Consideração auto-reflexiva I
Como muitos sabem tive duas vidas musicais. A primeira como músico de jazz-que-não-era-jazz - o seu grande carácter distintivo - durante uns 30 anos e a actual segunda fase na qual componho na tradição "clássica". Confesso que vivi e vivo as duas com idêntica intensidade e sem considerar a dicotomia "high and low culture" muito presente em alguns espíritos classistas.
No último (de todos) concerto importante que fiz a solo no Grande Auditório da Gulbenkian, no próprio dia da estreia do Requiem (21-11-12) no final, uma senhora que me acompanha desde os anos 80 foi lá baixo abraçar-me e dizer-me a frase maravilhosa: "Também chorei no Requiem". Aqui reside o maior mistério: música capaz de fazer chorar, por uma razão ou outra, nas quais não posso penetrar. Comove algumas pessoas - faço parte desse grupo - ponto final. Deste percurso muito invulgar quero retirar alguns reflexões.
É sabido que se diz que a música da tradição erudita se encontra em deslocamento "para as margens ilustres da actividade cultural" (L. Kramer).
No entanto há um aspecto que se deve sublinhar para além disso. Qual é a música que mostra boa saúde neste contexto? A "arte da interpretação viva" de repertório canónico, ou seja, de obras de compositores que já morreram há muito tempo. Nesta esfera os heróis, mais do que os compositores, são os "grandes artistas do mundo": os grandes pianistas, os grandes maestros, as grandes cantoras, violinistas, violoncelistas, etc. Do mesmo modo a música de hoje perde algum terreno desde meados dos anos 50 (embora por vezes pareça recuperar terreno nesse seu combate pela sobrevivência).
Um dos dois grandes falhanços - o segundo ficará para mais tarde - do meu livro Música e Poder, uma análise correcta no essencial, foi não ter tido em consideração suficiente este aspecto: não terei medido correctamente o carácter inamovível das práticas dominantes. Julgo sinceramente agora que o público das salas de concertos de todo o mundo quer apenas - sublinho - ouvir essa música e não outra. Daí o facto de ocuparem cerca de 90% dos programas. A música de hoje ocupa uma lugar menor, cheio de variantes com vária criatividade, de diversos espaços e alguns mitos construídos por uma espécie de voluntarismo bem intencionado. Mas o facto é indesmentível.
Qual é a principal diferença que o meu duplo percurso permite sublinhar?
O corpo.
Repito uma argumentação que já tenho defendido. Na realidade quando se vai comprar um bilhete para um concerto de "um grande músico do mundo" - Brendel em tempos, Pollini, Sokolov, Anne-Sophie Mutter, e muitos outros, incluindo maestros, cantores, etc - nem sequer há a preocupação de saber qual é o programa. O que interessa é ver e ouvir aquele músico. É o seu nome. É o seu corpo em acção no palco. O repertório torna-se nestes casos irrelevante.
Na minha primeira fase eu 'tinha corpo': subia ao palco, tinha um som, tinha um "grão da voz" particular e, além disso, tinha uma música associada a tudo isso. Para além de ser jazz-que-não era-jazz, então música muito minoritária mas menos do que a tradição erudita - nos anos 80 gravar discos era apenas uma possibilidade que se tinha aberto no meio da ampla dominação pop-rock - tal como acontece em muitas práticas musicais sem um corpo no palco a tocar não pode haver música.
Na tradição "clássica" não é assim, à partida: há obras, há partituras, há uma história secular. Se isto conta naturalmente - ainda - não deixa de ser verdade a crescente importância dos "grandes músicos" que referi. É neles que reside o "grande momento" de cada temporada. Mesmo para além desse grupo muito restrito há muitos outros de grande qualidade, fora do pequeno círculo, que de cada vez que sobem ao palco o fazem com todo o seu ser, com o seu corpo em acção e aí reside uma "presença", um "momento", em que um corpo realiza o som que atravessa as salas e produz o milagre da música.
Os compositores não têm corpo performativo (aparentemente). Podem compor obras até muito boas, mas estão ausentes da sua realização. Por isso, enquanto compositor a música é minha, sem dúvida, até se pode chorar - "também" com ela - mas durante a realização das peças, estou sentado na plateia, desapareço do horizonte, sou uma presença ausente.
Muitos amigos meus, daqueles de toda a vida, e muitos de várias esquerdas, só gostam de jazz ou de outras músicas mas nunca assistem em geral a concertos de "música clássica" e ainda menos de "contemporânea" - nome que devia desaparecer, tal como apareceu para se distinguir da "outra", da clássica, da antiga, da tradicional, etc. O tempo da sua necessidade bipartida (para a distinção interna e para a qualificação da diferença) já passou.
Para esses amigos, a sombra do seu passado secular ligado às elites, e um vislumbre da pequena persistência desse facto - visível no público mas não propriamente na composição das orquestras - e muitos anos vividos por muita gente com este tipo de convicções impede que se possa desenvolver uma "paixão musical", um laço, um amor por esta música. Sem esse esforço de aprendizagem nenhuma música se consegue tornar familiar e indispensável nas nossas vidas. Neste aspecto apesar de tudo (songs) mesmo a música da primeira fase implicou uma aprendizagem dupla e mútua: nossa a fazê-la, de todos os outros, a ouvi-la. Há sempre aprendizagem. Pode-se é escolher fechar algumas portas. É um direito que não irei contestar. O direito de cada um construir um mundo sonoro de afectos para si próprio.
