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COMPOSITORES
GRANDE ENTREVISTA (PARTE I) ANTÓNIO PINHO VARGAS
A sua obra Magnificat (2013) para Coro e Orquestra recebeu o Prémio Autores SPA 2014 na categoria de música erudita. Na temporada em que é Artista Associado à Metropolitana, foi lançado o CD Naxos com as suas obras Requiem (2012) e Judas (2002), interpretadas pelo Coro e Orquestra Gulbenkian, sob direcção de Joana Carneiro e Fernando Eldoro. António Pinho Vargas é mais do que um compositor, sociólogo ou professor. É o mestre de todos nós.
Da Capo (DC) - A sua peça Magnificat (2013) para Coro e Orquestra, recebeu o Prémio Autores SPA 2014 na categoria música erudita. Que significado tem para si este Prémio?
António Pinho Vargas (APV) - Qualquer prémio deve-se agradecer, em primeiro lugar. Foi uma satisfação. Eu disse na cerimónia, que teve lugar nos Paços do Concelho da Câmara Municipal de Lisboa, que agradecia, que ficava muito contente, mas também disse que ficaria contente se o prémio contribuísse para que eu ouvisse uma vez mais a peça antes de morrer. Não foi uma coisa muito simpática de se dizer naquela circunstância. Mas muitas outras pessoas que receberam prémios naquele dia disseram coisas pouco otimistas, críticas do actual estado das coisas. Considerei importante dizer na presença de muita gente de outras áreas artísticas que, a situação da minha obra, que é a de todo um campo, era aquela.
Neste caso, sei particularmente do que estou a falar, tal como sei que não tenho muitas razões de queixa, comparado com outros colegas.
Mas nós todos sabemos muito bem que a regra é que as peças sejam tocadas uma ou duas vezes e, quando já é a segunda, é com alguma sorte. No caso do Magnificat foi tocado as duas vezes associadas à estreia.
Nós sabemos que um dos problemas principais que afeta a música portuguesa é a reposição de peças. Claro que é mais fácil tocar várias vezes peças se forem, por exemplo, música de câmara, para solistas, orquestras de cordas, do que se forem peças de grandes dimensões que, de uma certa maneira felizmente, é o que eu tenho feito mais ultimamente mas por isso pago esse preço correspondente. Posso dizer-lhe que o mesmo se aplica ao Requiem e é válido igualmente para o Judas, o Magnificat e as quatro óperas, mas o Requiem tem o maior efetivo instrumental, repor esta peça noutra sala em Portugal é muito difícil porque não temos salas com capacidade para abarcar tantas pessoas em palco. Mesmo na FC Gulbenkian não será provável a reposição por outro tipo de razões.
Quanto à forma como trabalho posso dizer que nos últimos quinze ou vinte anos componho cada vez mais livremente. Procuro uma ideia inicial, tudo decorre desse gesto primeiro, que abre um horizonte e o que se segue não tem interditos a não ser aqueles que eu próprio defino para cada obra. Todas as questões de estilo, de linguagem musical obrigatória ou de "necessidade histórica" do material me são completamente estranhas. Conheço bem a origem histórica dos interditos, fizeram sentido no passado, mas não creio que façam hoje. Conheço os conceitos, sei o quer dizer modernismo, pós-modernismo, etc., mas, em nenhum momento, nos últimos anos, esses conceitos me aparecem ou me perturbam durante a composição. Estou a criar um discurso, uma narrativa musical e tenho à disposição objetos de todo o tipo. O mais importante é ser fiel à ideia daquela obra particular. Todas as obras são singularidades.
Regressando ao social, digamos, a situação dentro do país tem aquele problema - a não reposição - e, fora do país, há a questão de fundo que, enfim, não está exatamente no mesmo patamar de quando eu terminei a minha tese em 2009. Há pequenos sinais de melhorias em circuitos secundários, o que é positivo, mas há um problema nas grandes salas. Portugal é uma periferia, não está inscrita nas histórias da música canónicas que existem e, infelizmente, isso não se trata de uma invenção da minha parte. Se lermos os 5 volumes da História da Música do Taruskin, encontra-se lá o nome de um português, D. João V e isto é um facto verificável. Também na história do velho Grout, que foi o livro pelo qual estudei, a edição de 1983, o mesmo se verifica: D. João V por ter contratado Scarlatti e apenas por isso é que lá está.
