GRANDE ENTREVISTA (PARTE II) ANTÓNIO PINHO VARGAS
“Em todo o mundo a maior parte dos compositores vive da composição e do ensino; por vezes, tem outras profissões associadas”
DC – Sendo uma figura pública e que é tida em grande consideração, toma algum cuidado com as posições que toma?
APV – Nem sempre. Procuro ter algum cuidado mas julgo que algumas vezes fui mal interpretado, por exemplo, quando critiquei a hegemonia pós-serial. Também neste caso, ao criticar a hegemonia pós-serial no ensino dos anos 50 em diante, em Portugal, repito, não estava a criticar as peças daqueles compositores, do Emanuel Nunes, do Jorge Peixinho, da Clotilde Rosa, da Constança Capdeville - muitas delas igualmente boas - estava apenas a dizer que detinham na altura uma supremacia simbólica que tornava a vida impossível a quem quisesse fazer diferente, o que é uma outra coisa, totalmente diferente. Principalmente, a hegemonia no sistema de ensino como uma espécie de imposição de um estilo de uma estética. Estas querelas na verdade não me interessam hoje. A realidade seguiu o seu caminho.
No caso da primazia do cânone clássico, certamente que não vai acabar em 10 anos e, nesse sentido, já estará para além do horizonte da minha vida. Como é que o século XXI se definirá em relação a este problema? Não sabemos. É a própria vida, tal como ela decorrer, que vai encontrar uma resposta em relação a esse problema.
DC – Mesmo tendo uma carreira sólida como compositor, é possível viver-se só da composição em Portugal?
APV – Não. Em todo o mundo a maior parte dos compositores vivem da composição e do ensino; por vezes, tem outras profissões associadas. Dou-lhe dois exemplos: o Pierre Boulez é compositor e era diretor do IRCAM, dirigiu imensos projetos, neste momento tem 85 anos e não está propriamente no ativo mas tornou-se um célebre maestro do mundo. Ligeti, sendo um dos compositores mais apreciados da geração já pós-50 e, como exemplo, os seus Estudos para piano já tem mais gravações do que as que existem das sonatas de Boulez umas 3 ou 4 versões. O número de pianistas que tocam aqueles estudos identificam-se com eles, querendo tocá-los apesar da sua dificuldade. Mas Ligeti foi professor em Hamburgo até a idade da reforma e era um dos maiores compositores do mundo.
“os portugueses não podem aspirar a ter esse sonho de viver só da música”
DC – Então, por norma, o compositor também é professor?
APV – O Brian Ferneyhough, compositor inglês e professor da Universidade da Califórnia dizem que é o compositor mais bem pago do mundo enquanto professor. Ele tem uma música muito radical e difícil que praticamente é só tocada pelo Arditti Quartet, apenas por especialistas daquele tipo de notação radical. A sua corrente é designada nos países anglo-saxónicos por New Complexity e as partituras são conhecidas por Black Scores. Ele quase que só compõe de fusas para cima, a semicolcheia é uma nota lenta. Mas se reparar nos tempos lentos das sonatas de Mozart existem semicolcheias e nos andamentos rápidos usa semínimas. O tempo não está diretamente ligado à figura em questão.
Mas regressando ao assunto, Ferneyhough não é o compositor mais bem pago do mundo porque a música dele será até pouco tocada, mas é o professor mais bem pago o que é outra coisa.
DC – Pois, mas os portugueses nem isso podem sonhar…
APV – Não, os portugueses não podem aspirar a ter esse sonho de viver só da música. Creio que nunca tiveram. Mas não me faz confusão. Gosto imenso de dar aulas e já gosto há muito tempo. Sou licenciado em História e depois fiz o doutoramento em Sociologia da Cultura. Sou um leitor compulsivo e nesse sentido dar aulas vai até para além de dar aulas de composição.
Nunca dei aulas de jazz, nos anos 80 não o quis fazer. Naquela altura estava já a sair daquele "mundo da arte".
Mas aulas de composição quis dar e, principalmente quando vim da Holanda, achei que trazia uma boa notícia - um tópico recorrente da nossa história repleta de estrangeirados - por isso, regressei ao Porto, mas fui convidado, não pela ESMAE, mas pela ESML onde comecei como docente em 1991. Mudei para Lisboa poucos anos depois. Também fui programador em instituições até 2000. Fui programador dois anos no CCB e já era em Serralves, justamente não apenas por ser bom músico ou bom compositor - tudo discutível - mas por ter ideias sobre o que pode ser uma programação. Devo dizer que por volta de 2000 estava claro que não iria continuar nessas tarefas. Em 2004 ainda tive uma curta passagem pelo CCB de alguns meses, algo contrariado e depois em 2008 fiz parte, como programador, de um evento no CCB “Música portuguesa hoje” dividido entre mim que fiz a música chamada “de tradição erudita” e outros dois programadores que fizeram músicas improvisadas dos mais diversos matizes desde jazz até improvisações radicais com laptops. E outras práticas musicais.
