sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

"Eu não penso. Só toco o que está escrito": análise de uma frase

"Eu não penso. Só toco o que está escrito".

Esta frase pertence à categoria das frases que nunca deveriam ser ditas. No entanto, sendo dita por vezes, é necessário produzir uma interpretação do que quer dizer. Melhor dito duas interpretações. A primeira coloca-a na categoria das que deviam ser colocadas nas paredes em todas as salas de aula de música sob o lema "frases que nunca poderão ser ditas". A frase é auto-explicativa no que respeita à presença da escrita. Refere-se inevitavelmente à tradição da música escrita, aos músicos da chamada música clássica. Sendo música de hoje, a chamada "contemporânea", é na mesma tradição que se insere e é justamente neste quadro que poderá surgir com mais frequência. Mas lá chegaremos. Aquilo que fica de fora irremediavelmente é toda a vasta gama de práticas musicais que não têm na escrita o seu único modo de sobrevivência ou de suporte. Assim um músico de jazz, de rock, de música popular, nunca a poderia dizer porque isso significaria que não poderia tocar pura e simplesmente. Sendo "o que está escrito" apenas uma parte do que é importante nessas e noutras práticas musicais, "pensar" entra, sem qualquer hipótese contrária, como condição necessária à partida.
Nestes casos quem não pensar não toca.


Por exemplo no jazz tradicional, o que está escrito nas partituras do Real Book, é a linha melódica e a cifra do acorde, por hipótese, F minor ou F -. As sucessões de cifras implicam pela sua própria natureza um pensamento harmónico, a capacidade de interpretar a cifra como um equivalente a um determinado acorde ou, em sucessão, a um determinado ciclo de acordes.
Sem pensar sobre eles, nem sobre a multiplicidade de notas que o podem concretizar diferentemente, dependendo do contexto e do estilo, não se pode tocar, nem improvisar de acordo com a prática do estilo em questão, apesar da sua abertura a diferenças abordagens. O que depende naturalmente de diferentes formas de pensar a(s) música(s). Na realidade, a cifra, que existe igualmente no baixo contínuo do barroco, o baixo cifrado, é um signo que indica uma posição do acorde, implicitamente uma função e propõe uma série de realizações possíveis. 