“[Judas] um drama trágico à maneira da antiga tragédia grega”
DC - Uma das indicações que temos, é que com o Requiem não lhe permitiram usar solistas…
APV - A encomenda era para Coro e Orquestra. Tal como no Judas. Ao longo de várias épocas muitas obras usaram solistas, mas eu nem sequer encarei essa hipótese devido à experiência anterior com o Judas (secundum Lucam, Johannem, Matthaeum et Marcum). Não é crucial nem indispensável.
No Judas os textos pertencem aos quatro evangelistas e foram selecionados por mim enquanto libreto, constituído a partir de várias passagens dos textos, um drama trágico à maneira da antiga tragédia grega. Nelas, de facto, os seres humanos são colocados em situações das quais os deuses gregos, com todos os defeitos e qualidades dos humanos, são os responsáveis pelos desafios que colocam aos humanos, na ignorância das decisões dos deuses. É nesse sentido que falo de um drama à maneira da tragédia grega, com duas personagens principais, Jesus de Nazaré (só depois de ser crucificado é que passou à identificação como Jesus Cristo) e Judas Iscariotes. Por esta razão poderia ter considerado dois cantores masculinos a fazer estes papéis. Mas a hipótese estava fora do orçamento.
DC – Como surgiu a ideia de compor Judas?
APV – Foi uma encomenda do Festival de Música Sacra de Viana do Castelo. Isso implicou, em 2002, que o Coro Gulbenkian, tivesse 30 e tal cantores na estreia em Viana do Castelo; quando foi reposto na FC Gulbenkian, em 2004, o Coro passou para o dobro dos cantores. Deslocar um coro e uma orquestra custa dinheiro. A organização do Festival estipulou um orçamento e chegou ao acordo com a FC Gulbenkian e por isso lá foi um coro mais pequeno. Mas foi inesquecível.
Encontrei uma solução dramática: as falas de Jesus de Nazaré e de Judas Iscariotes são sempre apenas vozes femininas. Essa decisão arbitrária marca as duas personagens devido à minha conceção da voz feminina como signo de fragilidade (a voz feminina é muito particular). Na continuação das falas respetivas deixa de ser necessário. A narração dos próprios evangelistas é feita pelo coro completo. Arranjei uma maneira de isolar aquelas intervenções, falas na 1ª pessoa do singular, com as vozes femininas.
Mas é comum noutros contextos. No Magnificat, existem partes só com as vozes femininas, partes só com vozes masculinas, e outras com o coro todo. Nesta obra não há nenhuma associação desse tipo. Faz parte dos dispositivos disponíveis do compositor.
“Prefiro quem corre riscos do que quem não corre riscos nenhuns”
DC - Como é que o professor vive com as limitações a nível de orçamento?
APV - Não é isso que me preocupa porque sendo compositor, sou obrigado a encontrar uma solução. Se fossem óperas, por exemplo, seria impossível. Sendo Coro encontrei outras soluções.
DC - Em 2012 recebeu o Prémio Universidade de Coimbra, pela sua contribuição para a música contemporânea portuguesa e o Prémio José Afonso pelo disco Solo II. Em que medida estes prémios foram importantes?
APV - O Prémio Universidade de Coimbra foi na 9ª edição. A seguir ao Prémio Pessoa será talvez o prémio mais prestigiado. Apenas mais dois artistas o receberam - os outros premiados foram cientistas, ilustres das ciências humanas, etc. Tive a maior honra em receber esse prémio. Uma das coisas que o reitor da Universidade de Coimbra sublinhou na entrevista em que o anunciou: “ele não é apenas muito bom compositor, não sou eu que o digo, outros o disseram, mas é um homem que além disso pensa a música e pensa a sua condição de compositor”.
Sou obrigado a concordar com esse lado. Já publiquei três livros escrevi bastantes artigos, dei muitas entrevistas, etc. Do ponto de vista simbólico, foi muito importante.
