segunda-feira, 5 de maio de 2014

Retrato do artista moderno enquanto snob e a porta das trazeiras segundo Zygmunt Bauman.

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Retrato do artista moderno enquanto snob e a porta das trazeiras segundo Zygmunt Bauman.


É comum vermos o artista moderno tratado como herói. Alguns o foram de facto. Bauman apresenta-nos uma tremenda visão de outro tipo que não deve deixar ninguém indiferente.
Tudo o que é comum aos históricos dos anos 20: todos tem um espírito pioneiro, olham para o estado das artes com nojo e aversão, são críticos em relação ao papel assumido pelas artes na sociedade, todos desprezam o passado e ridicularizam os cânones recebidos, todos teorizam sobre os seus próprios caminhos e meios, introduzindo um sentido histórico profundo aos seus resultados artísticos; todos se apropriam do modelo do movimento revolucionário, preferem actuar colectivamente, criaram e aderiram a movimentos de carácter sectário, discutiram acaloradamente programas comuns e escreveram manifestos; todos olharam bem para lá do campo artístico especifico, vendo as artes e os artistas como as tropas avançadas do exército do progresso, uma antevisão colectiva do futuro que aí vinha e por vezes, uma força destinada a pulverizar os obstáculos que encravavam o caminho da hstória.
   Mais modernos que a modernidade, actuavam em seu nome e com a sua permissão: talvez ainda mais dogmáticamente, encaravam como único uso possível da tradição, saber aquilo que tem de ser quebrado, as fronteiras para serem transgredidas.
    Adquirem impulso, coragem e autoconfiança da ciência e da tecnologia: impressionistas da óptica antinewtoniana, os cubistas da teoria da relatividade anticartesiana, os surrealistas da psicanálise, os futuristas dos motores de combustão e das linhas de aço.
    Quiseram servir a modernidade, não foi sua culpa terem de se impôr, face à sociedade relutante ou indiferente. A culpa era das pessoas de gosto datado, na linguagem modernista, pessoas sem gosto, incapazes ou não querendo compreender os resultados as descobertas da vanguarda. Agruparam este grupo, atroz e lamentável na imagem do "burguês", chama-ram-lhe vulgar, inculto ou diletante. Sem opinião relevante.
     A estes imaturos, retardados, os modernistas quiseram mostrar a luz, ensinar, educar e converter; só poderiam manter a sua posição de vanguarda tratando os outros de ainda-não-realizados, imersos na escuridão, à espera da iluminação.
     Às vezes, zangam-se, ficam perplexos e embaraçados perante a evidente obstrusidade mental dos seus assumidos seguidores.(…) Como regra, os alunos nunca são tão bons como os professores, e, por isso, havia um constante fornecer de razões para estar furioso.
     Mas só ficavam verdadeiramente chocados e horrorizados naquelas (raras) ocasiões em que as lições pareciam demasiado fáceis e sem dificulda-de, as suas posições obtiveram aprovação geral, e as obras adquiriram popularidade. Neste caso a distinção entre a vanguarda e o resto, entre alunos e professores caía por terra. Se aplaudiam em lugar de resistir, se não se sentiam chocados e perplexos isso seria seguramente resultado de insuficien-te radicalismo, desleixo na vigilância, indesculpável compromisso, com o gosto que deviam combater.
      O paradoxo da vanguarda foi tomar o sucesso como sinal de fracasso, a derrota como confirmação de estar certo. A vanguarda sofreu quando o reconhecimento público foi negado mas atormentou-se ainda mais quando o sucesso finalmente chegou. Media a justiça das suas razões e o progressismo dos seus passos pela profundidade do seu isolamento, e pela resistência daqueles que era suposto converter. Quanto mais vilipendiados mais certo era a causa ser justa.
     Incomodados pelo horror de aprovação popular, a vanguarda avançou para formas artísticas cada vez mais difíceis e desejávelmente menos digerí-veis. 
      Aquilo que era suposto ser uma condição temporária - a vanguarda ia à frente, tinha uma ideia de que o resto das tropas estava na retaguarda, mas iria avançar mais tarde ou mais cedo, era esta a metáfora militar - transformou-se imperceptívelmente no objectivo definido, no fim em si e num esta-do de permanência. Não era preciso, nem sequer desejável que o resto das tropas avançasse.
    Ao contrário das declarações de intenções, parece que os mais avança-dos destacamentos dos intelectuais europeus tivesse levado a cabo um esforço concertado para excluir as massas da cultura; não havendo outro risco excepto manter a distância e assegurar a superioridade; sendo a significância da minoria artística calculada na proporção directa da sua capacidade para confundir e ultrajar as massas.
W. Benjamim escreveu que a modernidade nasceu sob o signo do suicídio. Neste paradoxo estava a semente da perdição. A ruína viria por dois lados.
Para começar, a aceleração não ajudou. Por mais que tentasse, a vanguarda não pôde separar-se claramente da populaça que temia e tentava instruir ao mesmo tempo. O mercado rapidamente cheirou o enorme potencial estratificador que transportavam "as artes incompreensíveis". Rapidamente ficou claro que, quem quisesse mostrar aos seus pares o seu progresso no mundo e tivesse meios para o assegurar (dinheiro!) podia adornar a sua casa com as últimas invenções da linha da frente, que espan-tavam e assustavam as pessoas normais, pouco refinadas. Mostrar simultâ-neamente o seu bom gosto e a sua distância do resto inculto e sem gosto.
Na opinião de Peter Burger foi o espantoso sucesso comercial que deu o golpe final na arte de vanguarda, incorporada no mercado artístico, "integrada" - dir-se-ia há uns anos - tendo chegado a significar distinção social, a arte de vanguarda encontrou clientes interessadíssimos, na classe média arrivista, insegura da sua posição e ansiosa por se apetrechar com símbolos prestigiantes.
Na sua principal capacidade estética, a arte de vanguarda podia, como dantes, afastar os espectadores/visitantes, chocar e deixar estupefacto. Na sua outra capacidade, extratificadora, atribuidora de prestígio, atraíu cada vez maior número de admiradores acríticos e, mais importante, compradores. O aplauso que a vanguarda simultâneamente desejava e temia entrou pela porta das trazeiras: como consequência da febril procura de portáveis e adquiriveis símbolos de posição superior.
Por outro lado, a tentativa de escapar da armadilha da aceitação popular tinha os seus limites. Mais tarde ou mais cedo chega-se à parede; seguindo Umberto Eco, o limite da vanguarda foi atingido na tela vazia ou carregada, nos desenhos apagados de Rauschenberg, na galeria de Nova York vazia na exposição privada de Yves Klein; na peça de piano de 4' 33'' de silêncio de John Cage, na exposição telepática de Robert Barry, nas páginas em branco de poemas não escritos.
O limite das artes vividas como revolução permanente foi a autodestruição. Chegou o momento onde não havia mais para onde ir. O fim chegou de fora e de dentro. Os mundanos recusaram ser mantidos à distância.

António Pinho Vargas, in Sobre Música, ensaios, textos e entrevistas, Afrontamento, 2002
p. 142-144            



Bauman, Zygmund, The PostModernity and its Discontents, p.96 e segs. Aqui resumo e traduzo o brilhante texto de Bauman.

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