Ora signos são sempre os elementos que constituem a notação musical desde os dotados de alguma ambiguidade por volta do ano 1000, até à notação extrema das partituras de Brian Ferneyhough e dos seus seguidores, para dar o exemplo mais radical. Historicamente a quantidade e variedade de signos foi variando mas sempre aumentando ao longo dos séculos. Se em partituras do período barroco essa notação é precisa do ponto de vista das notas escritas, os sinais de dinâmica, p ou f, começam apenas a aparecer. Mesmo entre a música de Mozart e Beethoven há já consideráveis diferenças. Em qualquer caso, ler música é uma aprendizagem longa, difícil, das notas, dos intervalos, das diferentes métricas, dos diferentes ritmos, do significado das figuras nas diferentes claves e das tradições orais que lhes estavam associadas em cada fase histórica. Ou seja, por maior que seja a quantidade de signos escritos na partitura entre ela - o papel onde está escrita a notação musical - e a música - que lá está em estado potencial - há sempre um universo que a separa da realização na qual o pensamento nunca poderá ser não considerado. Uma partitura não é ainda música, é a sua condição de possibilidade nesta tradição musical, mas precisa de ser realizada pelos músicos capazes de decifrar os signos, capazes de compreender as frases, de refletir sobre a forma realizar este crescendo ou este ritardando, etc., em suma, de conduzir um discurso. Em tudo isso o pensamento é fulcral. Pensamento histórico, capaz de compreender as diferenças de cada tipo de notação - um exemplo um acento em Chopin não é igual a um acento em Ligeti apesar de na partitura ser aparentemente igual - e também capaz de ir além do que está escrito subindo ao patamar seguinte que é produzir uma interpretação musical rica, dando sentido sonoro, musical, discursivo, a tudo aquilo que é necessário fazer no acto de tocar. Esta é a primeira leitura da frase em questão e só poderá ser seguramente negativa e crítica em face dela. Porque mesmo na tradição clássica, seria impensável ouvir Alfred Brendel, M. Pollini, G. Gould, M.J. Pires, Anne-Sophie Mutter, N. Harnancourt ou John Elliot Gardiner e muitos outros grandes músicos, que se contam por milhões no mundo, dizerem uma tal frase.
Mas é necessário ir mais longe fazendo um esforço de compreensão da sua razão de ser. Estando errada na sua acepção literal, pode ser dita, por exemplo, por um músico talvez pouco dotado e sobretudo à defesa a um jovem compositor e, sendo verdadeiramente antipática de se ouvir, pode ser, com boa vontade, interpretada e trazida para questionamento, a questão daquilo que se pode pedir ou esperar, dos músicos da tradição clássica e, em segundo lugar, colocar em questão a forma como se escreve música para ser tocada por músicos treinados nesta tradição musical. Nas obras da fase da "obra aberta", Boulez, Stockhausen, Berio e os americanos Cage e Feldman já anteriormente, usaram uma escrita lacunar - um grupo de notas no interior de um quadrado, sendo a sua ordem e escolha aleatória - ou que apresentava diversas opções de percursos a seguir, de dinâmicas a aplicar, etc. Este período tem hoje seguidores em músicas improvisadas de diversos matizes, é um facto, mas Boulez foi abandonando estes procedimentos ao mesmo tempo que crescia e aumentava de importância a sua carreira de maestro. Na verdade disse algures que os músicos da tradição clássica não foram treinados para improvisar e, nesse sentido, reservava para si próprio, enquanto chefe da orquestra, as decisões e os sinais que desencadeavam este ou aquele evento ou conjunto de eventos musicais em algumas das suas obras. Aos músicos competia fazerem de acordo com a partitura (mesmo tendo várias opções) o que estava escrito. O simples facto de estarem envolvidos num processo de execução/criação - tal como em muitas práticas de música improvisada, na qual a interacção entre impulso e resposta é fulcral - colocava os músicos numa situação específica bastante diferente de fazer parte de uma orquestra que executa uma sinfonia de Mahler ou Shostakovich e muita outra música sem este grau de abertura. Mas integrar um tal elenco, participar nos ensaios dirigidos por um maestro que apresenta e dirige a sua concepção da obra implica muito mais do que as competências técnicas que são indispensáveis. Implicam igualmente uma atitude de dádiva artística à obra, de compreensão do seu período histórico - por isso é que se toca de uma certa maneira e mudando o maestro pode muito bem mudar a concepção da obra e mesmo a maneira de tocar no que respeita à articulação, ao fraseio, etc., - e ainda um sentimento de pertença a uma comunidade que se conta por cerca de 100 músicos. Nestes vários casos dizer que não se pensa não faz nenhum sentido. Muito ligada a esta atitude - felizmente pouco habitual - está a sacralização da partitura - no fundo a incompreensão do que lá está, vista como inequívoca e sem nuances possíveis - sem qualquer consciência de que nem sempre foi assim que aquela música foi feita, que foram mudando ao longo dos últimos duzentos anos as visões das várias obras do cânone, seguramente, e que se destina muito provavelmente a novas leituras no futuro. Finalmente há uma razão que pode explicar, mas não justificar, este tipo de frase: o excesso de produtividade que atingiu as instituições culturais ligadas à música, o aumento do número de concertos acompanhado da diminuição do número de ensaios. Esta situação, que pode produzir cansaço extremo e talvez desinteresse, é a manifestação da necessidade produtivista a qualquer preço decorrente da ideologia neoliberal, que, por uma lado, cortou salários e, por outro, pediu mais concertos.
No entanto não pensar nem sequer é uma opção: os humanos não podem não pensar, nem que queiram. Podem é pensar mal.
APV

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