Foi um evento importante, não houve nem antes nem depois outro semelhante, mas no ano seguinte disse ao Mega Ferreira que não queria continuar e não voltei a exercer esse tipo de funções. Eu sou um agente artístico, um compositor e, ao mesmo tempo, estava a desempenhar essas funções de programador pois eu pensava, naquela altura, que era importante mostrar aquela música aos portugueses e ao mesmo tempo encomendar obras aos meus colegas que viram muitas das suas obras estreadas enquanto eu trabalhei nesses sítios. Hoje não penso o mesmo.
“As elites culturais portuguesas não são propriamente cultas porque ser culto implica saber o lugar que se ocupa no mundo e saber que há muitos outros”
DC – Porquê que decidiu fazer um doutoramento?
APV – Em 2005 verificou-se uma conjuntura na minha vida: algum cansaço das aulas, e vontade de fazer aquele doutoramento não apenas porque era necessário, dizia-se, mas porque queria estudar aquela temática e queria aprofunda-la. Tive a sorte de o fazer numa primeira fase com Max Paddison, especialista na estética da música de Adorno e sobretudo com Boaventura de Sousa Santos cujos conceitos foram cruciais para a minha temática, a música portuguesa e a sua ausência. A ausência é de tal ordem que só viajando, estando nos lugares e nos meios se fica com um vislumbre da sua dimensão. É preciso viajar, estar ligado a uma instituição, falar com muita gente e aí é que se percebe até que ponto a ausência é tão ampla. Também Eduardo Lourenço passou toda a sua vida a escrever sobre este problema, Portugal e a Europa. Há um livro dele exemplar com o título “Nós e a Europa” um signo claro do que temos interiorizado, como se não fizéssemos parte da Europa. Lembro-me do momento que Portugal entrou para a União Europeia, todos os agentes políticos e culturais a dizerem “Agora estamos na Europa...”, e eu pergunto-me “mas onde é que nós estaríamos até então? Em África?”. Uma das frases que se ouvia em séculos anteriores era “a África começa nos Pirenéus ”. Uma coisa terrífica para nós. A nossa história foi marcada por uma cisão com os países do Norte, os da modernidade. A partir do momento que se começou a olhar para Paris pois lá é que estava a modernidade, nós começamos a ser vistos como uns desgraçados. Julgo que é preciso combater isto. É uma forma de provincianismo.
As elites culturais portuguesas não são propriamente cultas porque ser culto implica saber o lugar que se ocupa no mundo e saber que há muitos outros. Há países mais avançados por umas razões e outros menos avançados por outras razões. Os saberes e as ignorâncias cruzam-se de modos diferentes em cada cultura. Não posso dizer de ânimo leve que naturalmente o compositor francês é melhor do que eu, porque sou português. Não faz sentido mas manifesta-se. É um complexo de inferioridade interiorizado, que corta transversalmente a sociedade. Apesar de ter a noção que não se vai mudar o mundo de um dia para outro temos que deixar de olhar para o Outro como se ele fosse sempre melhor ou pior que nós por razões de carácter identitário, essencialista. Infelizmente, um livro não muda o mundo.
Há outras periferias em idêntica situação. O Boaventura diz que não há apenas uma Europa, que a "Europa", tal como é referida amiúde, é uma entidade mítica, ela própria uma construção artificial. E nesta crise económica nós pudemos verificar que há várias europas, com clareza.
“às vezes digo aos meus alunos: “o que é que faz um compositor? O compositor pensa, trabalha e depois coloca no mundo uma coisa que não estava lá antes.”
DC – Há vários discos gravados com as suas obras…há alguma gravação que o tenha marcado mais?
APV – A existência do disco com o Requiem e o Judas é um ponto crucial. É evidente que a gravação de Arditti Quartet do meu primeiro quarteto de cordas (Monodia) foi também importante mas nenhum outro disco é mais marcante para mim. Gosto muito daquelas obras, estou consciente de que a sua reposição será improvável e portanto que exista esta gravação é fundamental, completa um percurso de vida. Outras têm igualmente importância. Deixar uma espécie de legado.
