O conceito de formação discursiva foi proposto por Michel Foucault e desempenhou um papel crucial no alargamento das análises do discurso. Uma formação discursiva é algo que num dado momento histórico adquire condições de possibilidade - pode ser dito em determinados lugares e tempos historicamente específicos - e nesse quadro de relações saber/poder assume uma função particular porque, ao contrário da ideia corrente de que o poder é simplesmente repressivo, "incita", "suscita", "produz", como afirma Deleuze no seu livro Foucault. Foi deste pondo de vista que, na minha investigação sobre a ausência da música portuguesa no contexto europeu, a análise dos discursos se revelou muito rica como procedimento capaz de desvendar o outro lado de discursos que circulam na sociedade em geral - e no campo musical em particular - e tentar mostrar o seu carácter "produtor".
Esta pequena introdução justifica-se face ao que segue. Pude ler hoje no Público um texto de Diana Ferreira (que, aliás, foi minha aluna nos anos 90 na ESML na disciplina de História da Música do século XX) e que, nos últimos anos, escreve com alguma regularidade nesse jornal sobre concertos que têm lugar na Casa da Música e no norte do país. Referindo a excelência do Quarteto de Cordas de Matosinhos - opinião que partilho inteiramente, diga-se - escreve a certa altura: "Aliás, não fosse Portugal um pequeno país isolado num canto da Europa, o QCM teria já um belo contrato com uma empresa discográfica que o trataria de promover em todos os cantos do mundo". Qual é a importância deste fragmento?
À partida nada parece suscitar algum comentário particular. Mas este pequeno excerto permite-me trazer aqui alguns exemplos similares do mesmo tipo de formação discursiva que pude abordar na minha investigação sobre a ausência da música portuguesa no contexto europeu. Trata-se neste caso não de música portuguesa, de compositores portugueses, mas de intérpretes portugueses. O problema tem efectivamente muitos aspectos em comum.
Os exemplos que aqui trago pertencem ao capítulo X - Discursos e histórias de uma não história no ponto 2.1. desse capítulo A fatalidade do lugar de enunciação.
Escrevo a certa altura:
"Procura-se encontrar nestes discursos manifestações explícitas ou implícitas da interiorização da subalternidade. Há declarações dispersas que são por vezes mais eloquentes sobre os valores interiorizados e correntes do que textos mais articulados destinados a publicação. De algum modo é este o caso das declarações de Rui Vieira Nery ao Diário de Noticias em 2006 sobre Francisco António de Almeida, a propósito da sua ópera La Guiditta. Na peça escreve Bernardo Mariano: “Diz o Prof. Nery, por fim, que “se ele não tivesse sido obrigado, como bolseiro do rei que era, a regressar a Portugal, não seria de espantar que tivesse permanecido em Roma e aí tivesse feito uma carreira internacional mais destacada”. Rui Nery assume com total naturalidade, sendo na altura director-adjunto do Serviço de Música da Gulbenkian e tendo sido Secretário de Estado da Cultura, que “regressar”, estar “cá dentro”, impede “uma carreira internacional”. Implicitamente, assume a fatalidade e a inferioridade."
Mais adiante acrescento o segundo exemplo:
"Num programa da RTP2, Câmara Clara, apresentado em 2008, Alexandre Delgado, a propósito do seu livro Luís de Freitas Branco afirmou que o compositor, se não fosse português, seria tocado em todo o mundo. O que está em causa nestes dois comentários – aliás, muito correntes no campo musical – respectivamente de 2006 e 2008, é que o discurso sobre a exclusão dos portugueses é tomado não apenas como um facto mas como uma fatalidade."
É obvio que o texto acima referido não está incluído nos exemplos da minha investigação. Foi publicado hoje, dia 21-12-2010. Mas a sua relação estreita com os que refiro na tese é patente.
Mas devemos ir mais além na análise. O que significa a recorrência deste tópico discursivo?
Em primeiro lugar, traduz a constatação da subalternidade e as consequentes dificuldades e a menorização daí decorrentes para os artistas.
Mas, em segundo lugar, deve-se acrescentar uma outra interpretação possível por incomoda que seja para nós. Constatada a evidência deve seguir-se a pergunta: quais são as consequências da recorrência deste discurso, frequente na pena de autores, compositores ou críticos que, amiúde, praticam noutros textos a celebração dos cânones musicais provenientes dos países centrais dominantes, os cânones do passado e do presente ? Quais são as consequências deste "lamento" - à primeira vista correcto - se não for problematizada, ao mesmo tempo, a subalternidade referida como resultado simétrico de uma hegemonia?
O problema é que esta hegemonia (que produz directamente a subalternidade) passa quase sempre, senão mesmo sempre, como "natural", como "eterna", como "carismática" - "os grandes artistas internacionais" - sem se compreender essa ideologia que é apenas o outro lado da moeda? Para haver subalternidade tem de haver o seu correlativo hegemónico e quer um, quer outro, são indiscutivelmente históricos, funcionam num dado tempo e num dado espaço, mas como produto histórico de uma dada relação de forças de poder vigente num dado momento. Este é um funcionamento estrutural dos campos de produção cultural e que os agentes tenham ou não consciência disso não muda nada.
Assim, na minha opinião, o todo é constituído pela dominação de dispositivos de poder bem localizados nos países centrais, que tendem para desqualificar os periféricos (por ignorância, desconhecimento, incapacidade de compreender ou desinteresse) enquanto celebram ou idolatram, nas publicações que disseminam, e, finalmente, exportam retirando daí os respectivos dividendos simbólicos e propriamente económicos (contratar um grande artista e mais ainda uma grande orquestra custa caro).
Uma coisa é certa. Depois do meu trabalho de investigação para a tese, depois da leitura dos textos e dos dados munido do procedimento próprio da análise dos discursos e dos seus tópicos habituais, jamais voltarei a ser capaz de ler uma frase do tipo citado inicialmente sem imediatamente reconhecer a "formação discursiva" dominante e lhe detectar os perigos semi-ocultos. Nem quando o autor da frase sou eu próprio, como se poderá ver quando o livro for publicado em 2011. Sendo agente activo, não há milagre que me possa por a salvo do funcionamento estrutural próprio dos campos culturais, nem qualquer possibilidade de me poder erigir em grande juiz - seria totalmente ridículo - de uma campo do qual faço parte. Mas não me está vedada a possibilidade da análise nem da auto-análise.
António Pinho Vargas, 21 de Dezembro de 2010