêm, no entanto, a vida musical canónica como a principal em larga
percentagem. As temporadas repetem as mesmas obras com enorme regularidade. Mas,
no que se refere às novas produções muitas das encomendas feitas ao pequeno
grupo de compositores decorrem de associações entre várias instituições de
vários países, o que, por um lado, mostra tanto um modo de reagir às
dificuldades financeiras das produções e, por outro, revela que é ainda antes
das obras existirem que o destino da sua circulação, mesmo que restrita, está
determinada pelos agentes culturais envolvidos. 2. Este retorno prático à fase prémoderna
coexiste com um imaginário formado nas narrativas tradicionais das histórias da
música. Entre o imaginário e o real, as narrativas dominantes na crítica e no
ensino e a realidade há uma diferença e uma disfunção. O imaginário que precede
a composição das obras não obtém confirmação real e resulta em reclamações e
lamentos. A expectativa de entrada para
o cânone, na grande maioria dos casos é frustrada, o o argumento de que com o
tempo a compreensão das obras avançadas virá - com exemplos do passado (os
últimos Quartetos de Beethoven à frente) para legitimar essa pretensão, deparam
com o desmentido do real 3. Estes vários aspectos diferenciados e
contraditórios verificam-se em todo o mundo ocidental. Actualmente os dois formatos
coexistem: por um lado há milhões de compositores no mundo; mas, ao mesmo tempo,
verifica-se no repertório histórico uma intensificção do arquivo e do seu alargamento para o passado.
5. Ao mesmo tempo, afectando os dois lados do
cisma, o peso global da indústria cultural anglo-americana, decorrente das
transformações tecnológicas verificadas durante o século XX, suportada por
grandes meios financeiros e atraente para investimentos das grandes empresas em
festivais, coloca as duas vertentes cismáticas da música erudita europeia sob
forte ameaça. É deste conjunto de factores que resulta o alarme, enviado em
especial dos EUA, sobre a sua progressiva
passagem para "margens ilustres da actividade cultural., como afirma
Lawrence Kramer.
6. As teorias apocalípticas da "morte da
arte", como a de Hegel, não devem ser interpretadas à letra, face à
evidência da continuação posterior da produção artística. Mas assinalam as grandes
transformações dos seus modos de produção, realização e circulação, em última
análise, as mudanças do seu regime de existência pública, do seu regime de partilha do sensível, para usar uma
expressão de Jacques Rancière.
O termo "hipótese de trabalho" usa-se
nos projectos de investigação com vista a confirmar ou desmentir as hipóteses
posteriormente. Neste caso o lapso temporal necessário torna inviável uma
conclusão. O futuro não está escrito, mas será sempre mais imaginativo, do que
a repetição do que já existe.
António Pinho Vargas, Junho de 2013
Compositor, Professor de composição na Escola
Superior de Música de Lisboa, Investigador do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra.
António, li o seu artigo mas por ser denso preciso relê-lo para fazer sentido para mim.
ResponderEliminarObrigado.
Sérgio