Depois dos anos 1990 a criação de novas instituições culturais como a Culturgest, CCB, mais tarde, Serralves e a Casa da Música no Porto - para além da Gulbenkian que durante décadas foi a única importante em atividade - proporcionou que outros programadores com outras visões do mundo se abrissem ao mundo e à sua diversidade. Isso foi muito positivo. O panorama atual pensado em termos do leque de compositores em atividade é muito mais diversificado que há vinte ou trinta anos atrás.
DC – Há lugar para toda esta geração de músicos?
APV – Essa pergunta é dura. Sou professor e às vezes nas aulas interrogo-me: “o que é que vai acontecer a estes rapazes, aos seus sonhos legítimos, às suas qualidades? Será que vão ter espaço, ou não?” Tenho dúvidas. Nós estamos atravessar uma fase má, problemas financeiros nas instituições culturais e não sabemos até quando é que isto irá durar. Não sabemos sequer o que se vai passar na Europa, enquanto união, pois terá consequências para todos países que fazem parte dela. Vivemos com uma série de interrogações. Anteriormente, no período dos Encontros de Música Contemporânea da Gulbenkian, esse era o "momento" e não havia praticamente mais nada durante o resto do ano. Os próprios grupos que lá tocavam regulamente, o grupo do Peixinho, o grupo de Constança Capdeville, a Oficina Musical e outros faziam pouquíssimos concertos. Hoje há orquestras que organizam eventos variados, há concursos de composição em todo o lado, os próprios festivais de Verão começaram a organizar concursos para jovens compositores. Quando estive como programador no CCB, em 1998, propus fazer dois concertos de jovens compositores - acho que foi o primeiro caso - que esgotou nos dois dias e então, no ano seguinte, prosseguiu e reproduziu-se. Funcionou porque estava uma nova geração a aparecer, com trabalho para mostrar e coisas para dizer. Eu digo isto com frequência: “Não basta ser um bom pintor ou escritor é preciso ter uma coisa particular a dizer” e às vezes digo aos meus alunos: “o que é que faz um compositor? O compositor pensa, trabalha e depois coloca no mundo uma coisa que não estava lá antes.” A obra de arte resulta do trabalho humano e não é nada sacral. O facto de, por parte do público, haver uma espécie de sacralização da música do passado não nos deve enganar a esse respeito. Mesmo os sacralizados eram homens como nós e por isso por vezes dou exemplos reais; no caso da Sonata Waldstein de Beethoven, o segundo andamento original que lá estava não é o que lá está agora. Ele retirou o segundo andamento porque não ficou satisfeito, compôs outro que é uma maravilha, deslumbrante e o anterior segundo andamento foi usado mais tarde para escrever uma fantasia para piano e orquestra. Ao contrário de um ser semidivino, trata-se de um homem em ação a ser crítico em relação o seu próprio trabalho e a poder mudá-lo.
Mas viver da música esqueça. Nem o Mozart, nem o Haydn viviam. Eles eram empregados dos reis e hoje os nossos reis e os nossos príncipes são as instituições culturais e musicais que nos encomendam peças e o resto vem da instituição escola.
“nesta fase da minha vida, a qualidade que eu mais prezo nos meus colegas é o que eles são como pessoas mais do que propriamente a música que escrevem”
DC – Mas quando as pessoas não se conseguem realizar artisticamente?
APV – A pessoa, primeiro, tem que se realizar pessoalmente e só depois artisticamente. A sua realização artística não é suficiente, apesar da sua importância. Na verdade nesta fase da minha vida, a qualidade que eu mais prezo nos meus colegas é o que eles são como pessoas mais do que propriamente a música que escrevem. Eu vivo com pessoas. Não vivo com partituras.
DC – Qual é a sua relação com o público?
APV – Eu tenho o público em elevada consideração. É um conjunto de pessoas, reunido conjunturalmente, não sabemos quem são, mas é dotado de um saber, de uma perceção sábia. Os melómanos são apenas uma parte do público, uma espécie particular de amadores musicais, de habitués de concertos.
Dou um exemplo: no Teatro Nacional de São Carlos existe o melómano de ópera, acima de tudo. É uma categoria de ouvinte que respeito mas na qual não me revejo. Não vou ouvir música para ver se o tenor se vai safar ou se a soprano vai falhar. Os críticos exercem uma função e quando a exercem dessa forma "melómana", fazem mal. O João de Freitas Branco, aliás, deu uma entrevista na qual disse: “eu sou crítico mas procuro, na minha atividade, nunca me esquecer que é muito mais fácil para mim estar a escrever do que para qualquer um deles estar em cima do palco”. Todos deviam pegar nesta frase de João de Freitas Branco e por na parede do sítio onde trabalham. Tanto os críticos como os melómanos.