O Prémio José Afonso, tem outro âmbito, foi atribuído a um disco. Encheu-me igualmente de satisfação pela enorme admiração que tenho por José Afonso e pelo seu trajeto de vida, até pelas suas contradições como homem empenhado e, nesse sentido, sujeito a erros, aos erros que todos os que se empenham em determinadas ações políticas de caráter coletivo arriscam. Prefiro quem corre riscos do que quem não corre riscos nenhuns. Portanto, como tenho o José Afonso em grande consideração e admiração, há canções suas que eu conheci com 17, 18 anos e que me ficaram para sempre, foi também uma honra. Foi o penúltimo disco que gravei. Saiu posteriormente um gravado ao vivo em 2009, Improvisações - que passou despercebido - que terá sido o último que gravei a tocar.
“[a morte] É o nosso destino, quer queiramos quer não, o nosso limite da existência na vida e, por isso é que muitos compositores, mesmo outros não crentes como Ligeti, também escreveram Requiems”
DC - Foi lançado este ano o CD Naxos com as suas obras Judas e Requiem pelo Coro e Orquestra Gulbenkian… chegou a dizer que “Escrever um ‘Requiem’ é, acima de tudo, ‘responder’ à história de numerosas obras do passado”. Este disco é um resumo de tudo o que fez até agora?
APV - Devo dizer que não. O Requiem foi uma proposta minha à Fundação porque há 10 anos que eu não tinha nenhuma encomenda e, face a isso, pareceu-me pertinente escrever a carta com proposta de encomenda para coro e orquestra, na sequência do Judas que tinha sido inesquecível para mim e pelo que ouvi dizer e que me foi dito pessoalmente, para o Coro e Orquestra e em especial, para Fernando Eldoro que dirigiu a estreia e a gravação do CD que foi feita nos concertos de 2004.
Nessa expressão estava a referir-me, especialmente à enorme quantidade de Requiems que existem na história da música ocidental. Risto Nienimen disse-me, na reunião que concretizou o acordo, que considerava importante que os compositores de hoje mostrassem o que têm a dizer sobre temáticas que já serviram para muitos outros nos séculos anteriores. Isto é válido para Requiem, Magnificat mas não para o Judas, que eu saiba é o único que existe (risos). Das outra peças sacras há muitas de facto. Não é um resumo mas é um momento simbólico de cumprimento, de completude de uma vida.
DC – Mas o Requiem tem sempre uma inspiração religiosa…
APV - Os textos do Requiem podem-se reduzir a uma frase, de uma ideia central da tradição cristã: “Deus, recebe no teu seio aqueles que vão morrer ou que já morreram”. É uma missa dos mortos. Requiem traduz-se por descanso – “dai-lhes Senhor o eterno descanso”, é uma frase que qualquer pessoa que já foi à missa sabe que é repetida todos os domingos.
Não sendo crente, tive uma educação católica e li a Bíblia seriamente aos 15 anos porque estava em crise de fé. Estas temáticas, na verdade, encerram questões que dizem respeito a toda humanidade e sempre me interessaram desde cedo.
A questão da morte é uma questão existencial fulcral, e nós sabemos desde Heidegger que o homem é um ser-para-a-morte, no final haverá esse horizonte. E, portanto, todas as religiões do mundo que existem atribuem uma enorme importância à questão da morte. É o nosso destino, quer queiramos quer não, o nosso limite da existência na vida e, por isso é que muitos compositores, mesmo outros não crentes como Ligeti, também escreveram Requiems. O Requiem de Ligeti é pequeno com poucos textos, menos que Stravinsky e muito menos que Mozart. Cada compositor estabeleceu historicamente, a sua própria seleção dos textos.
“é possível fazer música de outra maneira com outros princípios, com outra atitude face a linguagem musical”
DC – Ligeti que é um exemplo para si…
APV - Tenho imensa admiração por Ligeti embora não particularmente por essa peça, que me parece uma peça de transição. Mas está presente noutras anteriores nas quais, por vezes, paira a sua sombra; a nossa própria formação e aprendizagem passa por encontrar pontos de referência, modelos. Julgo que um compositor não se consegue encontrar a si próprio sem passar por um trabalho relativamente profundo sobre um modelo, alguém que nos serve de guia, pelas posições que tomou, pela música que fez ou pela sua inquietude, mesmo que depois sigamos caminhos diferentes.