APV
Como muitos sabem tive duas vidas musicais. A primeira como músico de jazz-que-não-era-jazz - o seu grande carácter distintivo - durante uns 30 anos e a actual segunda fase na qual componho na tradição "clássica". Confesso que vivi e vivo as duas com idêntica intensidade e sem considerar a dicotomia "high and low culture" muito presente em alguns espíritos classistas.
No último (de todos) concerto importante que fiz a solo no Grande Auditório da Gulbenkian, no próprio dia da estreia do Requiem (21-11-12) no final, uma senhora que me acompanha desde os anos 80 foi lá baixo abraçar-me e dizer-me a frase maravilhosa: "Também chorei no Requiem". Aqui reside o maior mistério: música capaz de fazer chorar, por uma razão ou outra, nas quais não posso penetrar. Comove algumas pessoas - faço parte desse grupo - ponto final. Deste percurso muito invulgar quero retirar alguns reflexões.
É sabido que se diz que a música da tradição erudita se encontra em deslocamento "para as margens ilustres da actividade cultural" (L. Kramer).
No entanto há um aspecto que se deve sublinhar para além disso. Qual é a música que mostra boa saúde neste contexto? A "arte da interpretação viva" de repertório canónico, ou seja, de obras de compositores que já morreram há muito tempo. Nesta esfera os heróis, mais do que os compositores, são os "grandes artistas do mundo": os grandes pianistas, os grandes maestros, as grandes cantoras, violinistas, violoncelistas, etc. Do mesmo modo a música de hoje perde algum terreno desde meados dos anos 50 (embora por vezes pareça recuperar terreno nesse seu combate pela sobrevivência).
Um dos dois grandes falhanços - o segundo ficará para mais tarde - do meu livro Música e Poder, uma análise correcta no essencial, foi não ter tido em consideração suficiente este aspecto: não terei medido correctamente o carácter inamovível das práticas dominantes. Julgo sinceramente agora que o público das salas de concertos de todo o mundo quer apenas - sublinho - ouvir essa música e não outra. Daí o facto de ocuparem cerca de 90% dos programas. A música de hoje ocupa uma lugar menor, cheio de variantes com vária criatividade, de diversos espaços e alguns mitos construídos por uma espécie de voluntarismo bem intencionado. Mas o facto é indesmentível.
Qual é a principal diferença que o meu duplo percurso permite sublinhar?
O corpo.
Repito uma argumentação que já tenho defendido. Na realidade quando se vai comprar um bilhete para um concerto de "um grande músico do mundo" - Brendel em tempos, Pollini, Sokolov, Anne-Sophie Mutter, e muitos outros, incluindo maestros, cantores, etc - nem sequer há a preocupação de saber qual é o programa. O que interessa é ver e ouvir aquele músico. É o seu nome. É o seu corpo em acção no palco. O repertório torna-se nestes casos irrelevante.
Na minha primeira fase eu 'tinha corpo': subia ao palco, tinha um som, tinha um "grão da voz" particular e, além disso, tinha uma música associada a tudo isso. Para além de ser jazz-que-não era-jazz, então música muito minoritária mas menos do que a tradição erudita - nos anos 80 gravar discos era apenas uma possibilidade que se tinha aberto no meio da ampla dominação pop-rock - tal como acontece em muitas práticas musicais sem um corpo no palco a tocar não pode haver música.
Na tradição "clássica" não é assim, à partida: há obras, há partituras, há uma história secular. Se isto conta naturalmente - ainda - não deixa de ser verdade a crescente importância dos "grandes músicos" que referi. É neles que reside o "grande momento" de cada temporada. Mesmo para além desse grupo muito restrito há muitos outros de grande qualidade, fora do pequeno círculo, que de cada vez que sobem ao palco o fazem com todo o seu ser, com o seu corpo em acção e aí reside uma "presença", um "momento", em que um corpo realiza o som que atravessa as salas e produz o milagre da música.
Os compositores não têm corpo performativo (aparentemente). Podem compor obras até muito boas, mas estão ausentes da sua realização. Por isso, enquanto compositor a música é minha, sem dúvida, até se pode chorar - "também" com ela - mas durante a realização das peças, estou sentado na plateia, desapareço do horizonte, sou uma presença ausente.
Muitos amigos meus, daqueles de toda a vida, e muitos de várias esquerdas, só gostam de jazz ou de outras músicas mas nunca assistem em geral a concertos de "música clássica" e ainda menos de "contemporânea" - nome que devia desaparecer, tal como apareceu para se distinguir da "outra", da clássica, da antiga, da tradicional, etc. O tempo da sua necessidade bipartida (para a distinção interna e para a qualificação da diferença) já passou.
Para esses amigos, a sombra do seu passado secular ligado às elites, e um vislumbre da pequena persistência desse facto - visível no público mas não propriamente na composição das orquestras - e muitos anos vividos por muita gente com este tipo de convicções impede que se possa desenvolver uma "paixão musical", um laço, um amor por esta música. Sem esse esforço de aprendizagem nenhuma música se consegue tornar familiar e indispensável nas nossas vidas. Neste aspecto apesar de tudo (songs) mesmo a música da primeira fase implicou uma aprendizagem dupla e mútua: nossa a fazê-la, de todos os outros, a ouvi-la. Há sempre aprendizagem. Pode-se é escolher fechar algumas portas. É um direito que não irei contestar. O direito de cada um construir um mundo sonoro de afectos para si próprio.
APV
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