“Há pequenas coisas que parece que dão sentido a uma vida toda e, na verdade, o seu número é suficientemente grande para poder dizer que estou bem comigo próprio e com aquilo que a vida me deu”
DC – Sempre sente um impulso para compor?
APV – Normalmente sim mas tive fases más em que quis deixar de compor. Acabei a tese de doutoramento e fiquei num estado totalmente devastado; decidi deixar de compor e fiquei assim durante três meses. De repente, veio um impulso criativo e no mês de Janeiro compus quatro peças pequenas. Alterno estas fases boas com fases de pôr fim à composição. Eu fiz o meu trabalho. A minha vida é uma sucessão de "milagres" e de felicidades do ponto de vista artístico. Um dos momentos de felicidade foi o dia do Requiem, um dia que jamais esquecerei porque não só esgotou no primeiro e praticamente esgotou no segundo como a reação das pessoas foi inacreditável. No fim do Requiem toquei piano solo naquele espaço às 21.00 e eu nem sei como consegui depois de ter vivido aquela emoção. Antes de tocar, a Joana Carneiro foi ao meu camarim, nem sabia que eu ia tocar a seguir, então olhou para mim e viu uma espécie de cadáver. Sempre separei as duas coisas. Uma coisa é tocar e outra é compor. No entanto, eu acabei por tocar muito bem, uma outra espécie de milagre. Há pequenas coisas que parece que dão sentido a uma vida toda e, na verdade, o seu número é suficientemente grande para poder dizer que estou bem comigo próprio e com aquilo que a vida me deu, com este conjunto de momentos que eu guardo no meu coração, usando a velha metáfora.
"Não se pode responder a uma música com palavras, porque simplesmente ficará sempre aquém da música, é uma outra esfera do pensamento e da expressão humanas"
DC – O que pensa do ensino musical em Portugal?
APV – Em geral melhorou muito nestes últimos vinte anos. Neste momento, há uma quantidade enorme de gente a tocar e a compor muito bem. Mas o ensino tem ainda de progredir. Todos os professores poderiam estudar as mais recentes publicações, atualmente há novas perspetivas sobre a antiga história da música, diferente do que lhes (e me) foi contado e atualizar-se, no ponto de vista dos conhecimentos históricos, para não cometer erros de orientação em relação ao futuro dos alunos.
É importante que o professor transmita aos alunos não a ideia de que eles tem que ser máquinas de tocar bem ou de compor bem, mas tem que ser artistas no sentido amplo do termo. De cada vez que sobem ao palco, por exemplo, vão ser veículos de um valor superior que é a música que vão tocar, seja ela qual for. Em segundo lugar, face às consequências da crise e face à pequenez do meio e à atmosfera comercial que isso propicia, naturalmente, é necessário puxar pela potência que existe em todos, puxar pelos valores, pela qualidade humana, que é necessária para viver com outros. Estes outros que podem ser alunos, colegas e futuros concorrentes.
Existem também aqueles dedicados a outras práticas musicais, outras tradições. Não deve haver complexos de superioridade, porque esse tempo já lá vai. Portanto, quem olha para a música de tradição ocidental e se considera no topo de uma hierarquia cultural e social está a cometer um erro porque isso era a visão do europeu do séc. XIX, é uma forma de pensamento eurocêntrico. Neste momento, eu não tenho nenhuma razão para achar que a música da Europa é melhor que a da China, da Índia e a muçulmana. São músicas diferentes e todas têm a sua qualidade. Eu sou ocidental, não posso renegar isso. Não vou, de repente, passar o dia todo a ouvir música chinesa porque a minha posição no mundo é ocidental. Mas daí não retiro nenhuma espécie de complexo de superioridade, o que eu retiro é apenas uma noção de pertença a uma cultura, mas não devo desqualificar as outras. Mais uma vez, Boaventura tem um conceito muito interessante que é a "imaginação-do-centro": uma pessoa vive na periferia mas imagina-se lá, em Berlim, Paris… É um erro comum, é mesmo um discurso corrente na política e representa uma forma subtil de provincianismo, disfarçado de cosmopolitismo.
Há um outro aspeto: penso que a música fala com uma verdade que lhe é própria. Não se pode responder a uma música com palavras, porque simplesmente ficará sempre aquém da música, é uma outra esfera do pensamento e da expressão humanas.