Por exemplo, com 60 anos, Ligeti, mudou de estilo radicalmente com os Estudos para piano. Fiz o curso com Ligeti na Hungria e pude ouvi-lo lá dizer “eu não poderia continuar a escrever música no meu estilo anterior, achei que já tinha feito o que tinha que fazer naqueles pressupostos e não queria continuar a fazer música exclusivamente baseada num total cromático como material de base de todas as peças”. Posteriormente usou outro tipo de referências, música das Caraíbas, modos simétricos (alguns classificados por Messiaen), escalas octatónicas que Rimsky-Korsakov usava e depois Stravinsky, polirritmias, etc. Ligeti manifestou uma enorme inquietude e capacidade para se pôr em causa numa idade que a maior parte das pessoas já não o faz e, por isso, eu tenho o maior apreço por essa capacidade de cortar consigo próprio.
DC – Como é que foi o seu percurso enquanto estudante de composição?
APV - Comecei a estudar em Portugal, como é normal, mas fui para a Holanda por razões particulares. Verificava-se então a hegemonia pós-serial, enfim, Schoenberg, Webern, Pierre Boulez, Stockhausen, transportada para nós via Jorge Peixinho, Álvaro Salazar, Emanuel Nunes onde se prolongou em Portugal quer no ensino, quer junto das instituições culturais.
Eu tinha dúvidas, custava-me a acreditar que não houvesse mais caminhos, que o futuro estivesse determinado para todo o sempre com aqueles princípios. Já em 1979 comprei um disco do minimalista americano Steve Reich e encontrei um choque de diferença: “é possível fazer música de outra maneira com outros princípios, com outra atitude face a linguagem musical”. Fui para a Holanda e não para a França e a Alemanha - os países centrais da outra corrente - justamente para fugir a ela. Sendo a Holanda um país periférico como Portugal, tem muitos compositores, mas poucos circulam; tive muitos colegas cuja música não circula e isto verifica-se, aliás, em todas as periferias da Europa. Se eu lhe perguntar o nome de compositores suecos, gregos, romenos ou espanhóis vivos, provavelmente não me sabe dizer. Veio a crise económica, que tornou clara coisas que já se verificavam anteriormente na cultura nitidamente. De repente, os centros e as periferias tornaram-se também evidentes no campo da economia e da política.
“não há nenhum século do passado que tenha sido igual ao anterior. Às vezes, basta meio século para que o funcionamento do mundo musical mude”
DC – Uma crise que também atingiu os EUA…
APV - Como li e estudei muito para fazer a minha tese, li muitos textos de autores como Richard Taruskin, considerado a figura mais eminente da musicologia anglo-americana, mas há muitos outros Suzan McClary, Lawrence Kramer e todos eles falam de um problema que nos EUA deve ser mais evidente do que na Europa, em relação à música clássica no seu todo. Falam de uma crise, das muitas revistas que existiam nos anos 50 e 60 e fecharam; de Orquestras, como a de Filadélfia, considerada como uma das big five nos EUA, que faliu e fechou. Lá, o espaço crítico nos jornais diminui fortemente e tudo o que diz respeito, nos EUA, quer à música contemporânea, que já estava isolada numa certa fase no ghetto universitário, quer à música clássica em geral.
Por isso é que os minimalistas tiveram que inventar locais para poderem trabalhar. Os primeiros locais onde Steve Reich, Philip Glass e Terry Riley fizeram concertos foram os Museus de Arte Moderna ou Galerias. Inventaram os locais fora da vida musical oficial e constituíram grupos que duraram mais de 20 anos, Steve Reich and Musicians, Philip Glass. O mundo encontra respostas para os seus próprios bloqueios.
DC – Talvez devido ao repertório que se fazia nas salas de concerto…
APV - Sem dúvida. Não tinham essa porta aberta. Eu gostava de dizer uma coisa: “não há nenhum século do passado que tenha sido igual ao anterior. Às vezes, basta meio século para que o funcionamento do mundo musical mude”. Estamos numa fase de transição, é uma evidência mas não sabemos o que irá acontecer.
Uma das coisas que a maior parte das pessoas não sabe - estou a falar do público que frequenta as temporadas da FC Gulbenkian e as temporadas das outras instituições e salas de concerto do mundo - é que o nosso modo de vida musical é muito recente do ponto de vista histórico, criou-se em paralelo com a formação do chamado cânone musical.
O cânone musical é aquele conjunto de peças que são repetidas ano após ano tanto nos teatros de ópera como nas salas de concerto. Começou a formar-se em meados do século XIX. Quando eu digo a algumas pessoas que a ideia de futuro ou de história era totalmente estranha a Bach e a todos os compositores do Barroco, as pessoas ficam a olhar para mim e perguntam-me: “você tem a certeza?” E, sou obrigado a recorrer ao exemplo que é mais conhecido porque é simbólico, da Paixão Segundo São Mateus, que foi estreada em 1730 e depois repetida uma década depois com algumas diferenças e não propriamente uma revisão - esse conceito é posterior - sendo a própria noção de autoria e de originalidade completamente estranha aos compositores nessa altura. Só a partir de Beethoven é que começa a mudar o paradigma que, de certo modo, vigora ainda hoje. Regressando ao exemplo, só em 1829, foi novamente executado, pela 3ª vez, por Mendelssohn. 80 anos após a morte de Bach.
Em 1800, será o ano que marca a nova atitude na qual o compositor é visto como artista para o futuro, a história e começa o processo de criação do tal cânone que percorre todo o século XIX e o século XX. Verifica-se, em 1900, o fenómeno relacionado com o aparecimento das várias correntes modernistas, por volta da década de 1910, 1920, e essa música nova vai perdendo terreno em relação à música histórica, ao mesmo tempo que a gravação surge e irá mudar quase tudo, aliás. A regressão dos vivos é a primeira vez que acontece, porque até então toda a música tocada era sempre contemporânea, no tempo do Bach e anterior a Bach só tocavam a música daquele tempo. No séc. XIX, por exemplo, ninguém conhecia Vivaldi e não era tocado, nem ouvido, nem sequer existia já o instrumento cravo, quanto muito circulavam talvez umas partituras junto de uns poucos especialistas e pouco mais. Era sempre a música do seu tempo.
“neste momento há uma geração de jovens músicos que já querem novamente fazer música de hoje”
DC – Houve uma grande mudança na história da música…
APV - O termo "construção histórica" usa-se não em sentido pejorativo mas no sentido de verificar que houve uma transformação social importante da qual resultou um cânone, um conjunto de peças nas quais as pessoas se revêm como importantes para a nossa cultura, e um novo modo de vida musical. Fazer a crítica do cânone, não pretende dizer que as peças não sejam boas, mas apenas sublinhar que foi resultado de uma processo histórico e social complexo. Uma das lacunas, julgo eu, da narrativa oficial contra a qual Taruskin escreve, dizendo que "a minha história é a primeira a ter em conta o resto, o contexto" porque até então escreviam-se histórias da música como se a música estivesse num limbo espiritual. Taruskin demonstra-o muito bem nos seus livros de 2003 que eu encontrei na Biblioteca de Durham onde comecei a fazer a tese de doutoramento e, na verdade, fui o primeiro a requisitá-lo.
Estas questões estiveram colocadas numa zona de indiscutível, aquilo que o Pierre Bourdieu, sociólogo, chama de taken for granted (tomado como adquirido). Nós e eu próprio fomos educados nessas ideias. Eu próprio, como estudante de piano com os meus colegas no conservatório, queria tocar Beethoven mas também Bartók, Debussy e outros tendo eu já interesse pelo modernismo. No exame do 4º ano, em 1975, toquei extra-programa a Kinderstück de Webern que não estava no programa, nem fazia parte. Mas queria tocar, nós queríamos saber que música era aquela, qual era a sua base técnica, qual era a filosofia, de que maneira se construía, qual era a sua lógica e, assim, eu tornei-me, relativamente cedo, com vinte e poucos anos, um leitor compulsivo. Tentar entender o mundo! Porque é que isto é assim e não de outra maneira? A partir de uma certa altura, comecei a compor, a frequentar os seminários do Emanuel Nunes na FC Gulbenkian, ter cursos no Porto com o Jorge Peixinho, o Álvaro Salazar que foi lá dar aulas de análise, disciplina que não existia no programa oficial. Mas compunha pouco.
DC – O ensino deveria ser o mediador entre o aluno e o resto do mundo…
AVP – Sem dúvida. Mas o ensino é um dos fatores que os estudiosos referem como fator de perpetuação do que acabei de dizer, porque na verdade alguns professores argumentam que será aquele repertório que os alunos vão ter que tocar na sua vida profissional, o tal cânone histórico. É verdade mas é assim que se reproduz essa hegemonia.