“é necessário lutar para escrever sobre a música portuguesa para além dessa omnipresença dos cânones”
DC – Boaventura de Sousa Santos disse que “Num contexto social e político brutescamente medíocre e desistente, a música de António Pinho Vargas é a alegria consistente da rebeldia”. Continua a ser um rebelde? Quais são, agora, as suas lutas?
APV – Essa frase comove-me. O Boaventura é um dos homens mais brilhantes que pisou este país, alguma vez. Ele tem duas facetas. Uma é a de um homem militante que escreve crónicas para a Visão onde de quinze em quinze dias toma posições sobre política. Outra, que é a que eu defendo como o verdadeiramente importante, é a do Boaventura dos livros, o cientista social. Regressando à sua frase, serei rebelde em relação à política, mas ao contrário de Boaventura, apenas escrevo uns “vómitos” pontuais no facebook.
Em relação à música, eu acho que já cumpri o meu papel, em dois ou três níveis. Um foi quando combati a hegemonia pós-serial no ensino das instituições culturais como já referi. Em segundo, fiz um estudo sobre as programações culturais em Portugal, o seu lugar no mundo e os documentos existentes de história da música ocidental mostram que Portugal não está lá presente. Pude também verificar a forma como os portugueses escrevem história da música em Portugal. Publicações que já têm uma idade provecta, em 1992 foi a última publicação, e ninguém parece muito interessado em escrever outras. Porque eles e toda a nossa geração foi educada a gostar mais de Beethoven e a saber mais sobre ele do que de Bomtempo ou qualquer outro. Eu também conheço melhor Beethoven que Bomtempo. Mas um dos erros frequentes que se verifica nestes livros é que estão constantemente a comparar os portugueses com as grandes personalidades europeias. O que designo no livro como o "tópico da obsessão comparativa". Não se deve prosseguir este tipo de discurso. Fiz uma crítica desse tipo de discurso, muito corrente, não tem nada de ataque pessoal, mas é necessário lutar para escrever sobre a música portuguesa para além dessa omnipresença dos cânones. Cada obra de arte tem a marca do seu "lugar de enunciação" e deve ser vista e comentada como tal. Devemos tentar produzir discursos autónomos.
Lopes Graça, em relação à geração de Darmstadt, escreveu em 1960 um artigo muito importante: “será que não estamos a cometer o mesmo erro do passado e a ir buscar mais uma vez as nossas fontes lá fora?” A situação em Portugal melhorou imenso em termos de músicos e da sua qualidade, o fator negativo é a sua situação financeira em que vivemos ser asfixiante em muitas instituições culturais.
DC – O que que a música lhe trouxe à vida?
APV – A música foi, ou é, a razão principal da minha existência.
Entrevista de Maria Fernandes
António Pinho Vargas
Compositor, músico, ensaísta. Licenciado em História, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Curso Superior de Piano do Conservatório do Porto e Mestrado de Composição do Conservaório de Roterdão na Holanda. Professor de composição na Escola Superior de Música de Lisboa desde 1991 e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Completou o seu doutoramento em Sociologia da Cultura na Universidade de Coimbra em 2010.
Gravou 9 discos de jazz como pianista/compositor incluindo os dois CDs duplos Solo (2008) e Solo II (2009) em piano solo. Foram já editados 4 discos monográficos com algumas das suas obras. Compôs 4 óperas, 2 oratórias, 9 peças para orquestra, 8 obras para ensemble, 18 obras de câmara, 7 obras para solistas e música para 5 filmes.
Podem destacar-se as óperas Édipo, Tragédia de Saber (1996) Os Dias Levantados (1998) e Outro Fim (2008) os quartetos de cordas Monodia, quasi un Requiem (1993) e Movimentos do subsolo (2008), as obras para orquestra Acting Out (1998), A Impaciência de Mahler (2000), Graffiti [just forms] (2006), Six Portraits of Pain, para violoncelo solo e ensemble (2005) Um Discurso de Thomas Bernhard, para narrador e orquestra (2007) e a Suite para violoncelo solo (2008). Em 2011 estreou a obra sinfónica Onze Cartas para orquestra, três narradores (pré-gravados) e electrónica e, em 2012, o Quarteto de Cordas nº3, Ouvertures and Closures, para orquestra e Requiem para Coro e Orquestra encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian.
Publicou os livros Sobre Música: ensaios, textos e entrevistas (Afrontamento, 2002) e Cinco Conferências sobre a História da Música do Século XX(Culturgest, 2008) e, em 2011, o livro Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu. (CES/Almedina).
Recebeu em 2012 o Prémio Universidade de Coimbra, pela sua contribuição para a música contemporânea portuguesa e o Prémio José Afonso pelo disco Solo II.
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