No século XX foi assim, a partir de 1950, em especial. Mas neste momento há uma geração de jovens músicos que já querem novamente fazer música de hoje. Provavelmente interessam-se mais pela música de hoje do que pela música dos anos 50. Criou-se um conjunto de músicos especializados naquele tipo de música de vanguarda dos anos 50 e 60, mas não eram propriamente os mesmos que tocavam as sonatas de Beethoven ou peças de Liszt, tornaram-se especialistas do conjunto de repertório da Escola de Darmstad e seus derivados.
Hoje em dia, sente-se uma maior abertura e curiosidade por parte de jovens músicos. Alguns colegas meus, como Sérgio Azevedo, que escreve imensa música de câmara que alunos lhe pedem e tem já um conjunto de obras enorme. Nós às vezes brincamos um com o outro, porque somos amigos e colegas da mesma escola; eu digo-lhe, “já escreveste para aí 600 peças” e ele diz “a maior parte delas demoram 4/5 minutos, enquanto tu fazes óperas de 1 hora, oratórias de 30 minutos, etc”.
“O ser humano é um ser pouco dotado de imaginação e portanto, pensa que o mundo que existe é o mundo que sempre existiu e que sempre vai existir”
DC – E cada vez mais se verifica um interesse pela música deste século…
APV – Sim. O que é curioso é verificar que os instrumentistas, hoje em dia, escolhem o repertório consoante os seus gostos e curiosidades. Os percussionistas, naturalmente, manifestam enorme curiosidade em relação à música do séc. XX e à atual; as madeiras e os metais tem igualmente curiosidade por estes séculos; os instrumentistas cordas são, de facto, os mais ligados ao repertório canónico assim como os pianistas, apesar de haver algumas divergências: pianistas que se interessam mais pelo cânone e outros mais direcionados para este século. Enfim, é normal.
Eu penso de uma certa maneira e coloco certos problemas, mas na verdade, ao fazê-lo não estou a fazer nenhuma condenação das peças do cânone. Adoro Schumann, Beethoven e muita da música do período que justamente serviu de base para a constituição do cânone. Essa música é muito boa. Critica-se uma prática social, um processo, e não as obras, que, aliás, não têm culpa nenhuma das práticas que se formaram 100 ou 200 anos depois.
DC – Porém, as pessoas ainda não estão consciencializadas da mudança…
APV – A narrativa histórica tradicional, que era uma semi-falsificação, está muito disseminada. Trata-se de, mantendo o apreço por aquela música, colocar as coisas no seu lugar e, portanto, dizer que a Paixão segundo São Mateus foi tocada pela terceira vez oitenta anos depois de Bach ter morrido é um facto. E muita gente, com coisas que eu escrevi no facebook, vêm-me dizer “estava longe de imaginar tal coisa”. É necessário prosseguir o trabalho de Taruskin e outros.
O ser humano é um ser pouco dotado de imaginação e portanto, pensa que o mundo que existe é o mundo que sempre existiu e que sempre vai existir. As duas coisas estão erradas, nem sempre o passado foi igual, nem o futuro está escrito em lado nenhum. Não se pode fazer futurologia porque o futuro vai ser resultado da ação dos humanos, tanto na política, como na economia e não se pode prever com certezas, apesar de haver economistas com uma visão do futuro cheias de certezas. A própria teoria marxista, uma teoria segundo a qual o capitalismo se ia aniquilar a si próprio e depois ia dar ao socialismo e depois ao comunismo, era uma convicção ideológica que Marx erradamente classificava de científica. Há ciência, certamente, mas a própria ciência neste momento está em enorme debate interno. Acima de tudo porque, quando a ciência faz descobertas que podem pôr em causa a própria sobrevivência do planeta, estamos perante um problema grave.
Continuação
António Pinho Vargas por jornal Público (2011)
António Pinho Vargas
http://www.antoniopinhovargas.com/http://www.antoniopinhovargas.com/
Step by Step - Drumming plays António Pinho Vargas
Graffiti [just Forms], Six Portraits of Pain, Acting Out Outro Fim, ópera
Improvisações (gravado ao vivo no Concerto de Improvisação Livre no Instituto Superior Técnico em 2009)
SOLO e SOLO II
Livros
Música e Poder - Para uma Sociologia da Ausência da Música Portuguesa no Contexto Europeu
Cinco Conferências: Especulações críticas sobre a História da Música do Século XX
Sobre Música: ensaios, textos e entrevistas
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